terça-feira, 30 de maio de 2023

Eneida de Heloisa Passos: épico familiar

 

5ª feira, dia 25 de maio de 2023. O PPGHIS da UFPR viveu uma atividade rara: a união de suas Linhas de Pesquisa para uma experiência em comum. Colegas, alunas e alunos, convidados e convidadas reuniram-se no anfiteatro 1100 do Edifício Pedro I da Reitoria para ver o filme Eneida da cineasta Heloisa Passos. A qualidade “rara” teve a ver tanto com o que há de mais funcional na rotina dos dias: os horários diferentes das aulas, quanto com as preocupações acadêmicas: as especificidades de cada seminário de pesquisa e até com a surpresa gerada pelo encontro entre o previsível e o imprevisível. Na 5ª feira, dia 25 de maio de 2023, colegas, alunas e alunos encontraram-se com a protagonista do filme, Eneida Passos (86 anos), para ver com ela um filme em que suas alegrias, conversas e suas dores foram projetados para nossa surpresa e emoção, em uma sala de aula.

Uma atividade assim tem suas “horas de filmagem” invisíveis aos presentes pontuais e que merecem aqui um destaque para as que vivi com a Taturana, distribuidora do documentário, com quem conversei e de quem recebi materiais generosos e muito bem elaborados sobre o filme. Ora, a existência desse conjunto revela que o filme tinha a ambição de extrapolar a experiência de seus minutos visíveis. A exibição começou antes com a leitura do material e se prolongou na conversa depois do filme, em que contamos também com as presenças gentis da produtora Débora Zanatta e da filha mais nova de Eneida Passos, Luciane Passos. Palavras aquecidas com café.

Eneida é um documentário sobre Eneida, a mãe de Heloisa Passos. A cineasta encena a microescala italiana – tão conhecida da historiografia – para “falar” com o público sobre a sua gente, tão nossa... Mãe e filha estão em cena! Eu tive a satisfação de escrever sobre o filme Construindo pontes em 2018 que para mim, tanto quanto Eneida, conta muito sobre o Brasil recente[1]. Mas em Construindo, era o pai que passava pelas telas... Ele volta em Eneida, presença sutil na tela e de grande impacto na trama invisível que é o centro do filme.

Quando o filme começa, Eneida está em Portugal, revisitando suas próprias raízes. Eneida tem 81 anos e vai ao encontro da casa de seu pai. Depois, ela realiza seu épico para religar os ramos todos de que ela é árvore. Eneida vive a separação de uma filha e essa separação reverbera em sua família como afastamento por mais de vinte anos, entre irmãs, netos, primos, tias... sombra e silêncio. Eneida e Heloisa enfrentam a mudez dos anos, sufocada por camadas de desencontro, em busca da filha mais velha da protagonista. Eneida e Heloisa insistem, enfrentam seguranças, porteiros e rabinos. Reviram o sedimento de uma terra inundada pela alga mais tóxica para o amor: o ressentimento.

No material que estudamos sobre o filme, havia três temas disparadores: o cuidado, o envelhecimento e a reconciliação. O filme tem tudo isso. Eu gostaria de acrescentar o ressentimento e o perdão. O ressentimento é a invisibilidade mais opressiva do filme e o perdão... eu volto a Paul Ricoeur, para ele dizer uma coisa muito difícil: “pedir perdão também é manter-se disposto a receber uma palavra negativa: não, não posso, não posso perdoar”[2].

O filme Eneida também é outra coisa, ele encena o que vou buscar outra vez na precisão de Paul Ricoeur: “A fidelidade ao passado não é um dado, mas um voto”[3]. O legado desse filme é um voto. Refuto a ambiguidade desse substantivo, em contexto brasileiro de persistente divisão no almoço de domingo em nome do único sentido que interessa aqui. Na 5ª feira, dia 25 de maio de 2023, foi possível uma mesa comum.

Uma das coisas mais emocionantes para mim foi ver Eneida vendo Eneida... Ela não acredita que sua filha mais velha ou seu círculo viram ou verão o filme da sua epopeia. Eu acho que fica o voto, “o brilho dessa estrela norteadora”[4]...

