segunda-feira, 28 de agosto de 2017

GLÓRIA - ensaio biográfico de Thaís do Rosário, sobre a escritora peruana (ou brasileira do Peru?) Glória Kirinus

Ao longo desta semana e da próxima, LITERISTÓRIAS tem a alegria de publicar textos de alunos da disciplina "Narrativas biográficas e autobiográficas: práticas e reflexões", ministrada pela criadora do blog, ao longo do 1o semestre de 2017, no PPGHIS-UFPR.
Hoje, o ensaio biográfico "Glória", escrito por Thaís do Rosário, sobre a escritora Glória Kirinus. Agradeço à biógrafa e à biografada por terem concordado em publicar e em ver publicado aqui o texto que segue. Boa leitura! 

GLÓRIA

Por Thais do Rosário[1]

GOLONDRINA

“Mi palabra favorita del español es Golondrina.[1]
La golondrina es un ave migratoria que viaja anunciando la llegada de la estación de las flores. Igual que al ave, Gloria salió de viaje y adonde va anuncia el florecimiento de las palabras. Diferente de la golondrina de Caetano[2], esta amada peregrina no vive errante y angustiada por no residir en su patria, pues hace de cada rincón por donde pasa su hogar, decorándolo con un jardín de versos que nunca morirán bajo los cuidados de los labradores de palabras a los cuales dio vida.

***

Glória Mercedes de Valdivia Kirinus: “palavreira de nascimento”[3]. Sua jornada teve início no inverno de 1949 em Huancayo, uma cidade peruana situada ao leste da cordilheira central dos Andes cujo nome remete ao passado pré-colonial que insiste em resistir entre a arquitetura do colonizador. Os huanca foram um povo guerreiro conquistado pelo Império Inca e quase dizimado pelo Espanhol. Sobreviveram, se não pela fé, pela palavra. Ama sua, ama llulla, ama quella - não seja ladrão, não seja mentiroso, não seja ocioso -, saúdam-se ainda em quechua alguns moradores de pequenas vilas nos arredores da cidade.
Um ano antes, na bucólica Llata, capital da província de Huamálies, casavam-se Otilia Galvez Valdivia e Alfonso Valdivia de Alarcón. Da união,  além de Glória, nasceram Carlos, com quem la hermana mayor passou muitas tardes jogando xadrez, e a caçula Fresia, filha da capital peruana, onde a família passou a residir por conta do trabalho de Alfonso como professor da Gran Unidad Escolar Ricardo Bentín.
Glória herdou da mãe a inquietação que se propaga nas ondas do cabelo, a força exposta nas molduras semelhantes de seus olhos e a elegância esculpida em seu nariz esguio. Do pai, a maestria com as palavras. Sócrates, como foi chamado por seus amigos de juventude, não foi filósofo. Por um triz. Foi poeta. Em seus versos cantou Cotahuasí – “sua Itabira”[4] -,  amores, aprendizados e lugares pelos quais passou. A cidade natal de sua primogênita definiu como “Un paréntesis de eucaliptos señoriales / hamacando su sí pausadamente, / pinceladas que sonríen entre las vértebras del Ande,/ es tal vez la perspectiva de algún embrujado Edén.”[5]
Embora tenha um berço detido pela beleza da cadeia de montanhas, Glória logo foi levada pelos pais para viver a orillla da saída para o mundo pelo Pacífico. Foi em Lima, durante a secundaria, que corresponde ao Ensino Médio no Brasil, que teve a oportunidade de fazer sua primeira viagem internacional quando um concurso literário promovido pela Cruz Vermelha a levou para o Canadá.
Viajar é ir e vir com o coração abarrotado de saudade, ou “cargadito de recuerdos”[6], como traduziria nossa escritora. Recuerdos que despertam nossa consciência para o que nos é alheio e apuram nossa percepção para reparar no que sempre esteve debaixo de nosso nariz. Tomada pelo desejo de conhecer o próximo e conhecer-se pelo próximo, Glória estudou seu primeiro curso superior na Escuela Nacional de Turismo, também na capital peruana, graduando-se em 1971.

