terça-feira, 29 de agosto de 2017

Uma mulher de ciência - ensaio biográfico de Victor Reis Chaves Alvim sobre a geneticista paranaense Eleidi Alice Chautard Freire Maia

Dando continuidade à série de publicações provenientes da disciplina "Narrativas biográficas e autobiográficas" ministrada no PPGHIS no 1o semestre de 2017, publicamos hoje o ensaio de Victor Reis Chaves Alvim sobre a cientista brasileira Eleidi Alice Chautard Freire Maia.
Na semana que vem, mais 2 ensaios! Boa leitura!

Uma Mulher de Ciência
Descendente de portugueses e suecos por parte de mãe e de franceses por parte de pai, Eleidi Alice Chautard nasceu em novembro de 1942. Um pouco mais de um ano depois, aconteceu algo que marcou sua vida: sua mãe morreu. Por conta disso, seu pai se mudou para a casa dos avós de Eleidi, onde também moravam alguns tios solteiros. Então duas de suas tias a criaram e Eleidi, quando criança, chegava a chamar uma dessas tias de “mama”. Contudo, essa tia a quem chamava de “mama” morreu quando Eleidi tinha 9 anos de idade. Depois disso Eleidi e seu pai foram morar com outra tia, já casada, que também ajudou a criá-la. No geral, Eleidi foi uma criança que recebeu cuidados múltiplos de diferentes pessoas das famílias à qual pertence. Nesse período da vida, Eleidi morou na Rua Doutor Faivre, próxima à Reitoria da Universidade Federal do Paraná. Ela continuou morando no local até seus 31 anos de idade, quando então se casou.
Dos 4 aos 18 anos estudou no Instituto de Educação, instituição que ela recorda com carinho, onde se formou no magistério como professora de primeiro grau. Quando criança no Instituto de Educação, Eleidi terminava de fazer um exercício e então sua professora do primeiro ano do primário, Maria Galvão, a deixava ir até um canto com caixotes cheios de livros que podia ler – o que parece ter impactado positivamente Eleidi Chautard, pois ela comenta a respeito disso num tom carinhoso. No Instituto de Educação, Eleidi também teve aulas com a poetisa Helena Kolodi, que foi importante em sua formação no magistério, além de tê-la fornecido momentos de deleite através das poesias que escrevia. Ademais, foi com Kolodi que Eleidi teve o primeiro contato com as leis de Mendel – fato que Eleidi menciona de um modo que parece ser um “momento de origem” ou de prenúncio do seu interesse e de sua carreira na genética.
Contudo sua primeira atuação profissional não se deu no campo da genética. Quando ela concluiu seus estudos no Instituto de Educação, foi chamada pra ser professora de alfabetização e foi professora de primeiro grau por cinco anos, atividade que lhe foi prazerosa.
No que diz respeito à sua formação que vai além da educação formal, mais precisamente em sua formação religiosa, era católica e fez a primeira comunhão na Catedral Metropolitana de Curitiba, já que ela morava no Centro. Ao longo da infância foi bem ligada à religião católica, mas quando se tornou adolescente, passou a ter conflitos internos ao cotejar aquilo que aprendia na igreja e aquilo que ela entendia a respeito do cristianismo e do que considerava básico numa religião. Então, quando ela completou 18 anos, desligou-se da religião (o que, segundo a própria, foi porque ela dava importância à religião) e considerou que não era necessário estudar textos a respeito da religião. Rejeitou a identidade de católica e passou muito anos sendo agnóstica. Contudo, a pesquisadora hoje afirma que seu comportamento enquanto agnóstica era “ambíguo”, uma vez que ela aceitava ser madrinha quando a convidavam, mesmo já não sendo católica.
É interessante como Eleidi trata “catolicismo” e “religião” quase como sinônimos. Certamente isso tem relação com a sociedade predominantemente católica do Brasil e também possui relação com sua própria experiência religiosa na infância e na adolescência. A contradição entre aceitar ser madrinha e seu agnosticismo pós-católico também é algo interessante na mentalidade de Eleidi Chautard: para ela, o catolicismo também permeava as práticas sociais e de organização familiar, o que abarcava o construto social do apadrinhamento, até porque a ideia de apadrinhamento está de fato relacionada à ideia da promoção de pais espirituais para a pessoa apadrinhada. Como Eleidi considerava-se agnóstica, não poderia logicamente aceitar ser madrinha, mas o fazia, por motivos sociais.
