Para minhas amigas geniais
Comecei a ler a tetralogia de Elena
Ferrante (A amiga genial; História do novo sobrenome; História de quem foge e de quem fica; História da menina perdida. Trad. de
Maurício Santana Dias. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015-2017) dentro do clube
do livro consagrado a Marcel Proust. Um dos membros, Raphael Lautenschlager, em
um café da manhã do clube, contou-nos a história do primeiro livro e eu fiquei
fascinada. Poucas semanas depois, duas amigas minhas faziam aniversário. Achei
que oferecer A amiga genial era uma
boa chance de garantir que, depois que a primeira das duas terminasse, eu
pudesse também ler a obra e discuti-la com elas. Dei os volumes, mas não
aguentei esperar e em um fim de domingo corri ao shopping atrás do livro. Ler o
primeiro volume ao mesmo tempo em que lia Proust foi uma experiência
maravilhosa e só confirmou (não que o fato precisasse) o quão benéfico é ler
várias coisas ao mesmo tempo! Acho que, desde que me tornei uma leitora, eu leio
vários textos ao mesmo tempo. Mas ler Proust e Ferrante juntos foi confrontar
ritmos diferentes até o paroxismo e me fascinar com essa diferença gritante. A
princípio, pensei que, enquanto em Proust às vezes nada acontece ao longo de
várias páginas que nos arrebatam entretanto, em Ferrante, os acontecimentos nos
envolvem em um ritmo alucinado. Mas isso era uma falsa pista e depois descobri
que os acontecimentos, eles são sim abundantes no texto dela, não são
exatamente a diferença, mas sim a forma da sua exteriorização. Em Proust, os
mais importantes eventos são o seu impacto sobre o narrador e a sua reflexão
sobre eles, sentamos à frente de Marcel (sim, o narrador também é Marcel...)
para ele nos explicar e ele nos explica bem; em Ferrante, é como se
adentrássemos os palácios de Menelau[1], se ele tivesse habitado
algum dia a Nápoles pobre e violenta onde nasceram Lila, Lenu, Enzo, Nino,
Antonio, Stephano, Alfonso... Não piscamos. A narradora Lenu tem uma câmera no
ombro; seu texto é urgente, pois enquanto “caminha” as cenas se sucedem. Ela
não usa perífrases (mesmo levando em conta a robustez dos volumes), sua sintaxe
é direta; suas frases são curtas. Quase não há circunlóquios e como tudo é
urgente, às vezes não sobra muito tempo para um real empenho de compreensão.
Mas fora do texto – de Ferrante e
de Proust – aconteceu um fenômeno interessante enquanto eu lia. À medida que eu
relatava nas redes sociais meus percalços de leitora/de leitura, eu descobria
outras pessoas tomadas pelo texto de Ferrante. Eu usei o verbo tomar, mas
poderia ter usado possuir, pois em alguns momentos fui possuída pelo texto e
pressenti que mais gente se sentia assim. Eu li a tetralogia vorazmente, mas
houve dois momentos em que precisei parar. Precisei parar, porque a minha
personagem adorada (acho que de todo mundo: Lila) começou a sofrer coisas
desmedidas que, por conta do texto e da sua possessão, me trouxeram um
sofrimento muito real. A segunda parada durou oito dias. Nesse intervalo,
entreguei-me a Marcel Proust e à corrente que conheço bem, há quase dois anos
lendo os volumes de Em busca do tempo
perdido.
***
A tetralogia de Elena Ferrante vai
agradar aos leitores que gostam de textos em que julgam que a História e a
Literatura estão imbricadas. Emprego “julgam” porque a História sempre está na
Literatura, a despeito dos formalismos, e ela está na sugestão, na relação de
ideias única, nas metáforas e em tudo aquilo que é tão sutil e miúdo que
sobrepuja, entretanto, qualquer alusão explícita aos acontecimentos de uma
determinada época. No caso da tetralogia, a relação entre História e Literatura
deve ser buscada muito além das datações explícitas e da referência a fatos
sucedidos (que existem para o deleite dos que valorizam isso), e deve ser
encontrada na maneira como essa narrativa é construída, a partir da narradora
feminina. A voz do texto é muito contemporânea. A maneira como afirma e o que
afirma foram conquistas difíceis: a conquista de afirmar. Quando a narradora declara:
“Por mais que agora eu escrevesse e falasse a torto e
a direito de autonomia feminina, não sabia prescindir de seu corpo [do corpo de
Nino], de sua voz, de sua inteligência. Foi terrível ter de confessá-lo, mas eu
continuava gostando dele, e o amava mais que a minhas próprias filhas” (História da menina perdida, pág. 91).