CATAVENTO

“Minha palavra favorita do português é catavento.”[7]
O catavento é um utensílio simples que aponta a direção dos ventos que o movem. É também um brinquedo, cujas lâminas em papel colocadas sobre uma vareta se parecem a um ventilador. Como o catavento, Glória deixou-se levar por ventanias de vocábulos, indicando uma direção a outros profissionais da educação e divertindo as crianças com seus jogos palavras.

***

Ainda na década de 1970, os ventos em Lima apontaram em direção ao Brasil. Ao chegar, Glória escutou muitas vezes: “Fulano está com dor de cotovelo.” Eram tantos os Fulanos que se assustou com o que lhe parecia ser uma epidemia e, prontamente, buscou um farmacêutico para dar-lhe as instruções de prevenção. Logo descobriu que se tratava de uma expressão popular. Encantadora! E que a epidemia da qual sofria o país naquele momento era outra.
Sussuravam por aí: “Cuidado! não se pode falar isso.” “Não se pode dizer aquilo.”  O medo sufocante que silenciava era sintoma de um regime militar que repreendia os que ousassem tratar-se. Mas Glória, como boa latino-americana, soube amar nos tempos do cólera. Casou-se com um brasileiro, Gernote Kirinus, teólogo gaúcho de 1948, que se destacou na militância política durante a ditadura brasileira, experiência que resultou na obra “Entre a cruz e a política”.
Na festa de casamento gravada pelo Beta Clube Curitiba, vemos, entre chuviscos de baixa definição e as cascatas de renda que caem sobre o rosto de Glória, sorrisos e olhares trocados com noivo. Após receberem os convidados, o tradicional brinde cruzado e a valsa do casal. Tiveram três filhos curitibanos: Dante, Helmuth e Nanci Kirinus. Deram-lhes netos, para quem Glória cozinha riquísimos platos peruanos nos intervalos entre a Galinha Pintadinha e o som do violão do pequeno Eduardo.
Como “o amor facilita as coisas”[8], Glória rapidamente aprendeu português. Para desenvolvê-lo estudou Letras - Português na Universidade Federal do Paraná de 1983 a 1986.O idioma semelhante despertou-lhe mais interesse em sua língua nativa e de 1987 a 1991 estudou Letras – Espanhol na mesma universidade. Nesses anos, começou a escrever em português, depois em espanhol e, atualmente, grande parte de suas obras são bilíngües.
Aprofundou-se nos estudos literários com um mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e obteve o título de mestra em 1992 através da dissertação “Entre-vivendo a conspiração mito poética da criança na pós modernidade”. O doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo foi concluído com a tese “Meia volta – volta e meia em torno das cantigas de roda de Cecília Meireles e Gabriela Mistral”, que lhe concedeu o título em 1998.
Para Glória, “a escrita tem seu tempo, seu aroma especial, sua alquimia”[9], como os chás. Sua infusão literária já havia começado a esta altura, sua primeira obra publicada foi: “O sapato falador”, em 1985, pela Nórdica. Poemas em português, em um jogo de palavras que promove “a comunhão dos opostos e o clarão de um olhar renovado.”[10] Desde então, lançou mais de 21 livros entre obras literárias “adulto-infanto-juvenil”[11] e livros teóricos, sendo o último “Te conto que me contaram” / “Te cuento que me contaron”, que saiu em 2017 pela Editora Inverso.  