Foi então que, numa cerimônia de crisma de uma neta, quando Eleidi tinha cerca de 50 anos de idade, sua posição teológica mudou. Eleidi disse para sua neta que não iria comungar, porque efetivamente não convém que uma agnóstica comungue. Contudo, Eleidi acabou indo receber a comunhão e nesse momento sentiu uma forte emoção. Decidiu retornar à fé católica – e nisso ela faz lembrar seu marido, que após 42 anos de agnosticismo também retornou à fé católica no final da década de 1980. A mudança foi tamanha que Eleidi passou a frequentar o Instituto Ciência e Fé, criado em 1995 e seu depoimento encontra-se no site do grupo:
“Durante muito tempo, Ciência e Fé, esses dois pilares do conhecimento humano foram considerados antagônicos. Na realidade, possuem fundamentos e características próprias muito diferentes, mas isto não impede que possam compartilhar seus conhecimentos. Sou muito grata ao Instituto pelo que me propiciou nesses 21 anos de existência, reunindo pessoas interessadas nas temáticas debatidas, de todas as religiões e até agnósticos, como fui por mais de 30 anos. Aprendo muito ao participar das atividades, sinto-me também satisfeita e honrada por ser membro do Conselho Consultivo, podendo dar minha pequena contribuição à Diretoria no desenvolvimento dos trabalhos”[1].
Nesses anos iniciais no Instituto Ciência e Fé, Eleidi passou a estudar acerca da religião, em suas palavras. O que fica confuso no tocante a esse assunto é exatamente o que Eleidi chama de religião, uma vez que o instituto é ecumênico. Seria “religião” um sinônimo de “catolicismo” ou de “cristianismo” numa acepção mais alargada? A maneira como Eleidi fala sobre os grupos internos da instituição leva a crer que a noção de “religião” parece ser a de sinônimo de “catolicismo”, uma vez que ela menciona várias freiras e monjas católicas em grupos dos quais fez e faz parte. Algo que chama atenção na fala de Eleidi é a utilização da razão humana nos estudos a respeito do cristianismo nos encontros liderados por Madre Belém e que eram realizados todas as quintas-feiras pela manhã. A ideia faz lembrar o catolicismo dos grandes padres da Igreja Católica durante a Idade Média, sobretudo os escolásticos, que submetiam a fé à prova racional, para justamente reforçar a fé e confirmá-la como verdadeira. Não por coincidência, o grupo de estudos leu alguns teólogos medievais, como afirma a geneticista. Segundo Eleidi, Madre Belém viveu com muita lucidez até os 102 anos de idade. Depois disso não fica claro se o grupo de estudos continua a existir ou não, sobretudo quando levado em consideração o falecimento de uma integrante em 2016.
No que diz respeito à relação entre suas posições religiosas e sua carreira científica, Eleidi afirma que por conta do grupo de estudos sobre religião, ela nunca teve nenhuma contradição entre a ciência, que analisa os fatos de maneira muito crítica e firme, e a religião. Ela afirma ainda que, apesar de se considerar católica atualmente, não segue muitos dos dogmas da Igreja, pois não concorda com eles. Com efeito, essa é uma posição muito frequente entre milhões de católicos pelo mundo. Eleidi diz que o que lhe interessa nas religiões é aquilo que elas têm a oferecer de bom, que remetem à compaixão, ao perdão e à espiritualidade – termo que, segundo ela, “tem a ver com a intimidade com Deus”. Hoje Eleidi escolhe ir a missas de padres que se baseiam “nos princípios mais importantes da religiosidade”. Ora, a ideia de uma fiel que escolhe aquilo que quer ouvir da religião (ou, no caso, das religiões) é um fenômeno típico do fim do século XX e do atual início do século XXI. Não mais constritos ao todo de uma fé, os fieis decidem o que lhes convém e o que não consideram fazer sentido ou que é de menor importância. Tal parece ser o caso de Eleidi (inclusive, pela lógica, mencionar princípios mais importantes da religiosidade implica em assumir princípios menos importantes – seria muito interessante descobrir quais princípios a geneticista considera menos importantes, ou ainda saber se ela cria esta distinção em seu pensamento). Por fim, no tocante aos assuntos religiosos, Eleidi parece sentir um conforto emocional grande por conta da fé, o que também é bastante comum em pessoas religiosas e em pessoas reconvertidas; ela foca na sensação do agora ser mais feliz. Seja como for, Eleidi afirma que hoje ela continua com a mesma capacidade crítica que possuía quando era agnóstica.