O que está escrito aí é que uma
mulher que escrevia e palestrava sobre o feminismo não podia deixar a cama de
um homem que fora amante de sua melhor amiga e que colaborou para o desespero,
e quase ruína, desta. O que está escrito aí é que uma mulher podia viver sem as
filhas e periodicamente até as esquecia, na cama desse homem. A tetralogia não
é recomendada a quem tem estômago fraco ou a quem se apressa em julgar a
literatura segundo as suas “superiores” formas de viver. O que há nesse texto
de extraordinário – e estamos falando de literatura! – é a coragem de afirmar.
Isso é uma conquista estética e histórica.
São quase cinquenta anos na
paisagem, na vida e no corpo das personagens. Das meninas com suas bonecas
favoritas, passamos às transformações da puberdade, o crescimento dos seios, a
menarca, a descoberta do desejo; ao amor; aos casamentos; aos estudos; à
gravidez, os filhos; aos choques matrimoniais, as separações, reconfigurações
afetivas, à maturidade, ao envelhecimento. Mas Ferrante não separa o público do
privado. Está tudo misturado na vida de Lila e Lenu. O poder de D. Achille e
dos criminosos Solara é enfrentado por Lila desde a infância: na demanda pelas
bonecas Tina e Nu e na reação contra o assédio dos irmãos Marcello e Michele.
Enquanto Lenu se afastava do bairro, ampliava seu próprio mundo, as mulheres
percorriam com ela um caminho de possibilidades mais largas no contexto. Ela é
parte disso. Mas Lila fica, porque as oportunidades estão muito longe de serem
democráticas naquela Itália dos anos 50 e 60...
Na vida adulta, o início da era da
informática em que estamos, da extraordinária transformação que os computadores
operaram em pequena e grande escala abarcando toda a nossa vida, também afeta o
bairro! É Lila quem aprende a lidar com eles, que monta mesmo uma empresa e
ganha dinheiro, sem ter jamais concluído o 5º fundamental... Ela que escreveu
um livro na infância, que abismou a professora com sua inteligência(!), só não
conseguiu mover-lhe a generosidade. Essa professora Oliviero... Há uns
professores desagradáveis na tetralogia.
A corrupção atravessa a obra. A
grande corrupção do Estado, as falcatruas, desvios de verbas que comprometem
personagens que vimos crescer, como Nino, ou personagens que julgávamos
ilibados, como o Prof. Airota, sogro de Lenu. A corrupção também está no
bairro, nas relações e crimes dos Solara. Está na fábrica de embutidos de Bruno
Soccavo, constrange as mulheres assediadas pelo patrão, pelos colegas, Lila...
Em meio a tudo isso, não esperem de
Ferrante o encômio das esquerdas. Não sabemos jamais se o marceneiro comunista
Alfredo Peluso realmente matou D. Achille, nem por que o teria feito; mas vemos
seu filho Pasqualle assumir a luta armada, envolver-se com a esquerda letrada
na pessoa de Nadia Galiani e ser por ela finalmente traído, depois que ambos
são presos. Fica claro que Nadia vai se livrar, com uma lista de delações, que
implica mesmo esse personagem que admirei tanto, Enzo. Mas Pasquale não sai
elogiado, ele se perde no texto.
A Itália de Ferrante me pareceu tão
próxima de repente...:
“Mas depois a situação se complicou. Uma corrupção
de longuíssima data – comumente praticada e comumente sofrida em todos os
níveis como norma não escrita, mas sempre vigente e das mais respeitadas – veio
à tona graças a uma repentina inflexão da magistratura. Os meliantes de alto
coturno, que a princípio pareciam poucos e ineptos que foram flagrados com as mãos
nas arcas, se multiplicaram a ponto de se tornarem a verdadeira face da coisa
pública.” (História da menina perdida,
pá. 432).