Nossa escritora peruana também é professora e teve como primeira experiência docente o ensino de literatura brasileira em uma faculdade privada de Curitiba. Depois, trabalhou como professora dos cursos de Letras e Secretariado Executivo na PUC-PR campus Curitiba e ministrou aulas de Didática em diversos cursos da UFPR. Trabalhando em cursos de áreas distintas do conhecimento, como a matemática, Glória teve a oportunidade de conviver com pessoas cuja narrativa se apresentava em forma de números. E conseguiu fazê-lo também ao contar uma história unindo os números e as palavras: “Os números primos e seus sobrinhos”.
Além das aulas nas universidades, Glória ministrou diversos cursos e oficinas de escrita em muitas instituições. Atualmente, dedica-se ao seu projeto Lavra-Palavra. Os encontros têm o intuito de fazer com que os participantes reflitam sobre as palavras e as possiblidades de expressão. Para escrever, Glória diz que é preciso ser paciente, contemplar as palavras, pensá-las e então  delirar. Deste projeto saíram muitos escritores, daí o apelido dado por um amigo: “fábrica de poetas”.[12]
Essa fábrica de poetas acredita que, na verdade, todos têm uma sementinha de poesia dentro de si esperando para ser regada. É, portanto, uma espécie de lavradora. E diz que, às vezes, precisa se segurar para não pedir às pessoas com quem conversa: “ei, anota aí, você acabou de dizer dois versos.”[13] Foi assim, sabendo ouvir, que Glória começou a escrever. 
Foi ouvindo outros idiomas, aprendendo-os, que reparou no seu castelhano. Algumas línguas levaram-na. Fizeram-na girar como o catavento. O inglês, sua segunda língua, levou-a ao Canadá.  O francês, à França, para estudar um pós-doutorado em Sociologia na Université Paris Descartes. O português a trouxe. E trouxe-lhe: amor, família e poesia. É sua “língua literária”[14], a língua que poetizou seu castelhano.
Sobre o espanhol Neruda escreveu: “Qué buen idioma el mío, qué buena lengua heredamos de los conquistadores torvos... Estos andaban a zancadas por las tremendas cordilleras, por las Américas encrespadas, buscando patatas, butifarras, frijolitos, tabaco negro, oro, maíz, huevos fritos, con aquel apetito voraz que nunca más se ha visto en el mundo... Todo se lo tragaban, con religiones, pirámides, tribus, idolatrías iguales a las que ellos traían en sus grandes bolsas... Por donde pasaban quedaba arrasada la tierra... Pero a los bárbaros se les caían de las botas, de las barbas, de los yelmos, de las herraduras, como piedrecitas, las palabras luminosas que se quedaron aquí resplandecientes... el idioma. Salimos perdiendo... Salimos ganando... Se llevaron el oro y nos dejaron el oro... Se lo llevaron todo y nos dejaron todo... Nos dejaron las palabras.”[15]
O português é também ouro deixado pelo colonizador. E Glória sabe tratar cada pepita de português e de espanhol com a destreza de um ourives. De un orfebre.  Coincidentemente, nossa “peruana do Brasil e brasileira do Peru”[16] recebeu um nome comum aos dois idiomas. Entre tantas buenas cosas, en portugués y en español, Gloria es: persona que ennoblece o ilustra en gran manera a otra u otras. Glória enobrece a todos que têm a sorte de entrar em contato com seus versos, seja pela palavra escrita ou falada. Así que mi palabra favorita del español es Gloria. Do português, também.