Marcella Lopes Guimarães

 

***

 

Abaixo, a livre manifestação dos alunos do seminário de Cultura e Poder presentes na sessão de 25 de maio de 2023:

 

I)

Nikita Chrysan

Eneida não é apenas um filme, é uma experiência. É um convite para refletirmos sobre nossas próprias vidas, nossas famílias e amigos, os relacionamentos que vivemos, sejam curtos ou duradouros, assim como nossos medos e esperanças sobre aquilo que o futuro ainda há de nos revelar. A jornada de Dona Eneida em busca do tão sonhado reencontro com sua filha mais velha depois de mais de vinte anos, deixa o espectador ansiando pelo final perfeito que os diversos filmes e histórias fantásticas nos condicionaram a esperar desde a infância. Mas não podemos nos esquecer de que este filme conta uma história de vida, de mulheres que viram o machismo despedaçar importantes laços familiares que o tempo por si só não foi capaz de remendar, quando homens optaram pela discórdia onde o diálogo podia ter oferecido melhores alternativas. Em certo momento do filme, Dona Eneida diz ter vivido uma vida cercada e cerceada pelo machismo, não vendo formas de algum dia se livrar completamente disso, mas aos meus olhos ela já se impõe frente a seus opressores, como mulher, mãe, avó e bisavó, pela coragem e resiliência de buscar a conciliação familiar que foi inviabilizada por homens tantos anos atrás.

Como o próprio material promocional e didático do filme traz, Eneida é uma produção sobre mulheres feita por mulheres, que por meio de diversos temas nos aproxima da vida dessas pessoas, de sua dor, de suas alegrias, memórias e esperanças. Nos lembra que o tempo não espera por ninguém e que há infinitas maneiras de navegarmos por ele, mas que o perdão, o diálogo e a coragem devem ser nossos companheiros e companheiras de caminhada. O filme me fez pensar em minha própria família, tanto nas pessoas que não estão mais fisicamente comigo quanto naquelas que irei reencontrar nas férias que se aproximam depois do término deste semestre letivo, para a qual já tenho a passagem para casa comprada. Para Dona Eneida, sua filha e cineasta Heloisa e todas as mulheres de sua família, desejo toda sorte no caminho que vocês bravamente percorrem, e para minha mãe, minha eterna melhor amiga, deixo aqui meu até logo, na certeza de que este mês que me distancia de seu abraço passará tão rápido quanto o tempo que corre e guarda as memórias de todas nós.

 

II)

Dalton Iathiskoski

 

Eneida é um filme que nos faz refletir sobre as relações familiares, e não somente isso, também perante a sociedade. Assistindo ao filme pensamos sobre as ligações e os rompimentos que vivemos em nossas vidas. O quanto vale a pena uma relação? O quanto vale um rompimento? Pensar nos eventos e suas consequências desafia-nos a olhar para nós mesmos. Pois todos, em sua memória, podem lembrar-se de casos de machismo, injustiça, rejeição e abandono, seja por ouvir ou por presenciar. É impossível passar levianamente por esse filme. Em algum momento você é transportado para alguma vivência que teve e é obrigado a refletir sobre a conduta dos outros, mas também da sua. O que somos? O que nós queremos? Quem está conosco? O que ganhamos e o que perdemos? Por fim, a busca trágica de Eneida... torna-se uma busca por nós mesmos.

 

III)

Rennan Negrão

 

Eneida me tocou de maneira especial. Sua história é a história das nossas famílias, das discussões por dinheiro que levantam paredes no meio das salas das nossas casas, das palavras não ditas e que carregam expectativas que não foram cumpridas. Apesar da ruptura com uma das filhas - e com o braço da família que dela descende -, o filme mostra de maneira muito sensível a relação de Eneida com seus netos. Os netos dão aos avós a oportunidade de renovar as relações de afeto. É um amor demonstrado de maneira diferente. Eneida, nesses momentos, é avó. As interações com os netos nos colocam diante de dois problemas que estão dentro das nossas casas. O primeiro é o envelhecimento, e o cuidado que não relega aos idosos da família o lugar de apartamento, reservado às pessoas que, como objetos, vão se tornando obsoletas com o passar do tempo. O segundo problema, que atravessa o filme todo, são as relações de gênero; a vulnerabilidade masculina é apresentada em um único momento, quando a avó está barbeando o neto Bruno. A relação com os netos é o lembrete que, apesar do seu drama, essa é a família que Eneida possui*. O filme também nos relembra da importância daqueles que ficam do lado de cá após a ruptura, daqueles que tentam uma reaproximação, que querem reatar os laços. Novamente, essa é a história das nossas famílias.

