Monsieur
Proust foi recebido com uma profusão de sentimentos (contraditórios)
quando foi lançado em 1973[1]. Em minhas mãos tenho
exatamente essa edição, embora saiba que a obra foi reeditada em 2014. Hesitei
bastante na compreensão desse texto complexo: trata-se de um testemunho dado a
Georges Belmont por Céleste Albaret. É a reunião feita por ele de cerca de 70
horas (5 meses) de entrevistas realizadas com a mulher que trabalhou para o
escritor Marcel Proust ao longo dos
últimos 8 anos da vida dele; que viveu ao pé do autor; para ele;
sacrificando a sua juventude, sua vida particular, sua vida conjugal, na consciência
absoluta de que serviu (o verbo é esse mesmo) a um gênio.
Georges Belmont sabe da importância
e da complexidade da obra que realizou. Escreve uma introdução, em que
contextualiza o testemunho de Céleste. Ela tem já 82 anos e, depois de cerca de
50 em silêncio, resolveu falar. Belmont teme essa voz tardia, afirma que
submeteu as declarações de Céleste a repetições e também pôde aferir essa
impressão tão certa quanto difícil de explicar: a franqueza. Mas por que afinal
Céleste rompeu o silêncio? Não é uma coisa estranha pensar que, algumas pessoas
quando alcançam certa idade julgam-se capazes de falar tudo... Nesse tudo,
incluem as mágoas e impropérios que a decrepitude desculpa (será?)... O livro Monsieur Proust. Souvenirs recueillis par
Georges Belmont é feito de respostas.
Alguém pode redarguir: mas as obras
não são sempre respostas, nosso desafio é saber fazer as perguntas?! Essa
réplica é certa. Mas, quando afirmo que o livro é uma coleção de respostas,
quero dizer que Céleste responde a outra coleção de equívocos que a fama de
Proust, sua obra, sua larga epistolografia, sua reclusão e o próprio silêncio
de Céleste... só fizeram crescer, após a morte do autor. Meu exemplar de Monsieur Proust está repleto da palavra
“resposta” nas margens. Já no final da narrativa, essa síntese:
“Mas
hoje, antes de deixar o mundo na minha hora, a ideia de que possa subsistir uma
dúvida ou uma mentira sobre tudo o que eu vi e que é a verdade tornou-se me tão
intolerável que eu quis que fosse dito, de uma vez por todas, que as páginas
que se seguem são a minha memória exata e que eu reexaminei suficientemente,
controlei e verifiquei os fatos de minhas lembranças para ter a certeza da
minha fidelidade absoluta à realidade do que foi. É um testamento o que eu
escrevo aqui, não um testemunho.” (pág. 412).
O livro é dividido em 30 capítulos,
tem excelentes documentos fotográficos e, ao final, consigna transcrições de
alguns poucos (mas relevantes) telegramas enviados pelo autor a pessoas do
círculo de Céleste Albaret, conjunto em que fica evidente a atenção de Proust para
com as pessoas a quem se dirigia e a sua tocante gentileza. O livro é linear,
foi organizado dessa forma por Georges Belmont, ainda que aqui e ali haja
antecipações ou retomadas de algumas ideias. Belmont resolveu realizar uma
narrativa em primeira pessoa, é Céleste quem fala. Aqui está a essência da
hesitação que referia acima: não seria esta uma biografia dupla? Biografia e
autobiografia misturadas? Depois de muito refletir, cheguei a uma compreensão
que compartilho, não sem antes ressaltar que a obra está inscrita na coleção
“Vécu”. Trata-se, portanto, da memória do vivido; a memória de alguém sobre
outro alguém com quem a voz que narra e revoca conviveu. Biografia escrita em
primeira pessoa. Não seria mais fácil compreender o texto realizado por Belmont
como uma autobiografia em que Marcel Proust é o personagem mais brilhante?
Não..., porque toda a vida de Céleste só aparece no texto para fazer viver
Marcel Proust e às vezes literalmente, levando-se em conta a narração de seus
cuidados para com o autor de Em busca do
tempo perdido.
Céleste “nasce” no texto
praticamente casada com Odilon Albaret. É Odilon que coloca a esposa em contato
com o autor. Importa destacar que, assim como Céleste foi devotada a Proust ao
longo de 8 anos, seu marido o foi desde antes, pois servira como chauffer ao
autor, na sua época mais mundana. O começo do texto está cheio da conversa de
cozinha, entre os empregados de Proust e, talvez tenha sido esse disse-me-disse
um dos elementos da má vontade com que a obra foi recebida em alguns meios.