NOTA DA AUTORA

No dia 31 de maio de 2017 durante, a convite da professora Marcella Lopes Guimarães, Glória Kirinus, professora e escritora, e Eleidi Freire Maia, professora aposentada e geneticista, apresentaram-nos suas trajetórias na aula da disciplina de Teoria da História e Historiografia do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná para que pudéssemos escolher alguma delas e biografá-las. Imediatamente após ouvir suas falas, decidi-me por escrever sobre Glória pelo gosto que tenho pela literatura e pela proximidade que senti em nossas experiências com o português e o espanhol.
 Mas se escrever a biografia de alguém é um desafio, como aponta Dosse no título de sua obra estudada na disciplina, escrever a biografia de alguém que lida tão bem com as palavras me pareceu um desafio ainda maior. A tentação de fazer-lhe perguntas e deixar que construa a narrativa, transformando-a quase em uma autobiografia, é grande. Por esse motivo, optei por fazer-lhe apenas duas perguntas cujas respostas seriam os títulos dados as suas fases de vida no Peru e no Brasil. Sim, comecei pelo título.
Essas perguntas foram inspiradas por um projeto realizado pelo Instituto Cervantes em 2011 para celebrar o dia 20 de junho, o Día E, que comemora, desde 2009, o a língua espanhola.[17] Neste projeto, perguntou-se a uma série de falantes da língua conhecidos (Ricardo Darín, Mario Vargas Llosa, Antonio Banderas, Shakira, Margarita Salas, etc.) qual sua palabra favorita do espanhol. Perguntei a Glória sua palavra favorita do espanhol e do português, mas, diferente do projeto, não pedi que as explicasse ou se explicasse.
Nossas coisas preferidas mudam frequentemente, mas no momento da pergunta as palavras favoritas de Glória foram golondrina e catavento. Para escrever assisti e li muitas entrevistas. Nessas, Glória sempre fala de sua trajetória de maneira poética, diz-nos muito de suas sensações, como percebe a vida, porém revela poucos dados de sua vida pessoal. Assim que também precisei investigar seu perfil social do Facebook e servir-me de algumas informações encontradas nos perfis de seus familiares, sobretudo no de seu irmão Carlos.
As notas, optei por deixar ao final para não interromperem a narrativa, pois são somente referências dos lugares de onde vieram e não informações essenciais para compreender o texto no momento da leitura. Coloquei-as também sem preocupar-me com as normas da ABNT, usufruindo da liberdade da proposta do trabalho. As fotos do final têm, igualmente, suas referências.

A biografada Glória Kirinus, no dia 31/05/2017, quando compartilhou com os alunos da turma a sua trajetória. Foto da criadora do blog.

A biógrafa Thaís do Rosário, em fotografia do álbum do FB, de 2016.



NOTAS


[1] Thaís do Rosário é aluna do Mestrado do PPGHIS – UFPR e pesquisadora discente do NEMED (Núcleo de Estudos Mediterrânicos).


[1] Glória respondeu à pergunta: “¿cuál es tu palabra favorita del español?” via Facebook, no dia 29 de junho de 2017.

[2] É a 14ª faixa do CD “Fina estampa”, lançado em 1994.

[3] Glória se define assim em http://gloriakirinus.com.br/

[4] É assim que Glória se refere a Cotahuasí, comparando-a  a Itabira de Carlos Drummond de Andrade, no blog dedicado à memória de seu pai: http://amautadecotahuasi.blogspot.com.br/

[5] O poema também está disponível no blog supracitado.

[6] Essa tradução foi feita no livro “Te conto que me contaram”/ “Te cuento que me contaron”, publicado pela editora Inverso.

[7] Glória respondeu à pergunta: “qual sua palavra favorita do português?”via Facebook, no dia 29 de junho de 2017.

[8] Frase de Glória em apresentação de sua trajetória, a convite da professora Marcella Lopes Guimarães, na disciplina de Teoria da História e Historiografia do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, no dia 31 de maio de 2017.

[9] Em encontro do Lavra-Palavra gravado e exibido pela TV É Paraná no programa Gente.com, disponível em: https://goo.gl/tco3N2

[10] Descrição do livro em http://gloriakirinus.com.br/

[11] Fala de Glória em sala de aula durante sua apresentação do dia 31 de maio supramencionada.

[12] Informação dada pela entrevistadora, Mira Graçano, no programa Gente.com.
[13] Fala de Glória na entrevista a Mira Graçano.

[14] Dizeres de Glória na mesma entrevista.

[15] Pablo Neruda em sua autobiografia “Confieso que he vivido”.
[16] Também é parte da autodefinição de Glória em seu site.

[17] O projeto está disponível em: https://goo.gl/3LmJVE

2 comentários:

  1. Que coisa mais linda!! Quando a vida de uma poeta vira poesia pura...Amo a Glória, amei o projeto.

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  2. Muito obrigada por sua leitura e visita ao blog!

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