Retornando à questão de sua atuação profissional, cabe dizer que Eleidi ficou poucos anos no magistério fundamental; cerca de quatro anos. Contudo, mais tarde a experiência no magistério acabou por se provar útil porque aplicou conhecimentos adquiridos durante essa formação inicial nas disciplinas que lecionou no Ensino Superior, na UFPR. Eleidi pediu demissão do cargo de professora elementar, então, para seguir carreira acadêmica.
Eleidi prestou vestibular pra História Natural em 1962 – um curso que misturava biologia e geologia – o curso foi desmembrado e deu origem aos cursos de Biologia e ao de Geologia, que a UFPR ainda mantém. Eleidi passou no vestibular e começou a estudar, com maior interesse por biologia, área na qual seguiria carreira. No primeiro ano da graduação ela estudou muito probabilidade. Ela foi bem, mas muitos iam mal, “um horror”, em suas palavras. Isso mudou sua vida mental; antes ela era determinista e achava que tudo tinha uma causa geracional só. Depois ela passou a ver que as coisas são questão de probabilidade e que podem ter mais de uma causa. Eleidi afirma que isso foi uma mudança filosófica. Ela passou a ver também o valor do acaso no mundo, porque às vezes há alta probabilidade de determinado resultado se confirmar, mas o que acontece é justamente o que tinha menor probabilidade de acontecer. Ela menciona, inclusive, que o acaso é um dos fatores da evolução das espécies.
No curso de História Natural, Genética era dada em dois anos; no 3º e 4º anos. No curso de História Natural, os alunos do 3º ano tinham que apresentar trabalhos para os alunos do 4º ano, para os alunos do 3º ano e para professores de ambos os anos. O professor de genética no 4º ano era Newton Freire-Maia (fundador do departamento de genética – na época, apenas laboratório de genética, pois o departamento seria criado posteriormente).
Na apresentação do trabalho de Eleidi, num seminário, ela foi convidada para trabalhar no departamento de Genética (pois na época os alunos podiam trabalhar na universidade) junto com outras duas amigas dela. Foram escolhidas porque apresentavam dedicação à ciência. Isso lhe abriu as portas da universidade, porque Eleidi era muito tímida e não teria coragem de pedir para trabalhar no departamento de genética.
Elas participaram, então, de um projeto de pesquisa idealizado e coordenado pelo professor Newton Freire-Maia. Ela considera que a teoria por trás do projeto era complicada para ela na época. Considerando-se ignorante, ela se empenhou em estudar bastante para suprir as lacunas. Por isso passou longas horas na biblioteca do Laboratório de Genética. Na época, o Laboratório ficava no prédio Dom Pedro I, da Reitoria, no oitavo andar, ao lado do atual Departamento de História. Contudo, os estudos e pesquisas não podiam se estender por muito tempo. Quando o relógio marcava cerca de 18:00, todos tinham de sair e ir embora. Isso acontecia porque havia um zelador da UFPR, que assumira comportamento de inspetor, sobre quem ela reclama, que aparecia em todos os andares e dizia que estava na hora de saírem, mesmo quando eles precisavam trabalhar muito por conta de algum congresso. Ela diz também que por causa da ditadura determinados cartazes não se conservavam nas paredes, porque eram retirados pela manhã. Apesar desse cerceamento à liberdade de expressão, o laboratório funcionava como um oásis de “liberdade” dentro da universidade. Com efeito, o próprio Laboratório de Genética garantia liberdades e uma espécie de democracia interna para professores e alunos; os alunos, inclusive, tinha voz ativa nas decisões tomadas nesse ambiente científico.
Quando Eleidi já estava no Laboratório de Genética, ela começou a frequentar congressos de genética e a fazer parte da Sociedade Brasileira de Genética. Nos anos 1960 havia poucos geneticistas no Brasil e por isso as reuniões da SBG eram feitas junto com as da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – uma sociedade que reunia diferentes tipos de ciência). Nas reuniões eles trocavam informações com pesquisadores de outras cidades, que também estudavam genética humana (de populações) –, diferentemente do que ocorre atualmente, pois agora temos um cenário de grande desenvolvimento da Genética no Brasil e um grande número de geneticistas, o que permite que as reuniões da SBG sejam independentes.