Parece que os primeiros leitores da memória de Céleste tiveram dificuldade em
compreender seu deus em uma casa em que os criados tinham ciúmes uns dos outros
e disputavam a primazia do serviço ao autor... Ora, eu fiquei a pensar nas
pessoas que disputavam para serem recebidas por Proust! Vejo uma grande
diferença entre os grupos: os palacetes e contas bancárias.
Céleste começa a trabalhar para
Marcel Proust logo depois de seu casamento. Ela tem 22 anos, veio do campo,
está só em Paris e se entristece. É Proust quem analisa esse abatimento em uma
conversa com seu chauffer (sim, o autor da Recherche
era atento a tudo e a todos) e sugere a Odilon ocupá-la em seus correios. A
princípio, não há compromisso, é um passatempo. Mas o tempo de fato corre e
Odilon é rapidamente mobilizado para a guerra. Trata-se da Primeira Guerra
Mundial. A experiência da guerra muda a vida de todos no livro e, sobretudo, a
do autor, de quem ela fala. Quando o valet
Nicolas Cottin deixa o serviço da casa, Céleste assume tudo. Ela já aprendera a
estrita rotina do autor, desde o preparo do café (super detalhado na obra, o
que a princípio parece um exagero de texto) até o arejamento do quarto,
passando pela troca da roupa, pela espera do chamado para levar o café e os
horários, de quem levantava depois do meio dia e costumada tomar o café da
manhã às 16:00!
O preparo do café e outros mil
detalhes na verdade são muito importantes na obra. Eles conferem grande
credibilidade à narrativa de Céleste, porque ela deixa muito claro o que de
fato viu. Essas miudezas que desagradaram a alguns são a riqueza da obra! A
experiência de Céleste compreende o que ninguém a não ser ela poderia contar
sobre Proust. Não são, portanto, pormenores desimportantes, mas a vida “real”,
com seu café, croissant e leite... Durante esses 8 anos, e apenas interrompido
por algumas encomendas, foi tudo o que constituiu a dieta do autor. Céleste não
conjectura sobre o que e se ele comia fora, ela se limita (e insiste nisso) em
recontar o que viu.
A minha leitura de uma rotina tão
rigorosa como a de Marcel Proust me fez pensar em uma coreografia muito bem
ensaiada. Não acho que Céleste ou Belmont desaprovariam a metáfora, porque ela
me foi sugerida pela observação da própria Céleste dos gestos do autor:
delicados e precisos. A linguagem do corpo tão bem observada pela governanta, a
imitação de alguns no início das madrugadas depois de animados saraus, os dedos
a enquadrar bochecha e queixo, em uma das imagens mais conhecidas..., tudo isso
constituía um verdadeiro ballet! Mas para que a primeira bailarina dançasse, um
corpo de baile se matava para garantir seu sucesso... Ora, o capítulo 18 se
chama justamente “Tyrannique et méfiant” e nos faz pensar que por muito menos
que o que está lá, uma décima parte talvez, umas vinte Célestes teriam
abandonado aquela casa do Boulevard Haussmann.
Quando Céleste passou ao serviço de
Proust, o “temps du camélia à la boutonnière” terminara... Mesmo assim, ela
teve acesso à memória que o autor conservou do período. Nessa rememoração da
rememoração, um aspecto se revela em conformidade com a franqueza que comoveu
Georges Belmont. Céleste não tem o menor problema de revelar nomes e opiniões
que alguns poderiam/puderam considerar chocantes sobre pessoas “admiráveis”,
mesmo dos amigos mais próximos e devotados do autor. Trata-se em grande parte
de ciúmes, invejas e incompreensão...
Ligado à identificação de pessoas
muito reais, que visitam manuais de Literatura, Pintura, Música, bem como têm
seu nome na capa de várias publicações de prestígio (o que ela nos entrega de
André Gide não é pouca coisa[2]...), vemos os “modelos” do
autor: uma coleção de pessoas que emprestaram traços a seus personagens mais
conhecidos e fascinantes. Devorei as páginas escritas sobre o conde Robert de
Montesquiou, modelo do fantástico Barão de Charlus!!!! A princípio, não sabemos
quem é mais estranho: se o modelo ou o personagem. Proust chega a prevenir
Céleste para o caso de Montesquiou mandar entregar qualquer caixa de
chocolates... O autor não esconde o receio de que estivessem envenenados (pág. 315).
