terça-feira, 28 de setembro de 2021

Mayra Resende & Willian Busch : experiências de leitura da biografia do trovador Cercamon

 ANÁLISE SOBRE TRECHO DA BIOGRAFIA DE CERCAMUNDO

 

Me. Mayra Sousa Resende[1]

Me. Willian Perpétuo Busch[2]

 

INTRODUÇÃO

 

     Este trabalho pretende propor uma interpretação para a biografia do Cercamundo, a partir de um trecho do Cancioneiro K traduzido pela professora Dra. Marcella Lopes Guimarães e apresentado em aula. Nosso intuito é mostrar como o trecho age de acordo com o círculo hermenêutico de Paul Ricoeur e atua em prol da construção de uma narrativa hagiográfica razoavelmente subjetiva sobre um poeta do medievo.

 

1        FONTES

 

A fonte utilizada foi o manuscrito Chansonnier provençal [Chansonnier K], da segunda metade do século XIII e disponível para acesso integral em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b60007960?rk=21459;2. Os dados biográficos referentes a Cercamundo se encontram no Folio 119r. No topo esquerdo da página, em vermelho, consta a seguinte descrição FIGURA 1.

 

 

FIGURA 1 - Folio 119r



FONTE: Os autores (2021).

 

A segunda fonte utilizada foi a compilação oferecida pela Professora Dra. Marcella Lopes Guimarães. Construída a partir dos Manuscritos I e K e tendo por base a grafia: I. BSC, p.9:

Cercamundo si fo uns joglars de Gascoingna, e trobet vers e pastoretas a la usanza antiga. E cerquet tot lo mon lai on el poc anar, e per so fez se dire Cercamundos.

A tradução oferecida por Guimarães foi a seguinte:

Cercamundo foi um jogral da Gasconha e ele compôs cantigas e pastorelas à maneira antiga. E circulou pelo mundo e por onde pode andar, por isso se fez chamar Cercamundo.

 

2        TRAÇANDO BIOGRAFIAS

 

A visão moderna do discurso historiográfico trataria Cercamundo como um objeto, uma entidade distinta de Guimarães, que ocuparia a função de mediação, conferindo neutralidade e credibilidade ao objeto, na medida em que é apagada. Nesta chave, as análises produzidas sobre Cercamundo a partir da mediação de Guimarães, ficcionalizam a historicidade do jogral por meio da neutralização da historiadora e tradutora[3].

Já uma análise contemporânea poderia enquadrar Cercamundo a partir de estratégias discursivas; seja Cercamundo em relação aos seus contemporâneos; bem como os usos feitos de sua biografia ao longo da história. Análise esta que, apesar de sensível aos modos pelo qual os historiadores estruturam as suas fontes, permanecem presas no quadro ficcional moderno.

A historicidade do jogral varia nos seus modos ficcionais, construindo e reconstruindo as discursividades. Todavia, no seu centro, mantém Guimarães neutralizada, uma vez que não lhe é conferido o mesmo estatuto ontológico. Fala-se sobre Cercamundo e sobre Guimarães, mas não há um acoplamento entre estes.

O discurso moderno transforma Cercamundo num objeto do discurso científico que, em sua gênese, arrasta consigo um problema epistêmico a respeito dos sentidos, tanto de "indivíduo" quanto de “medievo”. Já os discursos contemporâneos revelam como este objeto foi construído discursivamente. Tal padrão não é exclusivo de Cercamon.

Neste sentido, cabe pensar a análise deste trecho a partir da perspectiva de Paul Ricoeur[4]. O filósofo aponta a existência da verdade semântica e simbólica, sendo que a primeira é dada pelo conteúdo em si e a segunda ocorre a partir das interpretações contextuais e simbólicas do leitor. No que diz respeito a este trecho, uma análise semântica diria que Cercamundo é um rapaz que gosta de compor e cantar suas próprias músicas e viajar o mundo enquanto o faz. Entretanto, a verdade simbólica pode ser outra, uma vez que compor, cantar e viajar durante o Século XIII tem uma conotação distinta de fazê-lo durante o Século XXI.

Para Ricoeur[5] estes dois campos da verdade são complementares, de forma que necessariamente um texto vai falar sobre o mundo que o circunda e o que o mundo fala sobre o texto, ao mesmo tempo, é o que o cria, simbolicamente. Logo, uma interpretação contemporânea de que Cercamundo é um compositor e cantor que viaja o mundo e vive de sua música é construtiva para entender o Cercamon do século XIII, uma vez que é a imagem mental / simbólica que imprimimos na atualidade e que representa a nossa interpretação ou entendimento.