Em 1965, Eleidi terminou o curso e antes de se tornar professora da UFPR, ela e amigos dela deram aulas voluntariamente na faculdade! Isso é impactante hoje em dia, porque uma aluna não pode ministrar aulas como ela fazia, por mais que o próprio professor Freire-Maia confiasse em sua capacidade. Só então em 1967 ela se tornou professora auxiliar de ensino e esforçou-se para lecionar boas aulas de Genética e Evolução. Ela afirma que embora fosse professora auxiliar de ensino, suas obrigações eram as mesmas de um professor catedrático. Mas não é muito claro se essa cobrança era objetiva ou se era uma coisa mais subjetiva, algo mais ligado à própria exigência que ela impunha si mesma. Um pouco depois, inspirados pelo Instituto de Bioquímica que existia no prédio histórico da UFPR (na Praça Santos Andrade), muitos professores de diferentes áreas da ciência começaram a procurar criar cursos de pós-graduação tais como o que existia em Bioquímica, num movimento de empenho nacional para a criação de diferentes cursos de pós-graduação no país. Então Eleidi participou de uma comissão para a criação de um curso de mestrado em Genética. O curso teve início em agosto de 1969 e atraiu pessoas que haviam passado tanto pela UFPR quanto pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Ela fez parte da primeira turma de mestrado em Genética e considerou que o curso foi muito bom, pois pôde se aprofundar bastante em seus conhecimentos. Entretanto, ela não chegou a obter o título de mestre, porque ao fim de um ano ela foi agraciada com uma bolsa do Conselho Britânico e, como já falava e lia bem inglês porque havia estudado o idioma na Cultura Inglesa, viajou para a Inglaterra a fim de desenvolver uma pesquisa. Dessa forma, seus estudos de mestrado foram semelhantes a um tipo de especialização.
Antes de ir para a Inglaterra, Eleidi trabalhou numa pesquisa no Departamento de Genética que analisava os efeitos genéticos de casamentos consanguíneos no que dizia respeito a filhos de primos de primeiro grau. Essa pesquisa era transdisciplinar; as crianças eram estudadas do ponto de vista clínico, antropométrico, mortalidade infantil na irmandade. As crianças também eram acompanhadas por pediatras, por psicólogos e por antropólogos da Universidade Federal do Paraná. Os dados foram analisados em programas de computadores por uma equipe da UFPR em conjunto com professores da Universidade de Brasília. Esse projeto demorou muitos anos para terminar, e concomitantemente, Eleidi passou a fazer parte de outro projeto de pesquisa, também orientado pelo professor Freire-Maia, desenvolvido também por Bento Arce Gomez (que viria a ser professor no Departamento de Genética futuramente), cujo objeto de estudo eram famílias que haviam tido filhos com palato fendido e ou lábio leporino (malformações que atrapalham no desenvolvimento da fala, na alimentação e que podem facilitar infecções nas mucosas). O estudo procurou mesurar o risco de recorrência dessas anomalias congênitas em famílias nas quais já existiam filhos com tais condições, o chamado risco empírico. Ao longo dessa pesquisa ela e outros professores da UFPR atendiam também casais que os procuravam para aconselhamento genético, isto é, que queriam entender melhor os riscos que corriam ao procurarem ter mais filhos após o nascimento de uma criança com alguma anomalia.
Já na Inglaterra, Eleidi Chautard fez parte de um tipo de pesquisa completamente diferente, orientada pelo professor John Hilton Edwards (1928-2007), na Universidade de Birmingham. John Edwards era um pediatra e geneticista importante já naquela época, pois em 1960 havia descrito uma anomalia causada pela trissomia do cromossomo 18, que recebeu o nome de síndrome de Edwards, uma síndrome que causa problemas cardíacos e retardo mental e que geralmente leva a abortos ou à morte dos bebês em cerca de um ano.
O trabalho que Eleidi executou junto com John Edwards e outros pesquisadores fundamentava-se em amostras de sangue e dados sociológicos e clínicos de cerca de 700 famílias brasileiras, que foram pesquisadas quanto à ligação de determinados genes. Na época John Edwards, junto com uma analista e programadora, havia desenvolvido uma programação de computador para fazer os estudos de ligação genética. Ademais, Edwards tinha esse material sobre famílias brasileiras, mais especificamente um material recolhido pelo geneticista americano Newton Morton na Hospedaria de Imigrantes em São Paulo majoritariamente de famílias nordestinas que iam morar na cidade. Dessas famílias foram coletadas amostras de sangue e realizados vários testes laboratoriais. O trabalho de Eleidi, então, foi estudar 22 genes entre as amostras recolhidas por Morton e enviadas para a Universidade de Birmingham a fim de descobrir se algum par desses genes estava localizado próximo no mesmo cromossomo.
