ANÁLISE SOBRE TRECHO DA BIOGRAFIA DE CERCAMUNDO
Me. Mayra Sousa Resende[1]
Me. Willian Perpétuo Busch[2]
INTRODUÇÃO
Este
trabalho pretende propor uma interpretação para a biografia do Cercamundo, a
partir de um trecho do Cancioneiro K traduzido pela professora Dra. Marcella
Lopes Guimarães e apresentado em aula. Nosso intuito é mostrar como o trecho
age de acordo com o círculo hermenêutico de Paul Ricoeur e atua em prol da
construção de uma narrativa hagiográfica razoavelmente subjetiva sobre um poeta
do medievo.
1
FONTES
A fonte utilizada foi o manuscrito Chansonnier provençal [Chansonnier K],
da segunda metade do século XIII e disponível para acesso integral em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b60007960?rk=21459;2. Os dados biográficos referentes a Cercamundo se encontram
no Folio 119r. No topo esquerdo da
página, em vermelho, consta a seguinte descrição FIGURA 1.
FIGURA
1 - Folio
119r
FONTE:
Os
autores (2021).
A segunda fonte utilizada foi a
compilação oferecida pela Professora Dra. Marcella
Lopes Guimarães. Construída a partir dos Manuscritos
I e K e tendo por base a
grafia: I. BSC, p.9:
Cercamundo si fo
uns joglars de Gascoingna, e trobet vers e pastoretas a la usanza antiga. E
cerquet tot lo mon lai on el poc anar, e per so fez se dire Cercamundos.
A tradução oferecida por Guimarães foi a seguinte:
Cercamundo foi
um jogral da Gasconha e ele compôs cantigas e pastorelas à maneira antiga. E
circulou pelo mundo e por onde pode andar, por isso se fez chamar Cercamundo.
2
TRAÇANDO
BIOGRAFIAS
A visão moderna do
discurso historiográfico trataria Cercamundo como um objeto, uma entidade
distinta de Guimarães, que ocuparia a função de mediação, conferindo
neutralidade e credibilidade ao objeto, na medida em que é apagada. Nesta
chave, as análises produzidas sobre Cercamundo a partir da mediação de
Guimarães, ficcionalizam a
historicidade do jogral por meio da neutralização
da historiadora e tradutora[3].
Já uma análise
contemporânea poderia enquadrar Cercamundo a partir de estratégias discursivas;
seja Cercamundo em relação aos seus contemporâneos; bem como os usos feitos de
sua biografia ao longo da história. Análise esta que, apesar de sensível aos
modos pelo qual os historiadores estruturam as suas fontes, permanecem presas
no quadro ficcional moderno.
A historicidade do
jogral varia nos seus modos ficcionais, construindo e reconstruindo as discursividades.
Todavia, no seu centro, mantém Guimarães neutralizada, uma vez que não lhe é
conferido o mesmo estatuto ontológico. Fala-se sobre Cercamundo e sobre
Guimarães, mas não há um acoplamento entre estes.
O discurso moderno
transforma Cercamundo num objeto do discurso científico que, em sua gênese,
arrasta consigo um problema epistêmico a respeito dos sentidos, tanto de
"indivíduo" quanto de “medievo”. Já os discursos contemporâneos
revelam como este objeto foi construído discursivamente. Tal padrão não é
exclusivo de Cercamon.
Neste sentido, cabe
pensar a análise deste trecho a partir da perspectiva de Paul Ricoeur[4]. O
filósofo aponta a existência da verdade semântica e simbólica, sendo que a
primeira é dada pelo conteúdo em si e a segunda ocorre a partir das
interpretações contextuais e simbólicas do leitor. No que diz respeito a este
trecho, uma análise semântica diria que Cercamundo é um rapaz que gosta de
compor e cantar suas próprias músicas e viajar o mundo enquanto o faz.
Entretanto, a verdade simbólica pode ser outra, uma vez que compor, cantar e
viajar durante o Século XIII tem uma conotação distinta de fazê-lo durante o
Século XXI.
Para Ricoeur[5] estes dois
campos da verdade são complementares, de forma que necessariamente um texto vai
falar sobre o mundo que o circunda e o que o mundo fala sobre o texto, ao mesmo
tempo, é o que o cria, simbolicamente. Logo, uma interpretação contemporânea de
que Cercamundo é um compositor e cantor que viaja o mundo e vive de sua música
é construtiva para entender o Cercamon do século XIII, uma vez que é a imagem
mental / simbólica que imprimimos na atualidade e que representa a nossa
interpretação ou entendimento.
O desafio de assumir
a perspectiva ricoeuriana é o de olhar para os trechos dos cancioneiros de forma
inocente e permitir-se entendê-los a partir das primeiras imagens mentais e
simbólicas que formamos. Ao mesmo tempo, deve-se ter a noção de que a leitura
constrói o texto enquanto ele a constrói e, com isso, entrar em contato com
trechos como o de Cercamundo é entrar em contato com todo um mundo particular,
que diz respeito à ele e à essa história, uma vez que para Ricoeur todo texto é
um mundo inteiro.
