domingo, 16 de julho de 2023

Todo dia é propício para falar de bons livros: Teoria da Narrativa: uma introdução à teoria da narrativa de Gérard Genette (2022), do amigo Otto Leopoldo Winck

  

 

Separei dois livros de amigos para ler nas minhas férias sempre tão disputadas por livros. Um deles é Teoria da Narrativa: uma introdução à teoria da narrativa de Gérard Genette (2022), do amigo Otto Leopoldo Winck, editado pelo Editorial Casa (Curitiba). Otto é romancista premiado, poeta, professor universitário e ministra cursos de escrita muito celebrados na cidade; tive a honra de ter um poema seu em livro meu e ter prefaciado um livro seu, sua excelente tese sobre literatura galega[1]. Otto é um autor literário, um artista, que reflete seriamente sobre a narrativa literária. Todo mundo sabe que tem gente que se pavoneia disso e é publicada por editoras pretensamente vanguardistas. Otto deve ser invejado por esses embusteiros.   

Quando eu manifestei meu interesse por adquirir a obra, ele deve ter estranhado, afinal Gérard Genette (1930-2018) está no grupo dos teóricos que pensam a literatura apartada do mundo a que ela pertence... Mas seu estranhamento deve ter durado dois minutos, porque ele sabe que eu sou uma leitora voraz e haveria de querer saber por que ele enfrentou o desafio de apresentar essa teoria. Eu não me engano com o autor: além de apresentar de forma muito clara, Otto revisa e corrige Genette. Ousadia? Nada disso. O grande Genette não se confunde com a superpopulação de deuses e mitos reles dos nossos tempos, então, se a vida lhe tivesse permitido, haveria de ter gostado do diálogo com Otto.

Teoria da Narrativa: uma introdução à teoria da narrativa de Gérard Genette começa explicando a narratologia: como nasceu essa disciplina, entre nomes e outras disciplinas que afetaram a investigação sobre a narrativa. Trata-se de um capítulo claro e fundamental para os estudantes da área de Letras. Otto vai mostrando sintonias entre pesquisadores e especificidades do pensamento de Genette, mais afeito a “uma pragmática da narrativa” e menos a uma “lógica narrativa” (p. 19).

Otto vai perdoar eu ter colocado “rs” na margem na página 22... É que ele narra uma anedota: a “inveja” sentida por Genette de Auerbach. É a página em que me lembrei de uma sintonia com Genette – não a inveja de Auerbach... -: a paixão por Marcel Proust e o quanto a Recherche haveria de ser objeto da investigação de Genette.

Refutando dicotomias de inspiração formalista, Genette propõe o tripé da narratologia: história (conteúdo narrativo), narrativa (o enunciado) e narração (o ato produtor) (p. 23 e 24) e tira do estudo das relações entre esses elementos três conjuntos de noções sintetizadas a partir da gramática dos verbos, são elas: tempo, modo e voz (p.25). O livro de Otto tem cinco capítulos, três deles são para essas categorias.

Nesses três capítulos, o leitor vai ser testado... Sim, são anacronias, analepses, prolepses, pausas descritivas, perspectivas, focalizações... que podem desesperar. Mas não devem. Todo mundo pode ler e apreciar um texto literário, ignorando por completo o que é uma analepse interna homodiegética completiva. Pode ler o reconhecimento da cicatriz de Ulisses, sem compreender que isso é uma analepse parcial (p. 32), mas como todo campo de conhecimento - e o estudo da narrativa é um campo de conhecimento e de investigação sim! – há a prática da pesquisa que se faz por meio de teorias e abordagens (há diversas), que compreendem, por sua vez, categorias próprias que o estudioso deve procurar estudar e avaliar criticamente. Aqui está o meu real interesse pelo livro e o meu convite aos que trabalham com a narrativa (em diversas áreas), para que leiam o ensaio de Otto.

Eu não acho que a literatura brota de uma realidade suspensa do mundo em que eu habito... não existe um “cérebro extirpado” contemplando o “mundo exterior” (todo mundo reconheceu a importância de Bruno Latour para mim aqui...), a literatura integra o mundo em que os homens e mulheres vivem e escrevem! Tem outro “rs” na margem da página 79, na crítica do meu amado Paul Ricoeur... Então, eu refuto o pensamento de Genette? Claro que não. Eu acho que esses grandes pesquisadores da narrativa mergulharam profundamente na compreensão do texto, desenvolveram categorias operativas, que quem acredita que a literatura habita o mundo deveria também estudar. Então, quem estuda literatura seriamente pode se beneficiar da luz emanada por determinados conceitos pensados por esses teóricos sobre a sua leitura do texto.  

Otto Winck está muito longe de ser um leitor acrítico da teoria que ele apresenta. Ele reconhece trechos confusos e propõe revisões, como a das funções do narrador (p. 110). Ao final, entrevi a sua própria aproximação dessa teoria, na provocação de Genette escolhida para a avaliação do lugar da narratologia: “de que valeria a teoria se não servisse também para inventar a prática?”. Otto pensa e cria com a sua biblioteca.

Meu aplauso para o editorial Casa e para seu editor chefe Valdemir Paiva, por sua ousadia de publicar uma obra necessária, consciente de que ela não encontra um público amplo. A Casa se junta a outras editoras ousadas na cidade de Curitiba – e temos muitas nessa cidade! - que sabem da sua responsabilidade e fazem um trabalho importante e criativo para leitores vorazes dos mais diversos interesses pelo Brasil.

Domingo de manhã


#editorialcasa 

 

 

 



[1] WINCK, Otto Leopoldo. Minha pátria é minha língua: identidade e sistema literário na Galiza. Curitiba: Appris, 2017. 

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