Já incluí o Itinerário de Pasárgada de Manuel Bandeira em várias disciplinas e
cursos, tudo para ter os excelentes pretextos de conversar sobre a obra e de
disseminar a sua importância para outras pessoas. Entre as páginas 30 e 31 da
minha edição, Bandeira alude à lição de Mallarmé (1842-1898) de “que em
literatura a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com ideias e
sentimentos” e tempera o postulado com a sua própria convicção de que é, entretanto,
“pela força do sentimento ou pela tensão do espírito que acodem ao poeta as
combinações de palavras onde há carga de poesia”. Eu tenho mania de palavras e
também acho que a poesia é “feita de pequeninos nadas” (p. 33), cheios de
valores musicais!
Chamo de mania de palavras o prazer que sinto em repetir para mim mesma, só
na mente ou num sussurro, algumas palavras; chamo também de mania a minha incontinência em
repeti-las por aí, para quem não tem a menor chance de escapar. Assim, algumas
pessoas sabem que adoro a palavra ventarola,
uma palavra que preenche a boca!
Minha
mania não está restrita à língua materna, afinal tem coisa mais linda que animaux? No singular não tem a menor
graça... Acho que, quando a palavra animaux
acaba, ela restaura na boca um muxoxo infantil. Aliás, a palavra boca é belíssima, mas bocha em occitano é muito mais,
sobretudo na voz de Adolfo Osta, quando canta “Can l'erba fresch' e.lh folha par” de Bernart de Ventadorn. É também fato que a
percepção dos outros sobre a nossa própria língua reinveste a beleza de
vocábulos que não eram particularmente graciosos para nós. Para meu professor
de francês, um francês nativo, a palavra fofinho
é cheia de encanto. Por causa dele, passei a “olhar” essa palavra com outros
olhos.
Há palavras, porém, que me atraem porque elas estão
grudadas a outras de forma a constituírem uma unidade inquebrantável e aquele
todo é em si a razão de eu viver enfeitiçada por elas. Dou como exemplo a
palavra granzoal. Ela é linda, não dá
para negar, mas o que dizer do contexto em que ela tem como adjuvantes as
seguintes amigas: A um granzoal azul de grão-de-bico? A unidade é o verso de Cesário Verde, poema
“De tarde”. O fato de granzoal ter como amiga próxima o adjetivo azul,
que amplia a sonoridade fricativa, seguidas essas duas palavras de outras com
oclusivas redunda em uma coisa deliciosa de pronunciar. Tente: A um granzoal azul de grão-de-bico... Eu poderia
dizer isso o dia todo!
No Itinerário,
Manuel Bandeira aborda emendas poéticas
que promoveram versos: “Duas ou três palavras que saíram, duas ou três que
entraram, eis o golpe de mestre que transformou três versos medíocres em três
outros palpitantes de poesia” (p. 33). Também afirma ter aprendido muito com os
maus poetas, porque neles “se acusa o que devemos evitar” (p. 33), eu acrescentaria
se acusa mais claramente e acho que Bandeira não se incomodaria, pois
logo depois o poeta nos diz que os versos defeituosos dos bons poetas se diluem
de forma mais fácil.
Há versos que me encantam
particularmente em Miguel Torga, mas muita coisa em Miguel Torga me encanta...
Alguém pode lembrar que o primeiro livro que escrevi (resultado de minha
dissertação de Mestrado) é sobre ele. Nesse dístico: Orfeu rebelde, canto como sou/ Canto como um possesso (poema “Orfeu Rebelde”, proveniente de livro
homônimo, publicado em 1958), peço ao leitor atenção aos trechos em destaque.
Se eles forem comparados, veremos que são muito semelhantes foneticamente: canto/canto
e sou/possesso. Eu fiquei pensando em se não seria o caso de retirar o
artigo um antes de possesso, mas depois concluí que não, pois o
artigo ameniza a oclusiva bilabial /p/ de possesso. Torga, você tem
razão e olha que nem sempre, como já escrevi e muita gente boa já reconheceu.
Teria Torga lido o Itinerário
de Pasárgada de Manuel Bandeira?
Em outro verso de Torga, do poema
“Ode à poesia”, temos esse milagre: “O mar protesta contra não sei quê”. Por
que o milagre? Fale alto o verso e vai sentir as ondas rebentarem na sua boca.
Esse efeito é o resultado da quantidade de oclusivas que o poeta conseguiu
encaixar no verso: /p/, /t/ e /k/. Alguém pode lembrar que eu falava antes de
palavras e que não há nada como animaux ou ventarola nesse verso.
Devolvo a reprimenda com um gracejo: na poética medieval, palavra é verso,
então...
De volta ao poema “Orfeu Rebelde”,
o verso “violências famintas de ternura” sempre me emocionou. Não sei se são as
suas nasais ou se é essa sensação de ter sido colocada à beira do paradoxo: violência
e ternura no mesmo verso? Como o poeta mediou isso? Com uma palavra
excessiva, se não é uma coisa meio mórbida achar que em faminta possa
haver excesso... O fato é que eu via muita vez esse verso por aí, assim
completo, mas agora eu o vejo cortado, sobrou só a feia palavra violência.
Perdemos algo e não foi (só) a poesia. Antes que alguém ache que sou levada
pelas semânticas, acredite que também acho sem graça o ciciar da palavra paciência,
embora tenha grande interesse em cultivá-la na vida.