Depois de ser informado da morte do conde, Proust revela a Céleste que havia
momentos em que achava que Montesquiou ainda vivia: “ele é perfeitamente capaz
de se fazer passar por morto e de tomar um outro nome, por curiosidade de seu
‘pós’” (p. 315). O final do capítulo é muito bonito. Céleste afirma que, depois
de algum tempo, ela achava que o conde Montesquiou deixou de existir no
espírito de Proust: “A verdadeira realidade, era Charlus” (p. 315). O
personagem lhes sobreviveu a todos.
Ainda que a sinceridade de Céleste
possa ter sido algo indigesta para uns e outros, o desconforto veio primeiro da
leitura da obra enquanto o autor ainda vivia! Isso é muito interessante. Alguns
“modelos” se insurgiram contra Proust! O conde Robert de Montesquiou foi um
deles... Isso exigia que Marcel Proust empregasse muitos recursos retóricos
para defender a sua obra aos olhos de pessoas que se reconheciam nela. A
verdade é que mesmo tendo modelos bem nítidos e saindo à noite para fazer
prospecções, o autor reuniu traços de diversas pessoas. O fato de algumas delas
se reconhecerem talvez advenha da convivência que experimentaram com Proust
ou... do fato de termos sim a certeza de que ele escreveu para nós.
Muito já se escreveu sobre a
homossexualidade de Marcel Proust. O fato é que Céleste nada afirma sobre isso
e não devemos pensar que se tratou de “proteção” ao autor em um contexto em que
as paixões de um homem como Montesquiou ou como o personagem Charlus eram tabu.
Céleste nada pode revelar porque só tem duas fontes: o que viu e o que Proust
lhe relatou. Segundo ela mesma declara, o autor era de um pudor imenso. No fim
da vida, extremamente debilitado, para se levantar da cama, onde estava todo
vestido, pediu à Céleste que se virasse e, quase inconsciente, deve ter sofrido
mais por ter percebido sua coberta ser levantada para uma injeção que pela
injeção em si (mesmo levando em conta que ele tinha horror a picadas). Ainda
que ela tenha afirmado que ele lhe confiava tudo, havia limites decerto.
Há dois capítulos sobre os amores
de Marcel Proust. No capítulo 15, as mulheres que ele admirou, cujo charme lhe
marcou (elemento muito valorizado por ele!), pelas quais se interessou ou se
apaixonou. Entre os documentos fotográficos, encontramos algumas delas: a atriz
Louisa de Mornand, o amor adolescente Marie de Benardaky... Lemos a sua
desistência de casar-se. No início do capítulo 16, “’d’autres’ amours” (pág. 227),
Céleste afirma que embora achasse que Proust tivesse capacidade para amar, não
acredita que jamais tenha realmente se apaixonado. Ela cita diversos nomes de
homens, para desfazer equívocos de encontros no Boulevard Haussmann. Novamente
ressalto que ela só pode se reportar ao que viu ou dele ouviu. Nos seus
limites, não se escusa de mencionar, por exemplo, um nome que segundo ela mesma
fez correr tinta: Alfred Agostinelli, que serviu Proust como chauffer. Mas
Agostinelli haveria de morrer em 1914, quando Céleste havia recém entrado a
serviço do autor! Outro nome citado foi o do “modelo” de Jupien: Le Cuziat, que
era proprietário de um bordel. Nada sobre Reynaldo Hahn nesse enquadramento...
Embora esse amigo fiel apareça muito ao longo da obra e tenha mesmo velado o
corpo de Proust junto a Céleste e ao irmão do autor. Apenas os três na
companhia de 2 religiosas (pág. 432). Hahn tem mais desenvolvimento no capítulo
das amizades (capítulo 19), junto a Mme Strauss, Robert de Billy, os irmãos
Bibesco e Frédéric de Madrazo.
Na memória de Céleste, Marcel
Proust fez todas as concessões (im)possíveis para a sua obra e só as fez por
ela. Ao colocar um fim no livro, mesmo que ainda houvesse muito a corrigir
(entre os documentos fotográficos, vemos como os originais voltavam de suas
correções...), seu corpo entrou em colapso. As concessões ignoravam os cuidados
para preservar a frágil saúde. Mas há uma cena interessante em que se misturam
pesquisa e frequentação ao bordel de Cuziat, poderíamos compreendê-la no quadro
das concessões? Na volta, Marcel Proust relata uma cena masoquista à Céleste. O
diálogo seguinte à narração é extraordinário:
-
Senhor, isso não é possível, não pode existir!
