Em 2014, entre maio de junho,
realizei uma missão de trabalho na Universidade de Poitiers, como professora
visitante. Nesse intervalo de pouco mais de 30 dias, participei das Semaines d’études médiévales, um dos
eventos mais importantes e longevos de nossa área. Desde 1954, o CESCM (Centre d’études supérieures de civilisation
médiévale) organiza todo ano uma sessão internacional de estudos e formação,
que acolhe jovens pesquisadores de diversas partes do mundo. Além das
palestras, oficinas e visitas a arquivos, o Centre
promove excursões que acontecem nos fins de semana, guiadas por especialistas.
No ano em que estive em Poitiers na condição de professora visitante, estivemos
na abadia de Fontevraud, que acolhe os jacentes de Henrique II Plantageneta,
Ricardo Coração de Leão, Isabel de Angoulême e de Leonor da Aquitânia. Por
isso, esse lugar é também chamado de “a Saint-Denis dos Plantagenetas”[1]
A fundação dessa abadia está ligada
ao nome do monge Robert d’Arbrissel, que antes de Francisco, já perambulava com
seguidores – entre homens e mulheres – em regime de franca austeridade e
desapego. Seu grupo heterogêneo se fixou na região, em torno de 1101, ou seja,
cerca de pouco mais de 20 anos antes do nascimento de Leonor da Aquitânia
(1122/24-1204). Fontevraud desde a sua fundação tem uma espiritualidade marcada
pelos temas da Paixão e da Ressurreição. Revela sua singularidade no
acolhimento de homens e mulheres. Logo depois do fundador Arbrissel, a
autoridade sobre a comunidade é exercida pela abadessa Pétronille de Chemillé[2]. Sob sua autoridade,
Fontevraud recebeu mulheres de alto nascimento decerto, mas também prostitutas
arrependidas, doentes, leprosos, homens e mulheres[3]. À Petronille, sucede
Matilde de Anjou, tia de Henrique Plantageneta.
O jacente de Fontevraud nos remete
obviamente ao fim de uma biografia: a da mulher que foi rainha da França e da
Inglaterra, esposa de Luís VII de França, de Henrique II da Inglaterra, mãe de
Ricardo Coração de Leão e João sem terra, mas também de Marie e Alice; neta do
primeiro trovador conhecido Guilherme IX Duque da Aquitânia e Conde de
Poitiers.
Mas queria voltar a 2014, pois foi nesse
ano também que aconteceu uma extraordinária exposição na Abadia de Fontevraud,
em torno de um tema que não cessa de fascinar quem conheceu o jacente e visita
a abadia: o livro de Leonor.
Pelo que se sabe, esse jacente é o
primeiro a apresentar um tema que logo se veria alçado à condição de moda
funerária: a efígie da mulher leitura. Mas não se pode ler o livro da rainha, pois ele é
uma pedra lisa... Em janeiro de 2013, o diretor da Abadia escreveu a Jacques
Roubaud, poeta, ensaísta, romancista e matemático, membro do grupo de debate e
experimentação literária, Oulipo[4] (Ouvroir de Littérature Potentielle), com a seguinte
provocação: “tomando as páginas brancas [do livro de Leonor] como um convite,
nós gostaríamos de conceber a partir delas um projeto de criação literária para
responder à questão sem resposta: o que lê Leonor da Aquitânia?”[5]
Em 2014, portanto, foi inaugurada a
exposição/instalação que, se servindo de uma série de linguagens diferentes,
construíram possibilidades criativas de respostas. Tomaram parte nesse projeto
uma série de artistas de Oulipo e essa experiência convergiu para a realização
do Livro de Leonor, que se constitui
de 31 textos medievais e contemporâneos, em occitano, francês e inglês[6]. O livro está totalmente
disponível na internet.
Uma das composições incluídas no Livro de Leonor é o poema “Les
confidences”, de Paul Fournel (1947)[7], presidente do grupo
Oulipo, poeta e romancista. Em uma entrevista concedida em 2014 ao site La Cause Littéraire, Fournel afirmou:
Eu gostaria
de continuar a explorar formas existentes de escrita – fazer renascer algumas
formas antigas de poemas, solidificar formas recentes que merecem posteridade
(...) e depois tentar inventar formas novas de relato, maneiras novas de dizer de
forma diferente, de recontar de outra maneira outra coisa, de manobrar com o
que já foi dito e as maneiras como o foram. Explorar. Esse desejo de desafio eu
compartilho com meus companheiros de Oulipo, que são degustadores de formas,
pesquisadores e inventores dos quais a energia e a fecundidade são os motores[8].