O desafio de assumir a perspectiva ricoeuriana é o de olhar para os trechos dos cancioneiros de forma inocente e permitir-se entendê-los a partir das primeiras imagens mentais e simbólicas que formamos. Ao mesmo tempo, deve-se ter a noção de que a leitura constrói o texto enquanto ele a constrói e, com isso, entrar em contato com trechos como o de Cercamundo é entrar em contato com todo um mundo particular, que diz respeito à ele e à essa história, uma vez que para Ricoeur todo texto é um mundo inteiro.

Assim é possível que surjam outras questões sobre Cercamon, como, por exemplo, porque alguém estava escrevendo sobre sua história? Quem era essa pessoa? Por que a vida de Cercamon importava? Essas perguntas ficam sem resposta e são apagadas com o tempo, sendo legadas a interpretações simbólicas de pesquisadores como Guimarães, que tentam traduzir os textos antigos e costurar essas histórias, mas com o cuidado de entendê-las como ser-em-si ao mesmo tempo em que são para o mundo.

Giorgio Agamben[6] explicitou que dois termos eram utilizados na Grécia Antiga para tratar da “vida”: ζωή e βίος. O primeiro se referia a noção de vida como compartilhada entre homens, animais e divindades, enquanto o segundo “indicated the form or way of living proper to an individual or a group”. O Λόγος de ζωή corresponde ao corpo biológico, enquanto o Λόγος da βίος trata da vivência em comunidade. A biografia de Cercamundo, quando vista pelo sujeito énonce, trata da βίος na medida que conflui o seu nome, origem, arte e experiência. Todavia, nada de sua ζωή é revelada. A ruptura entre βίος e ζωή é um Λόγος que não trata da vida, mas sim de θάνατος.

Para escapar disso, num viés inspirado por Jacques Lacan[7], alertamos que caso os pesquisadores optem pelo manuscrito como a única fonte para sua análise da biografia de Cercamundo, duas opções se abrem. A primeira é tratar Cercamundo como um sujeito énoncé e recai num viés estrutural que se fecha no conteúdo narrado pela fonte e ignora todo o resto. Já a segunda é optar por Cercamundo como um sujeito énonciation que performa e pode ser historicizado.

Buscar Cercamundo como um sujeito énonciation é retornar para a escolha da fonte e conferir uma nova significação advinda da experiência biográfica dos pesquisadores. No nosso caso optamos pela versão de Guimarães acerca de Cercamundo e uma dinâmica tomou forma. A produção da fonte já é, por si, um duplo: trata-se da biografia de Cercamundo que se produziu na encruzilhada com a βίος de Guimarães e contém uma multiplicidade de elementos, experiências, emoções e sonhos. Neste sentido, não há mais um sujeito énonciation Cercamundo, mas um acoplado de  βίος e ζωή que se encarna em multiplicidades: livros, aulas, slides, conversas, etc. Noutras palavras, o sujeito énonciation trata da fonte mas esta não é um dado bruto. Trata-se duma fonte que oferece, na superfície, uma camada biográfica acerca de Cercamundo que foi moldada e enquadrada por uma série de eventos que compõem e se cruzam com a biografia de Guimarães.

Cercamundo foi um jogral da Gasconha e ele compôs cantigas e pastorelas à maneira antiga. E circulou pelo mundo e por onde pode andar, por isso se fez chamar Cercamundo.

Investigar Cercamundo como um “jogral da Gasconha” demanda uma reflexão histórica acerca da emergência do jogral, das relações políticas, dos arranjos sociais e da textura cultural que compõem a Gasconha. Pois bem, tratar de multiplicidades não é uma tarefa simples. Deve-se abrir um diálogo, na medida do possível, com Guimarães, acerca da sua jornada até Cercamundo e a Gasconha, tendo em vista sua experiência, bem como seu posicionamento acerca da historiografia.

O enunciado acerca da composição de cantigas e pastorelas “à maneira antiga” sugere variações artísticas e práticas de criação que diferem de outros bardos. Uma incursão neste campo deve considerar aspectos históricos como invenções de tradições e disputas por legitimidade. Ao mesmo tempo, o pesquisador não pode perder de vista a visão de Guimarães sobre isso.

A parte final que revela o bardo como viajante talvez seja a mais importante. Devemos pensar na noção de mundo e peregrinação no medievo e tentar correlacionar, se possível, com a posição marginal e anômala de Cercamundo em relação às três classes majoritárias: nobres, sacerdotes e aldeões. Cruzaremos essa experiência com a visão de Guimarães acerca destes processos, mas também da sua andança até Cercamundo.