-
Mas existe, eu não inventei.
-
Mas, Senhor, como pôde olhar para isso?
-
Justamente, Céleste, porque eu não posso inventá-lo. (pág. 240)
Trata-se de um pequeno capítulo das
relações entre ficção e realidade...
Apenas uma visão muito parcial da
catedral[3] proustiana, ou mesmo a
ignorância completa do texto, travestida de escolha por textos mais
“engajados”, explicariam a falta de reconhecimento do extraordinário
desvelamento literário de um mundo prestes a sucumbir. Proust foi um leitor
voraz e, durante a construção de sua catedral, lia variados jornais e se
interessava pela política, pela bolsa de valores, pelas artes, pela literatura
e pela crítica. Tinha suas preferências políticas e manifesta na sua obra um
evento que lhe tocou particularmente: o caso Dreyfus[4]. Céleste não busca
explicar a crença de Proust na inocência de Alfred Dreyfus a partir da sua
ascendência materna (a mãe de Proust era judia), mas pelo seu amor à verdade e
à justiça.
Céleste nos conta algumas coisas
muito difíceis, como a queima dos cadernos pretos de notas; a verdade (com
provas materiais rsrsrs) de que André Gide, o “falso monge” (pág. 353), sequer
teria lido o célebre manuscrito recusado; a mudança do Boulevard Haussmann, não
sem desfazer os equívocos dessa mudança de endereço, para a rua Hamelin, onde o
autor haveria de morrer, e a sua agonia. Proust recursou todos os tratamentos
médicos que estavam à sua disposição, e estavam à sua disposição o que de
melhor havia em seu contexto! É nesse momento que nem Céleste lhe pôde
obedecer..., mesmo tendo se remoído de remorsos. Mas quem não lutaria mesmo
contra quem ama para salvar-lhe a vida?
Marcel Proust morreu no dia 18 de
novembro de 1922. Era um sábado. Logo, um cortejo de amigos viria até a rua
Hamelin para despedir-se dele. Ele só seria enterrado na quarta feita, dia 22
de novembro. Depois disso, a vida de Céleste passa depressa no texto e em
poucas páginas a vemos ter uma filha, sua única filha; vemos Odilon morrer; ela
vender lembranças de Proust em razão da doença de Odile; vemo-la no Museu Ravel.
Sua última lembrança na narrativa é ainda Marcel Proust, em uma pequena joia
que ele lhe deixara.
Referência: ALBARET, Céleste. Monsieur Proust.
Souvenirs recueillis par Georges Belmont. Paris: Éditions Robert Laffond,
1973.
Epílogo:
Quando terminei de ler a obra, dia
15 de maio de 2017, tinha o rosto lavado em lágrimas. Precisei ser consolada. 95
anos depois de Marcel Proust ter morrido, eu chorava a sua morte! Desde
setembro de 2015, ele tem sido uma companhia constante: o intervalo de minha
vida, cheia de linhas preenchidas em agendas cujo tamanho das páginas fica
maior a cada ano... É difícil achar tempo para um intervalo tão exigente: 7
volumes! Até para ser lido, ele é o tirano que Céleste e seus grandes amigos deixaram
que reinasse em suas vidas. Em nossas vidas.
Amigos, as traduções
realizadas no texto são de minha inteira responsabilidade.
[2] “Entre os que gravitaram em torno de [M.
Proust] (...) é preciso que eu me detenha sobre André Gide, a princípio porque,
ainda uma vez, ele foi o único e grande responsável pela recusa do manuscrito
de Swann na [editora] Gallimard, e
[porque] depois da morte de M. Proust, nasceu um equívoco sobre uma pretendida
intimidade e relacionamento entre eles – equívoco que foi expressamente criado
e alimentado por André Gide” (pág. 355)
[3] Céleste emprega essa mesma metáfora no seu
relato.
[4] Sobre esse tema, mas não só, recomendo a
tese de doutorado do Prof. Alex Neundorf (PUCPR), disponível em: http://www.humanas.ufpr.br/portal/historiapos/files/2013/05/Alex.pdf (acesso em 15 de maio de 2017).
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