Durante o tempo em que esteve na Inglaterra, Eleidi Chautard fez parte da Genetical Society (a Sociedade Britânica de Genética), assistiu a várias palestras (de genética e de outras áreas da ciência), apresentou resultados parciais de sua pesquisa no Congresso Internacional de Genética Humana em Paris no ano de 1971 e participou de uma reunião da Genetical Society em Londres, onde apresentou os resultados de sua pesquisa quando a concluiu. Em seu tempo livre, Eleidi esteve em museus de ciência, museus históricos e museus de artes.
Na ocasião em que apresentou dados preliminares em Paris, Eleidi conta que se sentiu especialmente irritada com um professor inglês que estava lá e que, após sua apresentação, resolveu traçar comentários sobre seu charme, e não sobre o trabalho apresentado. O ano era 1971 e Eleidi era uma das poucas mulheres de ciência entre tantos homens de ciência. Além de mulher, também era brasileira, portanto de um país sem tradição científica na área da Genética na época, de um país comparativamente atrasado nos estudos em relação à França ou à Inglaterra e demais países centrais na produção acadêmica da área, o que aumentava a raridade – e a importância – de seu próprio status naquele congresso. Eleidi diz ter agradecido as palavras do pesquisador inglês por polidez, mas ficou irritada, e afirma que se o caso tivesse ocorrido hoje, ela teria brigado com ele. Provavelmente isso está relacionado com a disseminação do feminismo na sociedade ocidental desde aquela época; atualmente ocorrem situações constrangedoras de professores falando sobre a aparência de alunas ou de outras pesquisadoras, mas diferente do que acontecia em 1971, hoje em dia esse tipo de comportamento é cada vez mais considerado como inadequado e inaceitável. Eleidi, que já sentia raiva da situação na década de 1970, hoje teria espaço social para poder brigar com o professor, caso aquela situação tivesse ocorrido nos tempos atuais. Lamentavelmente, a situação se repetiu com uma pesquisadora australiana, que estudava uma população de cangurus, cuja apresentação de trabalho foi excelente. Os homens ingleses presentes, contanto, não a parabenizaram pela boa pesquisa efetuada; traçaram apenas comentários sobre suas botas e suas roupas, que eram bonitas e isso também incomodou Eleidi. Por outro lado, afirma a pesquisadora, no Brasil ela nunca notou problemas de machismo entre os geneticistas. Aqui todos eram amigos, as pessoas colaboravam entre si.
Outra situação que reforçava a dominação masculina na área da Genética ocorreu também alguns anos depois do referido congresso em Paris. Numa outra ocasião, uma cientista americana ficou surpresa ao encontrar Eleidi Chautard, porque ela achava que Chautard era um homem. Isso aconteceu porque nos artigos que Eleidi publicava, seu primeiro nome era indicado apenas com a inicial, da forma como faziam os homens. Eleidi considerava absurdo que só as mulheres tivessem de colocar o primeiro nome por extenso. Assim, a pesquisadora americana supôs que Chautard também fosse um homem.
Depois da estadia de dois anos na Europa, Eleidi voltou para Curitiba no final de 1972. Uma coisa que chamou sua atenção nas viagens na Europa, e, sobretudo, na viagem de ida do Brasil até a Inglaterra e na de volta, foi o tempo que levava a viagem de avião. A aeronave precisava parar na África para que pudesse ser abastecida e, depois, foi feita conexão na Suíça antes de chegar à Inglaterra. No tocante a como a viagem era feita, a pesquisadora salienta que as pessoas se vestiam muito bem; os homens estavam de paletó e as mulheres portavam vestidos de veludo e calçavam salto-alto. Viajar de avião no início da década de 1970 era algo para poucos, mais restrito do que é hoje. Entrar num avião era chique! Segundo a professora, o próprio menu dos aviões em que viajou nessa época era chique. Provavelmente foi grande o impacto que Eleidi teve ao entrar no avião para ir para a Inglaterra, porque ela nunca havia viajado de avião antes. Na viagem de volta ao Brasil as pessoas também estavam muito bem vestidas.