Acho que esse
segmento é essencial para o jogo que proponho aqui, de uma historiografia
poética escrita por Paul Fournel no poema “Les Confidences”.
Les
confidences
Se
penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, Guillaume IX, le troubadour, lui
dit : « Grandis. On chantera pour toi, Petite. »
Se
penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, sa mère lui dit : « Tu es l’autre
Aénor. »
Se
penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, son frère, Guillaume Aigret, lui
dit avant de mourir : « Tu sais le latin, la musique et la littérature,
apprends à chasser à cheval. »
Se penchant
à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, son père Guillaume lui dit : « Je meurs
pèlerin. »
Se
penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, le roi Louis VI le Gros lui dit : «
Tu épouseras mon fils. Fais semblant de l’aimer. »
Se
penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, le roi Louis VII, son époux, lui
dit : « Faites-vous aimer. »
Se
penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, le roi Louis VII, son époux, lui
dit : « Madame, couvrez-vous. »
Se
penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, Constance d’Arles, son amie, lui
dit : « Achetons-nous des robes folles et des atours. »
Se
penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, Marcabru le Troubadour, lui dit : «
Je chanterai l’amour de vous. »
Se
penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, le roi Louis VII, son mari, lui dit
: « D’accord, je vire Suger et je soumets Lezay. »
Se penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, le roi Louis
VII, son mari, lui dit : « Tu n’y penses pas, je ne peux pas dissoudre le
mariage du vieux borgne, Raoul de Vermandois, pour faire plaisir à ta soeur
Pétronille ! »
Se penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, Pétronille
d’Aquitaine, sa soeur, lui dit : « Merci soeurette je suis comblée avec mon
vieux mari borgne. »
Se penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, le roi Louis
VII, son mari, lui dit : « Tu as exagéré, le Pape a jeté l’interdit sur mon
royaume. Tu viendras avec moi à la croisade. »
Se penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, le troubadour
Jofré Rudel lui dit : « J’accepte de venir avec vous en Orient, mais j’espère
fermement que j’en aurai reconnaissance. »
Se penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, son oncle
Raymond de Poitiers, Prince d’Antioche, lui dit : « Je vous aime, chère nièce.
»
Se penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, Suger lui dit
: « Plaidez la consanguinité ! »
Se penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, Hélinand de
Froimont lui dit : « Putain plus que Reine ! »
Se penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, le jeune et
bouillant Geoffroi Plantagenêt lui dit : « Ma chère vieille épouse, ma
conquête, vous êtes mon plus vaste territoire. »
Se penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, Thibaud du
Bec, Archevêque de Cantorbéry, lui dit : « Faites pour le mieux, Majesté. »
Se penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, Richard Coeur
de Lion lui dit : « Maman. »
Se penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, André le
Chapelain lui dit : « Madame, j’ai fini de composer les règles de votre cour
d’amour. Quand il vous plaira. »
Se penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, le chevalier
Arnaut-Guilhem de Marsan, troubadour, lui dit : « Merci. »
Se penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, Bernart de
Ventadour, le Normand, lui dit : « Chère Duchesse de Normandie. »
Se penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, le roi d’Ecosse,
Guillaume Ier, lui dit : « Enfonçons le Roi ! »
Se penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, Bérangère de
Navarre, lui dit : « Dois-je vraiment traverser les Alpes et l’Italie en votre
compagnie pour épouser votre fils ? »
Se penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine Jean sans Terre
lui dit : « Merci, mère, d’avoir conduit Blanche de Castille jusqu’ici. »
Se penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, son fils Jean
lui dit : « Mère, vous êtes libre. Retournez en paix à Fontevraud. »
Se penchant à l’oreille d’Aliénor d’Aquitaine, le père abbé
de Fontevraud lui dit : « Votre âme est sauve. Serrez ce livre entre vos mains.
»
Paul Fournel
Ces confidences font référence à
des moments clés de la vie d’Aliénor, relatent des événements de son histoire personnelle
trouvés dans les sources historiques. Il faut les imaginer murmurées à
l’oreille du gisant, silencieuses et intimes.[9]
As confidências
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, Guilherme IX, o trovador, diz-lhe: “Cresce.
Cantarão por ti, Pequena.”
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, sua mãe lhe diz: “Tu és a outra
Aénor”.
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, seu irmão Guilherme Aigret, diz-lhe
antes de morrer: “Sabes latim, música, literatura, aprende a caçar a cavalo.”
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, seu pai Guilherme lhe diz: “Morro
peregrino”.
