Separei dois livros de amigos para
ler nas minhas férias sempre tão disputadas por livros. Um deles é Teoria da Narrativa: uma introdução à teoria
da narrativa de Gérard Genette (2022), do amigo Otto Leopoldo Winck,
editado pelo Editorial Casa (Curitiba). Otto é romancista premiado, poeta,
professor universitário e ministra cursos de escrita muito celebrados na
cidade; tive a honra de ter um poema seu em livro meu e ter prefaciado um livro
seu, sua excelente tese sobre literatura galega[1]. Otto é um autor literário,
um artista, que reflete seriamente sobre a narrativa literária. Todo mundo sabe
que tem gente que se pavoneia disso e é publicada por editoras pretensamente
vanguardistas. Otto deve ser invejado por esses embusteiros.
Quando eu manifestei meu interesse
por adquirir a obra, ele deve ter estranhado, afinal Gérard Genette (1930-2018)
está no grupo dos teóricos que pensam a literatura apartada do mundo a que ela
pertence... Mas seu estranhamento deve ter durado dois minutos, porque ele sabe
que eu sou uma leitora voraz e haveria de querer saber por que ele enfrentou o
desafio de apresentar essa teoria. Eu não me engano com o autor: além de
apresentar de forma muito clara, Otto revisa e corrige Genette. Ousadia? Nada
disso. O grande Genette não se confunde com a superpopulação de deuses e mitos
reles dos nossos tempos, então, se a vida lhe tivesse permitido, haveria de ter
gostado do diálogo com Otto.
Teoria
da Narrativa: uma introdução à teoria da narrativa de Gérard Genette começa
explicando a narratologia: como nasceu essa disciplina, entre nomes e outras
disciplinas que afetaram a investigação sobre a narrativa. Trata-se de um
capítulo claro e fundamental para os estudantes da área de Letras. Otto vai
mostrando sintonias entre pesquisadores e especificidades do pensamento de
Genette, mais afeito a “uma pragmática da narrativa” e menos a uma “lógica
narrativa” (p. 19).
Otto vai perdoar eu ter colocado
“rs” na margem na página 22... É que ele narra uma anedota: a “inveja” sentida
por Genette de Auerbach. É a página em que me lembrei de uma sintonia com
Genette – não a inveja de Auerbach... -: a paixão por Marcel Proust e o quanto
a Recherche haveria de ser objeto da
investigação de Genette.
Refutando dicotomias de inspiração
formalista, Genette propõe o tripé da narratologia: história (conteúdo
narrativo), narrativa (o enunciado) e narração (o ato produtor) (p. 23 e 24) e
tira do estudo das relações entre esses elementos três conjuntos de noções
sintetizadas a partir da gramática dos verbos, são elas: tempo, modo e voz
(p.25). O livro de Otto tem cinco capítulos, três deles são para essas
categorias.
Nesses três capítulos, o leitor vai
ser testado... Sim, são anacronias, analepses, prolepses, pausas descritivas,
perspectivas, focalizações... que podem desesperar. Mas não devem. Todo mundo
pode ler e apreciar um texto literário, ignorando por completo o que é uma analepse
interna homodiegética completiva. Pode ler o reconhecimento da cicatriz de
Ulisses, sem compreender que isso é uma analepse parcial (p. 32), mas como todo
campo de conhecimento - e o estudo da narrativa é um campo de conhecimento e de
investigação sim! – há a prática da pesquisa que se faz por meio de teorias e abordagens
(há diversas), que compreendem, por sua vez, categorias próprias que o estudioso
deve procurar estudar e avaliar criticamente. Aqui está o meu real interesse
pelo livro e o meu convite aos que trabalham com a narrativa (em diversas
áreas), para que leiam o ensaio de Otto.
Eu não acho que a literatura brota
de uma realidade suspensa do mundo em que eu habito... não existe um “cérebro
extirpado” contemplando o “mundo exterior” (todo mundo reconheceu a importância
de Bruno Latour para mim aqui...), a literatura integra o mundo em que os
homens e mulheres vivem e escrevem! Tem outro “rs” na margem da página 79, na
crítica do meu amado Paul Ricoeur... Então, eu refuto o pensamento de Genette? Claro
que não. Eu acho que esses grandes pesquisadores da narrativa mergulharam
profundamente na compreensão do texto, desenvolveram categorias operativas, que
quem acredita que a literatura habita o mundo deveria também estudar. Então,
quem estuda literatura seriamente pode se beneficiar da luz emanada por
determinados conceitos pensados por esses teóricos sobre a sua leitura do
texto.
Otto Winck está muito longe de ser
um leitor acrítico da teoria que ele apresenta. Ele reconhece trechos confusos
e propõe revisões, como a das funções do narrador (p. 110). Ao final, entrevi a
sua própria aproximação dessa teoria, na provocação de Genette escolhida para a
avaliação do lugar da narratologia: “de que valeria a teoria se não servisse
também para inventar a prática?”. Otto pensa e cria com a sua biblioteca.
Meu aplauso para o editorial Casa e
para seu editor chefe Valdemir Paiva, por sua ousadia de publicar uma obra
necessária, consciente de que ela não encontra um público amplo. A Casa se
junta a outras editoras ousadas na cidade de Curitiba – e temos muitas nessa cidade! - que sabem da sua responsabilidade e fazem um
trabalho importante e criativo para leitores vorazes dos mais diversos
interesses pelo Brasil.
#editorialcasa
[1] WINCK, Otto Leopoldo. Minha pátria é minha língua: identidade e sistema literário na Galiza.
Curitiba: Appris, 2017.
Nenhum comentário:
Postar um comentário