Uma vez em Curitiba, Eleidi continuou como professora auxiliar de ensino da Universidade Federal do Paraná. Ela era diferente de muitas de suas amigas: as outras moças até estudavam, mas eram destinadas ao lar, à vida doméstica. Eleidi tinha interesse e foco na academia, na ciência e teve uma trajetória diferente de suas colegas. No ano seguinte, em 1973, a pesquisadora começou suas próprias pesquisas sobre ligação genética. Paralelamente, ela escreveu sua tese de doutorado – que realizava na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – e publicou o trabalho que realizou na Inglaterra.
O ano de 1974 foi muito importante na vida de Eleidi Chautard. Em 1974, Eleidi Chautard casou-se, na data de 9 de março, com seu professor da graduação e que foi seu orientador nas pesquisas em genética humana, Newton Freire-Maia[2], que enviuvara. A partir de então ela adotou o sobrenome do marido e passou a se chamar Eleidi Alice Chautard Freire Maia. Já em 11 de novembro, dia de seu aniversário, Eleidi realizou sua defesa da tese de doutorado, orientada pelo professor Francisco Salzano pelo programa de pós-graduação em Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.  Dando prosseguimento às suas pesquisas na Universidade Federal do Paraná, naquele ano Eleidi recebeu a doação de uma geladeira velha para usar em seu laboratório e comprou alguns equipamentos básicos.
Com efeito, a professora passou por uma situação de precariedade em suas pesquisas; o sangue coletado para as pesquisas sequer podia ficar em seu laboratório; ele ficava nas geladeiras do banco de sangue do Hospital de Clínicas da UFPR. Apesar dessas dificuldades, Eleidi conseguiu criar o laboratório de polimorfismos e ligação e logo pôde dar início ao primeiro projeto de análise de ligação genética, cujo foco era sobre a ligação de alguns genes com o gene responsável pela Poroceratose de Mibelli[3] em famílias residentes no litoral de Santa Catarina. A professora logo começou a orientar alunos de mestrado, dos quais dois deles, Ricardo Lehtonen Rodrigues de Souza e Lupe Furtado Alle, tornaram-se professores no Departamento de Genética, trabalharam ao lado de Eleidi Freire-Maia no laboratório de polimorfismos e ligação, que dirigem há alguns anos, mesmo antes de Eleidi deixar de trabalhar em 2013. O professor Ricardo Lehtonen de Souza tornou-se coordenador do Programa de Pós-Graduação em Genética entre 2011 e 2015, quando então a professora Lupe Furtado Alle passou a ser a nova coordenadora.
Quanto ao casamento com o professor Newton Freire-Maia, Eleidi afirma várias vezes que foi um casamento feliz. Os dois tinham muitos interesses em comum, gostavam dos mesmos assuntos, discutiam sobre genética, liam sobre ciências no geral e gostavam de artes (sobretudo de pintura). Eleidi diz ter um enorme interesse por viagens (afirma já ter estado em mais de 40 países), por história e por questões culturais, porque essas coisas levam a um enriquecimento pessoal. Newton a ensinou a apreciar jazz, e ambos gostavam de música popular brasileira. Além disso, Newton, que lia bastante, também passava muito de suas leituras para Eleidi. Parece haver uma ideia de afetividade misturada com intelectualidade. A vida a dois foi alegre.  Newton tinha quatro filhos quando se casou com ela. Todos eram jovens. Um deles morreu muito cedo, Newton Freire-Maia Filho. Entretanto, hoje Eleidi tem alguns netos e cinco bisnetos, filhos e netos dos filhos de Newton Freire-Maia. Eleidi e Newton Freire-Maia não tiveram filhos, mas sempre ela afirma ter boas relações com todos os filhos de Newton. Por fim – é preciso dizer – chama atenção a diferença de 24 anos de idade entre Eleidi e Newton, mas isso não impediu o casamento de ser feliz.
Quando Eleidi fala sobre a família de Newton, que tinha seis irmãos, e sobre sua própria família, ela apresenta uma noção bastante dilatada daquilo que entende por família. Seu conceito de família, possivelmente influenciado por sua vivência desde a mais tenra infância, é muito mais ligado às relações sociais, aos laços de amizade e de afeto que são criados entre os seres humanos, do que pautado primordialmente pelos laços de sangue.