A minha transferência para
Curitiba colaborou para a minha mania de palavras. Eu adotei imediatamente a
palavra fervo. No Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa,
fervo é “grande desentendimento ou briga”, mas averiguei que a palavra
tem um sentido mais amplo na rua, ela pode significar intensidade ou
abundância. O fato é que, depois de muitos anos, acabei por descobrir no clube
do livro e para minha tristeza, que a pronuncio erradamente. Ao invés do ferrrrrrrrrvo
que me alegrava, eu deveria adotar o retroflexo, que ainda não consegui com
autenticidade. Enfim, continuo a usar de forma errada.
Em 1998, no primeiro recreio que
vivi com uma turma de 5ª série, aprendi que em Curitiba não se merenda, lancha-se.
Quando eu convidei meus alunos a merendarem, recebi uma sonora
gargalhada. Merenda é uma palavra linda (e não é que está também no
poema “De tarde” de Cesário?). Eu a abandonei em situações públicas, mas não a
esqueci e aqui lhe presto homenagem. Adotei, porém, piá, que pensei
primeiramente tratar-se de um pássaro e penal, não no sentido de pena
judicial, mas no sentido de estojo de guardar lápis, até porque estojo
é uma palavra danada de feia.
Passei minha gravidez indecisa
entre dois nomes para a minha filha: Leonor e Maria Clara. São
nomes tão diferentes foneticamente que eu me abismo com nossa excentricidade!
Ficou Maria Clara, esse nome cheio da mesma vogal aberta e central, só
com uma fora dos padrões: um “pequenino nada”, para acautelar contra a
homogeneidade.
Quando alguém me dá um mimo,
eu dou um sorriso mais meigo do que quando alguém me dá um presente,
palavra meio atrapalhada. Quando me sinto entusiasmada, sinto ganas de
ser redundante: arrebatada e extasiada, palavras feiticeiras.
Mas... eu preciso confessar que cometeria uma grande injustiça ao meu amor
pelas palavras, disfarçado de mania, se não mencionasse minha paixão mais
escandalosa: a palavra puta. Duas oclusivas, uma bilabial e outra
alveolar; duas vogais, uma fechada e posterior e outra aberta e central... É um
milagre, não uma blasfêmia.
Essa palavra tem força e é tão
paradoxal quando violência e ternura no mesmo verso. Ela ofende e
potencializa uma experiência positiva: como quando se assiste a um puta espetáculo!
Vou enfrentar a ofensa e afirmar que acho a palavra potente em sua sonoridade.
Se já fui vítima da acusação direta ou da expressão mediada pela evocação de
uma mãe que é afinal a ofendida, a tal “força do sentimento” de que falou
Bandeira, é provável. A recorrência de seu uso como ofensa provaria o gozo
fonético, frenético e patético do ofensor? Não arrisco.
Às vezes, as palavras são
desnecessárias para amar (retomo o texto da semana passada, não foi Maria Sara quem solicitou a Raimundo Silva que escrevesse uma história de amor sem palavras?) e são inocentes do nosso desejo de ofender, mas eu me
vigio... Não emprego a palavra interferir, porque imagino que seguro uma
espada suja do sangue alheio. Falo de
amor pelas palavras, vocábulos e versos; amor pela sua música, resultado de
enfrentamentos e tréguas entre sons que vão da garganta (palavra bonita!) à bocha,
até todo mundo.
Indicações:
1. Minha
edição do Itinerário: BANDEIRA,
Manuel. Itinerário de Pasárgada (4ª
ed.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Brasília: INL, 1984.
2. GUIMARÃES, Marcella Lopes. Visões
da cidade: um passeio por RUA de Miguel Torga. Curitiba: Juruá, 2001.
3. TORGA,
Miguel. Poesia Completa em 2 volumes.
Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2007.
Para quem quiser
ouvir a voz de Adolfo Osta (sou a maior fã dele!!!), interpretando a cantiga
medieval que mencionei: https://www.youtube.com/watch?v=lt94X5Zkwvc A tradução dessa cantiga para o português será
publicada no Diálogo sobre a alegria.
Você esqueceu de dizer "açúcar" - ai que palavra linda!
ResponderExcluirE eu esqueci de dizer que amei o texto, como sempre.
ResponderExcluirAmigo querido, açúcar é demais mesmo rsrsrsrs. Obrigada pelo seu tempo, sempre tão generoso para mim...
ResponderExcluirTexto delicioso como a palavra deliciosa !
ResponderExcluirAcho que a palavra deliciosa faz um desenho na boca! Obrigada pela leitura!
ExcluirAdorei o texto e sua paixão pelas palavras. Mas o fervo não foi pronunciado errado não: seja retroflexo, arrastado, curto ou caipira, ele é sempre um fervo! No Rio, aqui ou em qualquer lugar. Beijos e boa semana!
ResponderExcluirUfa! Já estava triste por causa do meu ferrrrrrrrrrvo!
ExcluirNossa... Gostei muito do seu blog. Se hoje sou professor, muito devo a você. Assim que puder, dá uma visitadinha no meu blog que fiz para revelar alguns dos meus poemas. Ainda estou em busca do lançamento do meu primeiro livro, mas já participei de algumas coletâneas e tive a honra inclusive de expor um dos meus poemas na exposição "Poesia Agora" no Museu da Língua Portuguesa em São Paulo - antes deste pegar fogo. Até acredito que este último fato já valeu mais do que lançar um livro, mas continuo na luta... Um abraço do tamanho do universo.
ResponderExcluirwww.perigorforever.blogspot.com.br
Parabéns!!!! Vou visitar o seu blog com muito gosto. Bjs.
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirBeijos profe linda, querida e inesquecível...
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