Ferrante, é mesmo a sua Itália
literária?
A violência é grande na tetralogia.
O sangue. Falei que quem tem estômago fraco não deve ler. Pessoal, no primeiro
volume, Fernando Cerullo, o pai de Lila, arremessa a filha pela janela!! Nenhum
agente do juizado de menores vai bater à sua porta... As surras, tapas,
feridas, violência sexual doem em nossos olhos. O que é noite de núpcias de
Lila?... Ou mesmo de Lenu (embora muito mais branda)? Compreendo que a
dedicação ao corpo das mulheres em que se destaca Nino tenha virado a cabeça
dessas amigas... Compreendo, amigas. Ainda que, cá entre nós, eu tenha odiado
esse personagem com toda a minha energia de leitora e mulher.
Há, portanto, uma profunda e bem
realizada conexão entre o público e o privado nessa obra, graças à narração.
Lenu é uma escritora de sucesso e é ela quem “escreve” a história! Sim, toda a
tetralogia é um empreendimento de escrita e compreensão de um fenômeno, Lila, e
da profunda e visceral amizade entre as duas. Já escrevi muito sobre como a
amizade é para mim o verdadeiro amor[2], e a obra de Ferrante revela
isso. Algumas das cenas mais bonitas, e há uma abundância de coisas muito feias
nessa tetralogia, são as vezes em que há proximidade física entre as duas. O
que é o banho que Lenu dá em Lila para o casamento desta (A amiga genial, pág. 313)? É uma cena linda! Um batismo entre
mulheres. O corpo da corajosa Lila sempre precisa de cuidados na catedral[3] de Ferrante...
Há uma grande mistura entre as suas
vidas. Porém, uma mistura muito singular. Às vezes em que parecia que Lila
vivenciava uma situação mais favorável, Lenu não estava bem, e quando Lenu
despontava, Lila se acabava na fábrica de Bruno Soccavo. O segundo volume, História do novo sobrenome, é
particularmente difícil, do ponto de vista de seus acontecimentos; é um volume
de grandes transformações e decepções. Ele é a prova da contra-festa (iniciada
ainda no fim do primeiro), em que a temporada em Ischia representa o ponto
culminante. O terceiro volume, História
de quem foge e de quem fica, por outro lado, consolida essas
transformações.
Quando terminei o primeiro volume,
escrevi pelo twitter para a escritora portuguesa Inês Pedrosa que me sentia
próxima do seu romance Fazes-me falta,
em que a amizade é vivida de forma igualmente intensa[4], ainda que a composição da
narrativa seja tão diferente! Mas, quando falo de amizade, falo de
complexidade, de uma profusão de sentimentos que estão muito longe dos tons
pasteis, falo de odiar. Estou convencida de que Lila e Lenu se odiaram muito.
Lenu escreve para combater a “desmarginação”
de Lila, um conceito inventado por esta: “o contorno das coisas e pessoas era
delicado, (...) se desmanchava como fio de algodão. (...) uma coisa se
desmarginava e se precipitava sobre outra, era tudo uma dissolução de matérias
heterogêneas, uma confusão, uma mistura.” (História
da menina perdida, pág. 168). Lenu escreve para combater o desaparecimento
de Lila. A escrita é a sua maior subversão contra a decisão da amiga genial, de
perder os contornos, desmarginar-se. E a escrita é isso mesmo, desde quando
alguém teve essa ideia. Foi sempre uma decisão tão poderosa, que sociedades já
cinzelaram nomes de indivíduos para condená-los ao esquecimento. A “escrita” de
Lenu constrói, revitaliza, mas ela nos devolve o paradoxo: sem abandonar o
desejo, é impossível, entretanto, abarcar o que nos abisma.