Depois do período estudando as famílias catarinenses, mencionado anteriormente, Eleidi continuou encontrando algumas dificuldades de ordem financeira para manter algumas pesquisas, então se focou naquilo que era realizável com aquilo de que dispunha e seguiu algumas sugestões de outros estudos de ligação genética, a fim de saber se as sugestões se confirmavam, se reproduziam nas análises matemáticas, de modo a confirmar os casos de ligação como verdadeiros ou rejeitar as sugestões. Entre esses trabalhos, seis artigos foram publicados em revistas estrangeiras. Estes trabalhos se referiam ao mapeamento do genoma humano, portanto eram importantes para o desenvolvimento do conhecimento humano como um todo.
Nos anos seguintes, já na década de 1980, Eleidi se empenhou, junto com orientados, como Sérgio Luiz Primo Parmo e Maria Angelina Canever de Lourenço, naquilo que chama de genética antropológica. Como Sérgio Parmo trabalhou com um par de genes para saber se estavam ligados e um desses era o gene da enzima butirilcolinesterase, em 1981, então, Eleidi, Sérgio e Maria Angelina decidiram que tinham um grande material para estudar a referida enzima, que era pouco estudada no Brasil. Eles se dedicaram a partir de então a analisar as variações genéticas da butirilcolinesterase e a variabilidade dessa enzima em diferentes etnias, uma vez que etnias diferentes não apresentavam algumas variações ao passo que outras etnias apresentam variações genéticas em frequências mais altas. Desse modo, os pesquisadores coletaram dados de populações negroides, caucasoides e, com a ajuda do professor Francisco Salzano, de indígenas brasileiros, para terem ampla gama para possibilitar uma descrição da variabilidade genética da butilcolinesterase em diferentes grupos étnicos. Com efeito, conseguiram até mesmo fazer estimativas de grau de mistura racial.
Um dos aspectos da butilcolinesterase é que algumas pessoas portadoras de algumas variações da enzima podem responder mal a um relaxante muscular chamado suxametônio, usado em pacientes em casos de anestesia geral. As variações na enzima também podem levar indivíduos a terem maior ou menor resistência ao contato com agrotóxicos. Por conta disso Eleidi iniciou pesquisas com populações rurais que estavam em contato com as substâncias para conhecer seus efeitos. Outros estudos também foram feitos acerca de associação com síndrome metabólica , índice de massa corporal, obesidade e outros quadros clínicos. Essas pesquisas acerca da butilcolinesterase acabaram sendo a linha de pesquisa principal seguida por Eleidi ao longo de sua carreira, embora não a única.
Além do trabalho com a butilcolinesterase, a professora Eleidi Freire Maia também deu prosseguimento aos estudos em malformações congênitas. Ela trabalhou também com displasias ectodérmicas, talvez por influência de Newton Freire-Maia, que também se dedicou por muitos anos ao estudo das referidas displasias ectodérmicas.
Eleidi também teve destaque importante na história da Universidade Federal do Paraná por ter sido parte da comissão que regulamentou a criação da iniciação científica na instituição. Participou ainda de outra comissão da universidade para a regulamentação de pesquisas em termos éticos para pesquisas envolvendo seres humanos, o que foi importante para o Hospital de Clínicas e para cursos do setor de Ciências Biológicas.
Fora da UFPR, Eleidi participou da diretoria da Sociedade Brasileira de Genética e também da diretoria da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Ela também fez parte do comitê assessor do Programa de Pesquisa em Biotecnologia e Recursos Genéticos do CNPq (COBRG), exercendo a verificação dos projetos que são enviados ao CNPq, para decidir a respeito da concessão de bolsas de pesquisa. Durante sua carreira a pesquisadora esteve em vários congressos, na França, Itália, China e Austrália.
