A Tela da Dama, Ensaios de Literatura é uma obra em que o exercício
da crítica; a experiência da pesquisa, não como “falar do não sabido” (pág.
217), como a autora provoca; da docência e a arte de escrever se conjugam para
revelar escolhas que são fundadas na leitura. Muita coisa?! Então talvez A Tela da Dama de Teresa Cerdeira, Professora
de Literatura Portuguesa da UFRJ, seja mesmo uma História da Leitura de
“categorias portuguesas”, em paráfrase recriadora do projeto de Giorgio Agamben
que li outro dia (refiro-me às suas Categorias
Italianas, estudos de poética e
literatura). Mas, então, como História da leitura, esse conjunto de ensaios
é uma experiência ainda maior! A “Introdução à parte I: Contrabandos da
cultura: a Babel feliz” é prova; um pequeno (só em tamanho) manifesto pela
leitura.
O livro é dividido em duas partes. A
segunda é dedicada ao “labor poético”, mas na primeira não reina a prosa, como
esperado... Logo, aprenderemos que, com Teresa, trata-se de desconfiar sempre
do esperado, explico assim a docência
do primeiro parágrafo, que tem forte ressonância em sua poética, como ainda
farei menção. A importação do substantivo “contrabandos” como essência da
primeira parte esclarece que Teresa está interessada em revelar os trânsitos e
transferências, mas que prefere o vocabulário do delito para expressar o que
não cabe nas regras, nas licitudes... Quem são os implicados nesse crime de que
somos todos leitores, ou melhor, cúmplices? São os autores que, ao longo dos 25
anos de pesquisa referidos no agradecimento ao CNPq, estão nas prateleiras de
acesso mais fácil em seu escritório, aqueles que têm mais cores de marca-texto
nas páginas, aqueles cujos nomes figuram na capa dos códices de mais continuadas
visitações. São predominantemente autores portugueses do século XX e XXI: David
Mourão Ferreira, Fernando Pessoa, Helder Macedo, Herberto Helder, Jorge de
Sena, José Saramago, Miguel Torga e Sophia de Mello Breyner Andresen. A exceção
medieval de Estêvão Coelho é responsável pela não exclusividade da Literatura
Contemporânea. Para o poeta e romancista Helder Macedo, os maiores ensaios das
duas partes da obra e os maiores riscos.
Quem conhece Teresa Cerdeira sabe
bem que Helder é seu amigo, no sentido mais duardino do conceito (refiro-me, é
claro, ao disposto por D. Duarte no Leal Conselheiro).
Ao vincular o conceito à precisão que lhe dá o rei medieval, rechaço a
camaradagem do tapinha nas costas que exime o outro da crítica, bem como a
possibilidade de invasão no universo da crítica literária de informações que só
a proximidade dá acesso. Teresa antevê o risco e define “Vamos, portanto,
partir do universo da leitura de Helder Macedo para encontrar ali as perguntas
a serem feias sobre a sua bagagem de viajante” (pág. 23). Com isso, convida seu
próprio leitor a um caminho mais cheio de bifurcações, em que, entretanto, a
vida orgânica e completa, vez por outra se apresenta. Teresa se detém nos
romances Partes de África, Pedro e Paula, Vícios e Virtudes, Sem nome
e Natália e vai esclarecendo o
mosaico, em que participa também a obra ensaística de Helder Macedo. No
primeiro texto, o conceito de Ekphrasis
se apresenta e colabora para
fundamentar a ideia de contrabando.
Na Tela de Teresa figura José Saramago obviamente. Afinal, até
onde sei, a sua tese de Doutorado foi a primeira no Brasil a se dedicar à obra
do Prêmio Nobel. No capítulo, como em outros, Teresa revê as suas conclusões,
revisita seu diálogo fecundo com a História, ilumina os intertextos e refuta
influências. Para uma orientanda de Georges Duby como ela o foi, a evocação de
fragmento do Cerco de Lisboa sobre as diferenças que
mais importam (pág. 83) parece quase homenagem ao medievalista francês, ainda
que não declarada... (lembremo-nos que, em Ano 1000 ano 2000,
na pista de nossos medos, o mestre afirmou que são as diferenças que mais nos
ensinam), mas nesse caso é também uma medievalista que lê Teresa...
Jorge de Sena merece dois artigos na primeira parte, um
em que está acompanhado de Miguel Torga e outro em que Teresa volta a evocar a Ekphrasis. No primeiro caso, a autora
está interessada em como os dois enfrentam o discurso bíblico, um discurso
fundador (pág. 101). Já na sua leitura de “Teorema” de Herberto Helder, Teresa
propõe não a celebração da vingança, mas do amor (pág. 130), “o júbilo erótico
de uma experiência a três” (pág. 131), em que contracenam o rei Pedro I de
Portugal, a dama Inês de Castro e um de seus algozes, Pero Coelho.
