segunda-feira, 16 de maio de 2016

Sobre a experiência de voltar ao que nos é conhecido – Parte 2: reler um livro (História do cerco de Lisboa)

“Meu Deus, tende piedade dos homens que vivem de imaginar”
(SARAMGO, HCL, P. 170)

A gente relê um livro com mais esforço do que revê um filme. Com isso não quero dizer que a gente tenha menos prazer, apenas que custa mais, mobiliza um tempo maior da vida. Eu releio muito e, na maioria das vezes, é para cumprir uma tarefa, o que significa que reler para mim quase nunca é uma escolha desobrigada. Quando é uma decisão desprendida, geralmente vou ao livro porque tenho saudades dele. Eu sempre tenho saudades de alguns deles e eles estão cheios de marcadores para assinalar trechos a que recorro em desespero... Se no texto da semana passada, eu aludi a um entrosamento entre sentimentos, no caso da releitura de um livro a consciência disso é mais aguda porque nossa reincidência mobiliza a tal energia maior.
Eu já escrevi sobre o encontro conosco que as anotações nas margens proporcionam (“Cochichos nas margens”, de 14 de setembro de 2015), mas na semana passada eu vivi a experiência do reencontro com um livro sem anotações. Foi uma experiência especialmente nervosa folhear essa obra. A primeira vez que a li, eu a tomara emprestado, então a memória de mim mesma não estava ali, no exemplar que comprei depois. Este ano eu me lembrei da obra para uma disciplina que há muitos anos não ministrava. Trata-se de História do cerco de Lisboa de José Saramago. Não havia uma única anotação na obra, mas ela está autografada pelo autor.
A moça que leu a obra poderia imaginar o sorriso da mulher que a releu na semana passada? Na primeira cena do romance, uma conversa entre o revisor e o historiador... Quando a Marcella que fui leu a obra pela primeira vez preparava-se para tornar-se professora de Língua e Literatura; a Marcella que eu sou hoje é historiadora e medievalista! O diálogo que abre a narrativa de Saramago tem duas Marcellas que se olham, afinal eu também já fui revisora...
O romance, porém, continua a brincar comigo, pois afinal um dos livros que ele tem dentro de si é resultado de pesquisa austera, obra de historiador, sobre a conquista de Lisboa de 1147, tema das aulas de Medieval. Eu me encanto com o modo como a metaficção historiográfica é um bom guia para impedir que a gente tome o discurso das fontes históricas como o reflexo do sucedido. Por entre a porta da ironia, o questionamento do documento, os limites da História e do historiador e as possibilidades da ficção:
“Não o tem descrito assim o historiador no seu livro. Apenas que o muezim subiu ao minarete e dali convocou os fieis à oração na mesquita, sem rigores de ocasião, se era manhã ou meio-dia, ou se estava a pôr-se o sol, porque certamente, em sua opinião, o miúdo pormenor não interessaria à história” (p. 19)

O livro ainda desafia a escolha que vivo no presente ao rir dos equívocos históricos, ou seja, dos erros repetidos em artigos aprovados e que leio por aí. Que delícia a dúvida sobre o discurso elaborado do rei principiante Afonso Henriques e que engraçado o descrédito do alcance das palavras que esforçam as hostes. Afinal, teriam megafones? Choro.
Só que há um outro livro nesse romance, o livro que nasce do NÃO em uma frase: “OS CRUZADOS NÃO AUXILIARÃO OS PORTUGUESES A CONQUISTAR LISBOA”. O não é obra de Mr. Hyde, ou melhor, do revisor Raimundo Silva. E isso não tem explicação! Precisa? De novo a ficção pisca o olho para mim: ai, Marcella, tudo tem de ter uma explicação? Quando é chamado à editora para se explicar, para ser punido, condenado, ou para ser demitido..., o revisor não consegue justificar-se. Tudo piora, entretanto, porque no meio do incompreensível, encontra o amor. Eita, a maior confusão! Cadê as causas políticas, econômicas... que explicam a História?! A História também é feita de paixão.
O maior desafio do livro é orientado pelo amor, portanto. É Maria Sara quem convida (ou provoca?): “escrever uma história do cerco de Lisboa em que os cruzados, precisamente, não tenham ajudado os portugueses, tomando portanto à letra o seu desvio” (p. 109/110). A ficção me orienta novamente na compreensão de que a escrita tem sempre a opção pelo desvio. Raimundo Silva, todavia, trabalha para reenquadrar em um texto o seu afastamento inexplicável de conduta. Reflete a respeito do não, pois era preciso um motivo forte para a debandada dos cruzados e mobiliza uma experiência muito sensível, a experiência dos lugares. Sua escrita também é uma viagem pela Lisboa de camadas sobrepostas. Sua escrita ou a de Saramago?
Há muitos momentos em que os discursos se cruzam, como se cruzam as referências dos nossos textos, das vozes de autoridade, das memórias do que fomos, das decisões que tomamos, cochichos... Os romances de Saramago são tão extraordinários porque os narradores expressam a polifonia que grita em nós e isso não tem ordem ou destino, isso é o que somos.
Para uma apaixonada pela poesia medieval, que tem sempre de responder aos alunos se as pessoas se amavam ou não como a poesia cantava, as considerações do narrador sobre a invenção do discurso do amor são a melhor resposta (passo a adotar):
“corre-se sempre o risco do anacronismo, por exemplo, pôr diamantes em coroas de ferro ou inventar subtilezas e erotismo requintado em corpos que se contentam com ir direitos ao fim começando rapidamente pelo princípio” (p. 227);

“Se ao lado roncou de prazer Lourenço e berrou Elvira, com igual veemência responderam daqui estes dois, Doroteia faz mesmo questão de não ficar nunca atrás da outra em prodigalidades de expansão, e Mogueime, se tão bem lhe soube, não tem qualquer motivo para calar-se. Enquanto não vier o poeta D. Dinis a ser rei, contentemo-nos com o que há” (p. 288).

Na casa de Raimundo Silva, Maria Sara acha os personagens Mogueime e Ouroana nos apontamentos do revisor. Ela pergunta se seriam apaixonados, amantes... Quando a questão é proposta, Raimundo ainda não sabe a resposta. Acho a sua hesitação em responder a maior homenagem à verdade histórica! A explicação está nos trechos que transcrevi acima: como escrever o amor antes de ele ter sido “inventado”? É ainda Maria Sara quem ajuda: “Invente uma história de amor sem palavras de amor” (p. 264). Ok, Maria Sara, desafio aceito, mas pelo narrador: “O soldado Mogueime não pensa nada disto, o soldado Mogueime quer aquela mulher, a poesia portuguesa não nasceu ainda” (p. 325).
Desprovida de mapa de leitura, reli a História do Cerco de Lisboa como tarefa imposta, mas, no caminho, aproveitei para dar espiada pela janela que Maria Sara abriu na casa de Raimundo Silva. Por ali, fiquei imaginando o que me contaria a menina que agarrou esse livro desmemoriado e ofereceu ao autor para o autografar. Eu me lembro desse dia. Ao meu lado fazendo as fotos, meu melhor amigo, que deve estar lá perturbando o Saramago desde a barca em que conseguiram adentar...
Zé, saudades.
(Trata-se do José Elias, meu saudoso amigo, mas quem pensou que me refiro ao Saramago, também Zé, está valendo)

Indicação:

A minha edição da História do Cerco: SARAMAGO, José. História do Cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras: 1989.




Há mais de 20 anos, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

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