 

*Assistimos ao filme na presença de Eneida, a protagonista, e sua filha mais nova. Ao final da apresentação, ambas saíram em direção ao toilette, e eu estava atrás, no corredor. Ao ver a mãe emocionada, a filha a abraça e diz: “Mãe, olhe tudo o que você tem, a gente, seus netos…”.

 

IV)

Danilo Rodrigues Silva

 

O filme na sua parte final expressa aquilo que nós usualmente concebemos como o derradeiro não desejável, aquilo que não esperamos e não queremos em um filme e muito menos nas nossas vidas, talvez por estarmos acostumados com a idealização da vida no cinema, a idealização de tudo aquilo que anelamos mas não encontramos nas nossas relações familiares e sociais. Eneida, obra de excelência em transpassar para além da tela aquilo que nós enquanto grande público não toleramos que nos seja despertado, sem subterfugio de algum clímax dramático da trilha sonora subjacente ás imagens, não faz avivar na consciência necessariamente aquilo que nós queremos; faz avivar o “nós” demasiado humanos, o “nós” sem muitos outros horizontes a não ser aquele da grande dor do passado, aquela que levamos ao futuro. Não se detendo apenas na rigidez da vida, o filme também aviva o “nós” amor, o incansável esperançoso. A obra não é a descrição de uma história com uma conclusão encantada e positiva para depois de um dia de muito trabalho, corrido, que nos retire á consciência para sermos lançados ao mundo das quimeras, não é uma história feita para termos boas emoções e relaxarmos depois do cansaço, ele é expressão cinematográfica das relações humanas como elas são, demasiado humanas, não necessariamente certas ou erradas eticamente, mas indomáveis pelos sentimentos.

 

V)

Raoni Paes Peres

 

A percepção da brevidade que contém toda vida muitas vezes nos traz reflexões aguçadas sobre como nos relacionamos com os que nos são importantes; certamente a força motriz de muitas reconciliações. No entanto, nem sempre temos o poder de mudar o curso de rupturas nas relações interpessoais como gostaríamos, algo com que muito podemos aprender, como demonstrou Eneida. Ao contrário de um mero conformismo, entre intenções materializadas em ações e a dose certa de estoicismo, encontramos também um conforto – o de viver intensamente sem adiar sonhos, convivendo com objetivos que não pudemos atingir, sem transformá-los em uma condição vital. Reconciliar é muito importante, e viver, mais ainda.

 

VI)

Mariana Megel

 

     O que foi Eneida para mim? Uma enorme reconciliação. Sou tecnóloga em gastronomia, estudante de nutrição e mestranda em história, porém, essas três faces do meu eu não andavam ressoando em consonância por aqui. Com essa inquietação, busquei transbordar a narrativa do filme através da alimentação. Enviei uma mensagem e um e-mail para a Heloisa perguntando se haveria alguma comida que fosse cara para a Eneida e a família delas e, para minha felicidade, dias antes do evento do PPGHIS fui presenteada com a receita do bolinho de polvilho da mãe da Eneida. Foram três testes na cozinha da minha casa até conseguir um resultado agradável e que me falasse ainda de boca cheia “é isso”. Reproduzi a receita com a intenção de que no dia 25 de maio de 2023 todas as conversas a mesa da família Passos estivessem presentes no anfiteatro 1100 do Edifício Pedro II. No entanto, não esperava que a partir disso as minhas três faces celebrariam juntas aquele momento. Eu celebrei naquelas 4 horas o fim da minha tripartite e a minha reconciliação. Finalizo dizendo que ainda não encontrei palavras suficientes para agradecer o fenômeno que é Eneida, mas usando da simplicidade, muito obrigada, Eneida.

 

(depoimentos enviados entre 28 e 29 de maio de 2023)

 

***

 

Eneida vendo Eneida, no anfiteatro 1100

 

 

 



[1] http://literistorias.blogspot.com/2018/05/construindo-pontes-de-heloisa-passos-um.html acesso em 29 de maio de 2023.

Achei uma dissertação sobre Construindo Pontes, que não li, defendida em 2021: http://ppgcineav.unespar.edu.br/dissertacoes_defendidas_new/2021/Dissertao_ThaiseJorgeMendona_PPGCINEAV.pdf acesso em 29 de maio de 2023. 

[2] RICOEUR, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Campinas: Ed. da Unicamp, 2007. p. 489.

[3] Idem, p. 502.

[4] Idem.

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