Há 5 anos, o
coração do meu pai parou de bater. O coração ambíguo dos Guimarães: forte na
intenção e frágil entre socacos da fisiologia e das escolhas da vida. Meu pai
acreditava que adentraria em uma outra vida e eu espero que sua crença tenha
encontrado uma resposta ainda mais bonita que a sua esperança. Nesses 5 anos, a
memória do seu passamento foi vivenciada por mim e por minha mãe com a
tradicional marcação de missa e ponto na Igreja. Este ano isso não me passou
pela cabeça. Estou brigada com a igreja em que me criei? Brigada não é palavra precisa, mas o fato é que tive uma outra
idéia e, ao encerrar o dia, com uma serenidade rara, acho que acertei, sem acumular
dívidas. Esse texto é sobre memória e tempo.
Ao longo da
semana, encasquetei de preparar a carne assada dele e, como minha mãe está
hospedada em minha casa, recuperando-se (bem) de um problema de saúde, pedi a
ela que fizesse no almoço do dia 5 a sobremesa favorita dele: manjar branco. Já
preparei a carne assada de meu pai muitas vezes, mas é fato que, desde que ele
se foi, não tinha voltado à receita. Bem, voltar à receita talvez seja
demasiado..., nunca houve receita em papel. O que sempre houve foi a observação
de um modo de fazer.
Papai
gostava de cozinhar. Seu repertório era modesto, mas suas poucas especialidades
eram de fato únicas em matéria de sabor. Sua carne assada era imbatível e os
bifes à milanesa, creioemdeuspai... Ele me ensinou de forma mais detida os
bifes à milanesa e sua técnica de congelamento e descongelamento, que utilizo
com respeito e confiança. Mas a carne assada..., era mais reparar nele.
Sua carne
assada leva 4 horas para ficar pronta. Não 3 horas e meia; não 3 horas e 45
minutos; não 4 horas e 15; 4 horas e fim; e não existia panela de pressão para
facilitar. Papai considerava uma concessão (absurda) à preguiça recorrer à
pressão. Colocava obviamente o feijão na pressão, mas a sua carne, jamais. Essa
carne era meio que o papai. Nunca vi meu pai de preguiça. Acordava cedíssimo,
dormia cedíssimo, lia muito, estudava outro tanto. Quando tinha casa com
jardim, arrancava matinhos invisíveis. Quando se mudou para o pequeno
apartamento de Teresópolis, as paredes eram mais brancas que véu de noiva; a
gente não andava por lá, flutuava sob seu olhar vigilante de poeiras
impossíveis. Aposentou-se e vivia absorvido por tarefas.
Papai
gostava de alcatra e gostava de incluir uma linguiça na peça, bem no meio, e
isso sempre deu um gosto muito especial ao prato. A carne dele é uma carne de
panela. Papai a preparava em pé, colocava água aos pouquinhos, uma coisa
impressionante de paciência de Jó. Jogar um monte de água também não se punha!
Coisa de preguiçoso. E ele ficava ali, de pouquinho em pouquinho. No calor, sem
camisa, um 4 com as pernas levemente arqueadas. Papai tinha 1,80 m de altura,
era um senhor cozinheiro com seus copinhos: o de água para refrescar a sua
carne e o de coca/cerveja/vinho para molhar a garganta. Ele falava enquanto
preparava. Conversava. Narrava. Conversava quando queria ouvir o público;
narrava quando queria apenas ser ouvido. Na última hora da carne, ele incluía
batatas. Se eram muito grandes, cortava-as apenas ao meio; se médias, iam
inteiras. Virava a carne na metade do tempo do preparo, então só uma vez. Esse
é o segredo da integridade de suas batatas.
Papai não
gostava de salada nenhuma. Sua carne era a sua maravilha, que admitia a
companhia das batatas, do arroz branco e do feijão preto. Nós, de vez em
quando.
Nunca vi
meu pai temperar a carne, sei que o fazia com antecedência. Mas o que colocava?
Eu fiz várias tentativas ao longo dos anos com resultados mais ou menos
próximos. Este ano pedi ajuda. A ajuda é presente, um futuro que meu pai não
teve acesso.
Minha
companheira é uma exímia cozinheira e esse ano reuniu mais ajuda para
reconstruir a possibilidade de um tempero que ela nunca provou, engajada no
desejo de partilhar a minha memória. Fez ligações, escreveu mensagens. Minha
sogra entrou em jogo. Sugeriu. Os tempos desencontrados na vida ordinária, mas
encontrados na minha vida se juntaram todos para fazer o almoço de hoje.
Começamos na véspera, na salmoura, nos temperos da peça de posta vermelha que
precisou ser refeita! Constrangido pelo hábito no estabelecimento, o açougueiro
temperou... Pedi desculpas, mas esse prazer/tarefa tinha de ser meu, nosso. Sem
preguiça.
Minha mãe
também começou e terminou na véspera. O manjar precisa descansar na geladeira.
Nem todos apreciam ameixa, então tivemos duas caldas. A leve intolerância à
lactose de mamãe impôs outros leites. A textura mudou. Papai apreciaria? Eu
repeti três vezes a sobremesa.
Às 9:00 de
hoje, comecei a carne. Sem coca-coca, sem cerveja, sem vinho, com chimarrão.
Quê?! Quando me dei conta, ri. O aroma da erva em contato com os aromas
exalados da cebola, da sálvia, do louro, do vinho branco... mudariam o
resultado? Trouxe a poesia portuguesa e um ensaio para me fazer companhia,
enquanto vivi a paciência de Jó do copinho. O ensaio se intitula Lápide e versão[1].
Achei tão curiosa a minha escolha! Papai não fazia duas coisas ao mesmo tempo;
eu faço inúmeras e não tenho orgulho.
4 horas.
Comida de 4 horas não se faz pra qualquer um. Em um domingo hesitante ou
performático, a depender do juízo de valor que meus raros leitores vão fazer da
chuva e do sol ao longo de todo o dia (!), exigi da filha que ao menos trocasse
o pijama para o almoço. “Não precisa roupa de sair”, mas eu não sentaria à mesa
do almoço de pijamas com meu pai...
Eu servi. Mamãe
primeiro. Papai servia. Não rezamos, brindamos à sua memória. Uma parte do
tempo à mesa foi conversa, memória; outra, apreciação do quão perto cheguei do
sabor original graças à participação de pessoas que só conhecem meu pai por
fotografias, pelas ondas no meu cabelo, pela minha risada, pelo (tamanho) do
meu nariz.
A carne
assada do meu pai é um modo de falar do meu pai no presente. Ao meu lado
direito, entre aérea de sono domingueiro e faminta da carne, estava o futuro
dele, meu, o tenro ramo florescente da nossa árvore. Cachos, a negra cabeleira,
negros olhos... nariz surpreendente! Um caracacá veio pousar nos seus ombros
para desenhar possibilidades imprevistas para mim. Comeu rápido. “Dá licença”.
Toda. Um dia, o desejo dela pela memória pode me fazer companhia nessas 4
horas. Ou não.
[1]
Do meu mestre e amigo Jorge Fernandes da Silveira. O livro é sobre a poeta
portuguesa Fiama Hasse Paes Brandão.
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