L. E. Kastern[8] adentrou no problema da datação dos poemas de Cercamundo. O primeiro, Lo plaing comenz iradamen, que lamentava a morte de William, conde de Poitiers e duque da Aquitania, foi escrito no momento imediato a morte deste, e portanto por volta de 9 de abril de 1137. O segundo, Car vei fenir, um tenso, também parece ter sido do mesmo ano, uma vez que fazia “uma alusão sem erro ao iminente casamento da Alienor da Aquitânia com o filho do rei da França, o futuro Luis VII”[9]. O elemento que distingue Cercamundo, na visão de Kastern, é o tratamento do amor como sensual. Para Kastern: “ele segue a nova moda, criada por William VII de Poitiers e por Ebles II de Ventadorn, chamada ‘Cantiga’ pelo cronista Geoffroi de Vigeois. Para Ebles ele dedica seu plano para a morte de William VII de Poitiers”[10].

Essa nova maneira de narrar o amor, como sensual, aparece em vários outros poemas dos cancioneiros occitanos, revelando o processo da tomada de consciência de si, que de acordo com Dosse (2009) passa a acontecer a partir do século XII, quando os textos narram uma vida “tocada pela graça”, também compreendida com Hagiografia - e que se diferencia da biografia exatamente por esta razão.

Pode-se, ainda, compreender o trecho citado como um ponto de vista de alguém que olha para Cercamundo de fora. Alguém que constrói uma narrativa de cantor viajante para ele, a quem nós não sabemos o que pensa ou o que realmente faz. O ponto de vista compõe uma das mímesis tratadas por Ricoeur, aquela que fala sobre como a forma pela qual olhamos as coisas (ou o local a partir de onde as estamos olhando) cria a consciência simbólica pela qual as interpretaremos. Dessa forma, vale dizer que outras pessoas poderiam descrever Cercamundo de outras formas, assim como outras pessoas poderiam interpretar o trecho aqui citado de outras formas e é justamente neste embate entre o que aconteceu, o que foi dito e o que foi compreendido sobre aquilo que aconteceu que se constroem as narrativas - que podem ou não ser ficcionais, apesar de sempre estarem relacionadas ao passado e estarem sujeitas a interpretações individuais que podem alterar o seu sentido. De acordo com RIcoeur, a única coisa que muda entre a história e a ficção é a intencionalidade por trás do fato que está sendo narrado. Enquanto um não pretende estar relacionado à realidade o outro pretende contá-la, mesmo que para tal caia ele próprio num círculo hermenêutico infindável.

 

3    CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Não sabemos quem foi Cercamundo, mas a partir deste pequeno trecho fomos levados a refletir sobre a sociedade medieval e como ela se relacionava com os trovadores e os viajantes, ao mesmo tempo em que refletimos como essas posições são ocupadas na sociedade atual. Também pudemos exercitar o conhecimento teórico adquirido em aula, colocando à prova as interpretações de Ricoeur sobre a hermenêutica e a narrativa, além de considerar as interpretações oferecidas por Guimarães e todos os colegas no decorrer das aulas.

Somos um reflexo de que a história se constrói em conjunto e de que as interpretações são resultado de nossos contextos simbólicos, de forma que realizar o exercício proposto foi bastante construtivo no processo do aprender que quanto mais tentamos compreender sobre o mundo, mais nos percebemos enquanto meras narrativas e mais precisamos contá-las.

 

  

REFERÊNCIAS

 

 

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life. Trad. Daniel Heller-Roazen. Stanford: Stanford University Press, 1998.

CLÉRO, Jean-Pierre. Le vocabulaire de Lacan. Paris: Ellipses Édition Marketing S.A, 2002.

KASTNER, L. E. Marcabrun and Cercamon. The Modern Language Review, v. 26, n. 1, p. 91–96, 1931.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Trad. Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Trad. Carlos Irineu Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2011.

RICOEUR, Paul. Oneself as Another. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1992.

SIMMS, Karl. Paul Ricoeur. London and New York: Routledge, 2003.

WRIGHT, Elizabeth. Another Look at Lacan and Literary Criticism. New Literary History, v. 19, n. 3, p. 617–627, 1988.


[1] Doutoranda em Antropologia (PPGA-UFPR).

[2] Doutorando em História (PPGHIS-UFPR).

[9] Tradução nossa. No original: “an unmistakable allusion to the imminent marriage of Alienor of Aquitaine with the son of the king of France, the future Louis VII” (Kastern, p.92).

[10] Tradução nossa. No original: “He follows the new fashion set by William VII of Poitiers and by Ebles II of Ventadorn, surnamed 'Cantator' by the chronicler Geoffroi de Vigeois. To Ebles he dedicates his planh on the death of William VIII of Poitiers.” (Kastern, p.92)

Página do Cancioneiro K


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