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, o rei Luís VI o gordo lhe diz: “Tu
desposarás o meu filho. Finge amá-lo.”
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, o rei Luís VII, seu marido, diz-lhe:
“Fazei-vos amar”.
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, o rei Luís, seu marido, diz-lhe:
“Senhora, cobri-vos.”
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, Constança de Arles, sua amiga,
diz-lhe: “Compremos vestidos extravagantes e ornamentos.”
Inclinando-se ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, Marcabru o trovador lhe diz: “ Eu cantarei o amor por vós.” Inclinando-se ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, o rei Luís VII, seu marido, diz-lhe: “Concordo, eu me livro de Suger e submeto Lezay.” Inclinando-se ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, o rei Luís VII, seu marido, diz-lhe: “Não penses nisso, eu não posso dissolver o casamento do velho caolho Raul de Vermandois, para satisfazer à tua irmã Petronila!”
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, Petronila da Aquitânia, sua irmã,
diz-lhe: “Obrigada, maninha, estou plenamente satisfeita com meu velho marido
caolho”.
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, o rei Luís VII, seu marido, diz-lhe:
“Tu exageraste, o Papa lançou um interdito sobre o meu reino. Tu virás comigo
para a cruzada”.
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, o trovador Jofre Rudel lhe diz: “Eu
aceito acompanhar-vos no Oriente, mas espero firmemente ter disso
reconhecimento”.
Inclinando-se ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, seu tio Raimundo de Poitiers, Príncipe de Antioquia, diz-lhe: “Eu vos amo, querida sobrinha”.
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, Suger lhe diz: “Pleiteai a
consanguinidade”.
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, Helinando de Froimont lhe diz: “Puta
mais que rainha”.
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, Geoffroi Plantageneta lhe diz: “Minha
querida esposa idosa, minha conquista, vós sois meu mais vasto território.”
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, Teobaldo du Bec, arcebispo da Cantuária,
diz-lhe: “Fazei o melhor, Majestade.”
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, Ricardo Coração de Leão lhe diz:
“Mamãe”.
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, André Capelão lhe diz: Senhora,
terminei de compor as regras da vossa corte do amor. Quando quiserdes.”
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, o cavaleiro Arnaut-Guilhem de Marsan,
trovador, diz-lhe: “Obrigado”.
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, Bertrand de Ventadour, o normando,
diz-lhe: “Querida duquesa da Normandia.”
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, o rei da Escócia Guilherme I,
diz-lhe: “Destruamos o rei”.
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, Berenguela de Navarra lhe diz: “Devo
realmente atravessar os Alpes e a Itália na vossa companhia para desposar
vosso filho?”
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, João sem Terra lhe diz: “Obrigado,
mãe, por ter conduzido Branca de Castela até aqui”.
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, seu filho João lhe diz: “Mãe, vós
estais livre. Retornai em paz a Fontevraud.”
Inclinando-se
ao pé do ouvido de Leonor da Aquitânia, o abade de Fontevraud lhe diz: “Vossa
alma está salva. Tomai este livro entre vossas mãos.”
Paul Formel
(traduzido por Marcella Lopes Guimarães)
Essas
confidências fazem referência a momentos chave da vida de Leonor, relatam
eventos de sua história pessoal encontrados nas fontes históricas. É preciso
imaginá-las murmuradas junto ao jacente, silenciosas e íntimas.
|
Identificação dos personagens
Trata-se do
duque da Aquitânia Guilherme IX, também Conde de Poitiers, avô de Leonor.
Segundo
Geoffroy de Vigeois, Leonor – Aliénor – recebeu esse nome, que significava
“autre Aenor – alia Aenor”[i].
Guilherme
Aigret morreu em tenra idade.
Depois da
morte de Guilherme X, as irmãs Leonor e Petronila são colocadas sob proteção
do rei da França, Luís VI, que casa o seu herdeiro com Leonor, em 8/8/1137,
mesmo ano em que morre Guilherme X. Os domínios de Leonor eram maiores que os
de seu marido.
Constança de
Arles (984-1032) foi rainha da França, casada com Roberto II, o Piedoso. Era proveniente da Provença. Seus inimigos
políticos lhe imputaram inúmeros defeitos[iii].
Marcabru (1129-1150) pertence à primeira geração de trovadores. Dele nos restam 45 cantigas.[iv] O abade de Saint-Denis Suger foi mecenas das artes e conselheiro de Luís VI e de Luís VII[v]. Guilherme de Lezay foi senhor de Talmont e foi submetido pelo rei Luís. Suger teria afirmado que ele não era confiável[vi].