Nos capítulos dedicados a Saramago e a Herberto Helder
fica mais evidente um traço dos mais instigantes da poética de Teresa. Chamo o
seu fazer ensaístico de poética: repleto de conexões surpreendentes, de referências
marcantes e do incentivo (ou provocação?) a abandonar o senso comum. É bem
verdade que, no último caso, não se trata bem de senso comum. Teresa publica ensaios
sobre Literatura Portuguesa contemporânea em editora portuguesa e fala,
sobretudo, aos estudantes e leitores brasileiros cultos. Isso chega para forjar
um senso comum? Teresa não quer saber, provoca-nos: “De forma redutora a
veríamos se a ela impuséssemos tão somente (...). A questão é certamente maior
do que essa” (pág. 84), no caso da Jangada de Pedra de José Saramago ou “o
exigente conto de Herberto Helder reclama mais” (pág. 126), “esse conto vai, na
verdade, na contramão das expectativas de leitura” e “Não se trata, no entanto,
de mergulhar no maravilhoso ou no fantástico que seriam as estratégias
facilitadoras e reguladoras da dissensão. O conto, ao contrário, mantém até
certo ponto as suas balizas claramente realistas, e é de dentro delas que se
constrói a perversão do realismo, quer por efeitos de inadequação temporal, ou
espacial, ou actancial (pág. 128), essas três últimas observações concernentes
ao conto “Teorema” de Herberto Helder. Teresa nos afirma, com isso, que o
caminho fácil não é mesmo o mais sedutor.
A discussão da obra de Helder Macedo (de Viagem de Inverno) também abre a segunda
parte da Tela de Teresa, em texto que considero essencial para a
poética da autora, ou seja, em que o como é o modo mais singular de o saber se revelar. Eu já
escrevi sobre Viagem de Inverno e lendo Teresa me pergunto
se eu li mesmo os poemas que compõem essa obra de Helder, tal a maneira como a
ensaísta me instiga a pensar por outros vieses, entre a música e a literatura
de viagens (pág. 139). Novamente, Teresa desafia: “A digressão, benévolo
leitor, é consequente” (pág. 157). A piscada de olho não a faz soltar a nossa
mão, mas com a outra ela borda, verbo caro à sua obra (Refiro-me ao seu muito
conhecido O avesso do bordado. Lisboa: Caminho, 2000)
caminhos novos. No caso da obra de Helder, a demarcação das “estações de uma
caminhada” (pág. 174).
Teresa volta a Jorge de Sena, traz David Mourão
Ferreira e não se despede de Helder Macedo quando propõe em um capítulo a
superação da melancolia do ser português pela via erótica, que a obra dos
autores lhe descortina. Teresa os aproxima na vida empírica também, recusando-se
a virar as costas àquele todo orgânico de que falei acima, que compõe o sujeito
que escreve e paga contas. A obra Navegações de Sophia de Mello Breyner
Andresen é revisitada em um texto interessantíssimo sobre História e futuro. De
Pessoa, que Teresa alcança via Alberto Caeiro, ela salta séculos para terminar a
Tela na Idade Média, com um texto que revela seu trabalho
crítico, sua poética e a sua amorosa história da leitura: “no exercício da
crítica há que devorar as entranhas do texto, há que ter também olhos agudos
para ler o que está além da sua aparente simplicidade, para além da evidência
da superfície, para além da externalidade previsível, de modo a deixar-se
surpreender não pela profundidade (...) mas pelo que a trama dessa superfície
projeta como pluralidade de significações” (pág. 216). Nesse fim que é
experiência mágica de ler entranhas, Teresa completa a cena da cantiga do
trovador Estêvão Coelho, em que a dama tece e é “autora do canto formoso” que o
eu poético escuta maravilhado. Esse texto de Teresa foi também publicado na Revista Diálogos
Mediterrânicos 4: (http://www.dialogosmediterranicos.com.br/index.php/RevistaDM/article/view/70/88).
Os cancioneiros galego-portugueses não identificaram autorias femininas, mas
Teresa “prediz” o passado (!), ao apontar que na cantiga a referência ao canto
da mulher prova a sua possibilidade.
Na Tela da Dama leio Categorias portuguesas que não se
importam de conviver, entretanto, com outras referências que são essenciais
para Teresa Cerdeira. Ela fala de bagagem de viajantes e podemos achar na sua
de mão, ou seja, naquela valise que salvamos da possibilidade de extravio, também
os mestres Roland Barthes, Georges Bataille e
Marcel Proust. No “manifesto” que abre esses Ensaios de Literatura (Na “introdução à Parte I”), Teresa afirma que a “leitura
que obseda é a grande condutora do desejo de escrita” (pág. 18), da sua
escrita, está claro, mas também da minha, aqui e agora.
PS.: é possível ler uma outra resenha desta mesma obra em: http://www.nosrevista.com.br/2014/03/18/teresa-cerdeira-aborda-a-critica-literaria-em-%C2%ABa-tela-da-dama%C2%BB/
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