Assim é possível que
surjam outras questões sobre Cercamon, como, por exemplo, porque alguém estava
escrevendo sobre sua história? Quem era essa pessoa? Por que a vida de Cercamon
importava? Essas perguntas ficam sem resposta e são apagadas com o tempo, sendo
legadas a interpretações simbólicas de pesquisadores como Guimarães, que tentam
traduzir os textos antigos e costurar essas histórias, mas com o cuidado de
entendê-las como ser-em-si ao mesmo tempo em que são para o mundo.
Giorgio Agamben[6]
explicitou que dois termos eram utilizados na Grécia Antiga para tratar da
“vida”: ζωή e βίος. O primeiro se
referia a noção de vida como compartilhada entre homens, animais e divindades,
enquanto o segundo “indicated the form or way of living proper to an individual
or a group”. O Λόγος de ζωή
corresponde ao corpo biológico, enquanto o Λόγος da βίος trata da vivência em
comunidade. A biografia de Cercamundo, quando vista pelo sujeito énonce, trata da βίος na medida que conflui o seu nome, origem, arte e
experiência. Todavia, nada de sua ζωή é revelada. A ruptura entre βίος e ζωή é
um Λόγος que não trata da vida, mas sim de θάνατος.
Para escapar disso, num viés
inspirado por Jacques Lacan[7], alertamos que caso os
pesquisadores optem pelo manuscrito como a única fonte para sua análise da
biografia de Cercamundo, duas opções se abrem. A primeira é tratar Cercamundo
como um sujeito énoncé e recai num
viés estrutural que se fecha no conteúdo narrado pela fonte e ignora todo o
resto. Já a segunda é optar por Cercamundo como um sujeito énonciation que performa e pode ser historicizado.
Buscar Cercamundo como um sujeito énonciation é retornar para a escolha da
fonte e conferir uma nova significação advinda da experiência biográfica dos
pesquisadores. No nosso caso optamos pela versão de Guimarães acerca de
Cercamundo e uma dinâmica tomou forma. A produção da fonte já é, por si, um
duplo: trata-se da biografia de Cercamundo que se produziu na encruzilhada com
a βίος de Guimarães e contém uma multiplicidade de elementos, experiências,
emoções e sonhos. Neste sentido, não há mais um sujeito énonciation Cercamundo, mas um acoplado de βίος e ζωή que se encarna em multiplicidades:
livros, aulas, slides, conversas, etc. Noutras palavras, o sujeito énonciation trata da fonte mas esta não
é um dado bruto. Trata-se duma fonte que oferece, na superfície, uma camada
biográfica acerca de Cercamundo que foi moldada e enquadrada por uma série de
eventos que compõem e se cruzam com a biografia de Guimarães.
Cercamundo foi
um jogral da Gasconha e ele compôs cantigas e pastorelas à maneira antiga. E
circulou pelo mundo e por onde pode andar, por isso se fez chamar Cercamundo.
Investigar Cercamundo como um “jogral
da Gasconha” demanda uma reflexão histórica acerca da emergência do jogral, das
relações políticas, dos arranjos sociais e da textura cultural que compõem a
Gasconha. Pois bem, tratar de multiplicidades não é uma tarefa simples. Deve-se
abrir um diálogo, na medida do possível, com Guimarães, acerca da sua jornada até
Cercamundo e a Gasconha, tendo em vista sua experiência, bem como seu
posicionamento acerca da historiografia.
O enunciado acerca da composição de
cantigas e pastorelas “à maneira antiga” sugere variações artísticas e práticas
de criação que diferem de outros bardos. Uma incursão neste campo deve
considerar aspectos históricos como invenções de tradições e disputas por
legitimidade. Ao mesmo tempo, o pesquisador não pode perder de vista a visão de
Guimarães sobre isso.
A parte final que
revela o bardo como viajante talvez seja a mais importante. Devemos pensar na
noção de mundo e peregrinação no medievo e tentar correlacionar, se possível,
com a posição marginal e anômala de Cercamundo em relação às três classes
majoritárias: nobres, sacerdotes e aldeões. Cruzaremos essa experiência com a
visão de Guimarães acerca destes processos, mas também da sua andança até
Cercamundo.
L. E. Kastern[8]
adentrou no problema da datação dos poemas de Cercamundo. O primeiro, Lo plaing comenz iradamen, que lamentava
a morte de William, conde de Poitiers e duque da Aquitania, foi escrito no
momento imediato a morte deste, e portanto por volta de 9 de abril de 1137. O
segundo, Car vei fenir, um tenso, também parece ter sido do mesmo
ano, uma vez que fazia “uma alusão sem erro ao iminente casamento da Alienor da
Aquitânia com o filho do rei da França, o futuro Luis VII”[9].
O elemento que distingue Cercamundo, na visão de Kastern, é o tratamento do
amor como sensual. Para Kastern: “ele segue a nova moda, criada por William VII
de Poitiers e por Ebles II de Ventadorn, chamada ‘Cantiga’ pelo cronista
Geoffroi de Vigeois. Para Ebles ele dedica seu plano para a morte de William
VII de Poitiers”[10].