A tetralogia encena ainda uma
relação com outros livros. Desde Mulherzinhas
de Louisa May Alcott, esse
livro tão desejado pelas amigas, passando pela Fada azul de Raffaella Cerullo, a Lila, até os livros lidos e
escritos por Elena Greco, a Lenu; é sobre amar os livros, bebê-los e precisar
deles. É sobre a escrita de si, do outro. Aborda aquilo que pode ser mesmo o
combate entre o sujeito que escreve e as palavras, expõe a luta para encontrar
a melhor maneira de dizer, fadada ao fracasso; revela a insegurança, o desejo
de querer ser lido, reconhecido. Para Lenu converge tudo isso e ainda o
fantasma de Lila: referência, inspiração e desafio.
Eu devorei a tetralogia e a odiei
por vezes. Eu achei algumas bobagens, lugares-comuns, por exemplo, no quarto
volume. Cansaço? Mas não me recuperei do que Ferrante fez com Tina... e acho
que nunca vou. Seguramente esse livro me fez pensar muito. Eu vi minhas amigas
geniais em suas páginas, eu me vi. Ao final, ao lado da constatação que é só de
amizade que fala a tetralogia, que ela se eleva soberana no texto, eu fiquei
pensando na paixão.
Outro dia, no consultório da
dentista, li em uma revista de uns quatro anos atrás um texto que afirmava que
ninguém mais se apaixona perdidamente. Em uma das raras vezes em que Lila
consente em falar por inteiro de Nino à Lenu, ela afirma que ele padecia de um
grande mal: a superficialidade. Fiquei pensando no seguinte: o lugar da amizade
na Literatura contemporânea (eu falei sobre Fazes-me
falta de Inês Pedrosa, mas há outros livros e poderia estender ao cinema!)
é uma resposta à paixão rala que mal nos têm prendido aos homens e mulheres
que, entretanto, temos “amado” por aí? Ralos, eles e elas? Ralos, nós?... Naquele
texto da revista, a autora dizia que nunca mais tinha sido surpreendida por um
telefonema desesperado, a altas horas, de uma amiga em soluços, destroçada por
uma paixão não correspondida ou por uma desilusão. É só uma hipótese, mas acho
que a resposta da Literatura, sua crença na amizade como um amor, é de uma
beleza e esperança que, ainda que não me faça perdoar Ferrante por causa de
Tina, me comove verdadeiramente.
Por outro lado, a que corresponde
essa abundância de Ninos na nossa vida? Talvez aos nossos estômagos fracos.
Então, recomendo esse arsênico literário que é a Tetralogia, para estragar de
vez a digestão dos estômagos veganos, do ponto de vista literário tão somente,
é claro...
Essa foto linda foi tirada por uma de minhas amigas geniais!
Nós estamos na foto, meio desmarginadas, meio divertidas.
Portugal (Leiria) - 2017.
[1] Estou aqui fazendo uma relação direta com o
capítulo “A cicatriz de Ulisses” de Mimesis,
de Auerbach.
[2] Entre vários textos, remeto o leitor ao Diálogo sobre o tempo: entre a Filosofia e a
História. Curitiba: PUCPRess, 2015.
[3] Uso a metáfora que geralmente é empregada
para a obra de Proust.
[4] Escrevi a respeito em: GUIMARÃES, Marcella
L. “O ‘lugar sem lugar’ da palavra em Fazes-me
falta, de Inês Pedrosa”. Anais do XIX Encontro Brasileiro de Professores de
Literatura Portuguesa. Curitiba, 2003.
Muito bom, Marcella! A tetralogia é forte mesmo, o ritmo da Ferrante envolve a gente de um jeito que nos devora, né? Beijos pra vc!
ResponderExcluirObrigada por ter compartilhado comigo esse texto! Beijos!
ExcluirLindo!!! Vou hoje mesmo começar o segundo volume!!
ResponderExcluirMinha amiga genial! Beijos!
ExcluirMeu Deus, professora, leitura perturbadora do seu texto. Impossível dominar a vontade de comprar, pelo menos, o primeiro volume hoje pelo correio...e ficar no sufoco pra receber!!! Amei!!!
ResponderExcluirBel, eu acho que vc vai gostar muito da obra. Há uma discussão muito rica (e dolorosa) sobre a relação mães e filhas, que vale muito a pena e que eu não explorei. Beijão!
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