Porém nem sempre a trajetória profissional da geneticista foi fácil ou feliz. Eleidi era muito exigente consigo mesma em termos de trabalho. Ela achava isso bom, mas isso também era uma condição que a deixava ainda mais aflita por conta das condições ruins para se fazer pesquisas no Brasil. Um exemplo das dificuldades em âmbito nacional para o desenvolvimento de uma pesquisa, sobretudo de pesquisas mais longas, era e é o contingenciamento de verbas do CNPq, muito complicado, burocrático e incerto. Além disso, ela também não gostava da distância da produção científica e do estado da arte na Genética que existia entre o Brasil e os EUA e a Europa. Havia também dificuldades de acesso a materiais recentes na literatura científica nos anos anteriores ao advento da internet: o Departamento de Genética assinava “Current Contents”, que apresentava os índices de artigos publicados em  revistas científicas para que os professores e alunos escolhessem os que pareciam mais interessantes e, em seguida, enviassem pedido de separata ao autor principal. Uma separata podia demorar três meses para chegar! Isso aumentava também o abismo entre a produção acadêmica de ponta nacional e a dos países ricos. Às vezes não havia sequer o básico, como acontecia no começo do programa de pós-graduação em Genética; quando o curso já havia sido transferido para o Centro Politécnico, Eleidi e alunos faziam testes com amostras de sangue e saíam correndo de carro até o Instituto de Bioquímica para verificar se havia acontecido alguma reação ou se havia tido alguma inibição na composição etc. Finalmente, Eleidi diz ter feito parte de uma geração de cientistas que praticavam o que ela chama de “genética romântica” opondo-se ao estado atual das coisas, caracterizado por um problema que foi formado nas últimas décadas no país, sobre o qual ela reclama, que é o de competitividade acadêmica desenfreada e nociva. Em suas palavras, hoje “as coisas estão terríveis” por conta dessa competição acadêmica, e ela se pergunta o que se perdeu no meio do caminho. A dúvida que permanece a esse respeito reside na confirmação dessa informação: as pessoas realmente colaboravam tanto assim nas décadas de 1960 e 1970, ou isso é um saudosismo, uma idealização do passado gerada pela subjetividade de Eleidi?
Apesar das dificuldades pelas quais Eleidi passou em sua trajetória acadêmica, e que infelizmente são bem conhecidas entre os cientistas brasileiros, sua carreira foi profícua. É notável que sua produção acadêmica não tenha sofrido queda depois da morte de seu marido, Newton Freire-Maia, ocorrida em 2003. Pelo contrário, a frequência de publicação de artigos científicos manteve-se igual à da década de 1990 e início dos anos 2000, e continuou dessa forma até o momento em que Eleidi se aposentou em 2013.
     Para concluir, Eleidi parece humilde com relação às suas realizações científicas e a seu domínio de idiomas – a despeito de ter se apresentado em mais de um congresso internacional de Genética e a despeito de ser poliglota –, como pode ser percebido pelo modo como fala sobre sua trajetória e pela modéstia que apresenta em seu currículo Lattes acerca do grau de domínio que tem dos idiomas que compreende. Seria isso outro sinal da alta exigência que ela espera de si própria? Talvez; tudo o que se pode fazer é conjecturar, não afirmar categoricamente acerca de suas motivações psicológicas. Outra suspeita acerca de seu interesse por Genética e por relações familiares reside no fato de Eleidi ter dito que ela tinha “um desejo inconsciente de ter irmãos” e que ela gostava de observar outras famílias. Talvez por isso ela tenha trilhado uma carreira que tratava direta ou indiretamente de famílias e suas relações e/ou também por esse motivo ela tenha convivido e conviva tão bem com os familiares de Newton Freire-Maia, que na prática ela significou como familiares, ainda que sem laços de sangue. Entretanto, também nesse caso tudo o que pode ser feito é, mais uma vez, conjecturar, pois o âmago psicológico mais profundo não pode ser perscrutado e estabelecer relações diretas de causa e efeito é algo temeroso.
     Se o presente trabalho acaba com dúvidas, cabe deixar mais uma questão em aberto, do mesmo modo que a vida se nos apresenta como questões em aberto por meio das escolhas que tomamos: quais serão os próximos caminhos que Eleidi Chautard Freire Maia irá trilhar?

Além do relato de vida feito por Eleidi Freire Maia em sala de aula, também foram consultadas as seguintes páginas:


A biografada em 31 de maio de 2017, quando compartilhou com os alunos da turma a narrativa de sua trajetória.

O biógrafo de Eleidi, Victor Alvim, em álbum do FB (fotografia de fevereiro de 2017).



[1] < http://www.cienciaefe.org.br/ > (Acessado em 24 de julho de 2017).
[2] Segundo Eleidi, ela sentia-se ansiosa na presença de Newton. Ela chega a usar a palavra “medo” para descrever o que sentia quando estava na sua presença, no período em que foi estudante. Entretanto, tinha grande respeito por ele e gostava de sua personalidade, que descreve como sendo maravilhosa.
[3] Poroceratose de Mibelli é uma condição clínica, caracterizada pela queratinização de regiões da pele. As placas hiperqueratósicas possuem formas mais ou menos arredondadas, e têm a aparência de manchas ou de protuberâncias. Acredita-se que seja uma condição gerada por um fator hereditário autossômico dominante.

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