Essa nova maneira de narrar o amor,
como sensual, aparece em vários outros poemas dos cancioneiros occitanos,
revelando o processo da tomada de consciência de si, que de acordo com Dosse
(2009) passa a acontecer a partir do século XII, quando os textos narram uma
vida “tocada pela graça”, também compreendida com Hagiografia - e que se diferencia
da biografia exatamente por esta razão.
Pode-se, ainda, compreender o
trecho citado como um ponto de vista de alguém que olha para Cercamundo de
fora. Alguém que constrói uma narrativa de cantor viajante para ele, a quem nós
não sabemos o que pensa ou o que realmente faz. O ponto de vista compõe uma das
mímesis tratadas por Ricoeur, aquela que fala sobre como a forma pela qual
olhamos as coisas (ou o local a partir de onde as estamos olhando) cria a
consciência simbólica pela qual as interpretaremos. Dessa forma, vale dizer que
outras pessoas poderiam descrever Cercamundo de outras formas, assim como
outras pessoas poderiam interpretar o trecho aqui citado de outras formas e é
justamente neste embate entre o que aconteceu, o que foi dito e o que foi compreendido
sobre aquilo que aconteceu que se constroem as narrativas - que podem ou não
ser ficcionais, apesar de sempre estarem relacionadas ao passado e estarem
sujeitas a interpretações individuais que podem alterar o seu sentido. De
acordo com RIcoeur, a única coisa que muda entre a história e a ficção é a
intencionalidade por trás do fato que está sendo narrado. Enquanto um não
pretende estar relacionado à realidade o outro pretende contá-la, mesmo que
para tal caia ele próprio num círculo hermenêutico infindável.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não sabemos quem foi Cercamundo,
mas a partir deste pequeno trecho fomos levados a refletir sobre a sociedade
medieval e como ela se relacionava com os trovadores e os viajantes, ao mesmo
tempo em que refletimos como essas posições são ocupadas na sociedade atual.
Também pudemos exercitar o conhecimento teórico adquirido em aula, colocando à
prova as interpretações de Ricoeur sobre a hermenêutica e a narrativa, além de
considerar as interpretações oferecidas por Guimarães e todos os colegas no
decorrer das aulas.
Somos um reflexo de que a história
se constrói em conjunto e de que as interpretações são resultado de nossos
contextos simbólicos, de forma que realizar o exercício proposto foi bastante
construtivo no processo do aprender que quanto mais tentamos compreender sobre
o mundo, mais nos percebemos enquanto meras narrativas e mais precisamos
contá-las.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo
Sacer: Sovereign Power and Bare Life. Trad. Daniel Heller-Roazen.
Stanford: Stanford University Press, 1998.
CLÉRO, Jean-Pierre. Le
vocabulaire de Lacan. Paris: Ellipses Édition Marketing
S.A, 2002.
KASTNER, L. E. Marcabrun and
Cercamon. The Modern Language Review, v. 26, n. 1,
p. 91–96, 1931.
LACAN, Jacques. O
Seminário, livro 4: a relação de objeto. Trad. Dulce Duque Estrada. Rio de
Janeiro: Zahar, 1995.
LATOUR, Bruno. Jamais
fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Trad. Carlos Irineu Costa. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 2011.
RICOEUR, Paul. Oneself
as Another. Chicago and
London: The University of Chicago Press, 1992.
SIMMS, Karl. Paul
Ricoeur. London and
New York: Routledge, 2003.
[1] Doutoranda em Antropologia
(PPGA-UFPR).
[2] Doutorando em História
(PPGHIS-UFPR).
[3] Neste viés ver: LATOUR, Bruno, Jamais
fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica, Rio de Janeiro: Ed. 34, 2011.
[6] AGAMBEN, Giorgio, Homo
Sacer: Sovereign Power and Bare Life, Stanford: Stanford University
Press, 1998.
[7] WRIGHT, Elizabeth, Another Look at
Lacan and Literary Criticism, New
Literary History, v. 19, n. 3,
p. 617–627, 1988; CLÉRO, Jean-Pierre, Le
vocabulaire de Lacan, Paris: Ellipses Édition Marketing
S.A, 2002; LACAN, Jacques, O
Seminário, livro 4: a relação de objeto, Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
[8] KASTNER, L. E., Marcabrun and
Cercamon, The Modern Language Review, v. 26, n. 1,
p. 91–96, 1931.
[9] Tradução nossa. No
original: “an unmistakable allusion to the imminent marriage of Alienor of
Aquitaine with the son of the king of France, the future Louis VII” (Kastern,
p.92).
[10] Tradução nossa. No
original: “He follows the new fashion set by William VII of Poitiers and by
Ebles II of Ventadorn, surnamed 'Cantator' by the chronicler Geoffroi de
Vigeois. To Ebles he dedicates his planh on the death of William VIII of
Poitiers.” (Kastern, p.92)
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