Raul de
Vermandois era primo do rei Luís VII.
Raul de
Vermandois teria perto de 50 anos e Petronila, 15, quando se deu o enlace
(1142). São excomungados pelo Papa Inocêncio II.
Raul de Vermandois e Petronila são excomungados pelo Papa Inocêncio II.
A princípio,
Luís VII deseja realizar uma peregrinação em razão do incêndio de Vitry que
teria vitimado quase 1500 pessoas, mas com a queda de Edessa, o voto de
peregrino se transforma em voto de cruzado[vii].
Jaufré Rudel
é o trovador da dama distante e de fato acompanhou o rei Luís VII, na 2ª
cruzada.
Em março de 1148, o rei e a rainha são recebidos por Raimundo, em Antioquia. Tem início a lenda das relações incestuosas entre sobrinha e tio.
Em carta ao
bispo Étienne de Préneste, Bernardo de Claraval reconhece que o rei e a
rainha são parentes em 3º grau (no contexto da excomunhão de Raul e
Petronila).
Helinando de
Froimont foi um poeta e cronista da corte de Felipe Augusto. Em sua obra,
referiu-se à conduta “indecente” de Leonor[viii].
Geoffroi
Plantageneta era irmão de Henrique Plantageneta, rei da Inglaterra, com quem afinal
Leonor acabaria por se casar (1152). Na época do divórcio de Leonor, Geoffroi
teria 16 anos. Ela escapa de seu assédio.
Teobaldo du
Bec coroou Leonor e Henrique II.
Ricardo
Coração de Leão foi o 4º filho nascido da união entre Henrique II e Leonor.
Nasceu em setembro de 1157.
André
Capelão é autor do Tratado do Amor
Cortês; foi ligado à corte de uma das filhas de Leonor, Marie de
Champagne (filha de Luís VII).
Arnaut-Guilhem
de Marsan foi autor de uma guia cavalheiresco, L’ensenhamen, e acompanhou uma das filhas de Leonor, de igual
nome, a Castela para casar com Afonso VIII[ix].
Bertrand de
Ventadour era um trovador da região do Limousin. Segundo a sua Vida, refugiou-se junto à Leonor,
apaixonou-se por ela e foi correspondido[x].
Participou
da conspiração contra Henrique II Plantageneta perpetrada pelos seus filhos e
por Leonor.
Berenguela
de Navarra casou-se com Ricardo Coração de Leão em 1191.
Branca de
Castela é neta de Leonor e haveria de se casar com Luís VIII da França,
casamento que colaborou para apaziguar capetíngios e plantagenetas. Branca
deu a luz ao rei Luís IX de França (São Luís).
João sem
terra é o último filho de Leonor e Henrique II, nascido provavelmente em
1166.
Entre 1194 e
1207, é Matilde III da Boêmia a abadessa de Fontevraud.
|
Esse longo poema é construído a
partir de uma “contrainte à Démarreur”[10]. A contrainte, ou seja, a coerção e o desafio, é a expressão que
funciona como Démarreur, ou seja,
como o que põe o motor em marcha, no caso o poema. A coerção e o desafio são a
essência da poesia produzida entre os degustadores de formas de Oulipo. A
expressão “Se penchant à l’oreille”, que traduzi como “Inclinando-se ao pé do
ouvido” é o desafio que aciona a força motriz do poema, como o “Je me souviens”
de Georges Perec.
O
poema de Fournel deve ser murmurado, como quem conta um segredo, daí a
observação que o encerra. Desfilam por ele personalidades, a maior parte que
conviveu com Leonor, mas isso não é uma regra, como a presença de Constance
d’Arles nos prova. O mais importante é que se trata de um poema que encena encontros,
entre determinados personagens e Leonor da Aquitânia. É possível distinguir 3
grandes grupos de personagens: 1) a família, grupo mais numeroso; 2) os
trovadores e 3) o círculo mais clerical. Apenas dois personagens não podem ser
incluídos nesses 3 grupos: trata-se da própria Constance e do rei da Escócia
Guilherme I. Um personagem pode ser incluído em dois grupos: Guilherme IX da
Aquitânia, avô e trovador!
No
primeiro grupo, destaca-se a presença do rei da França, Luís VII, primeiro
marido de Leonor, referido em 5 estrofes. Nelas, sobressai a vontade da rainha,
que inclui forçar a dissolução de um casamento, que teve como consequência a
excomunhão dos envolvidos. Na biografia que dedica à Leonor, o historiador Jean
Flori[11]
não acha possível concluir-se com exatidão o conjunto de interesses que
confluíram para o casamento de Raul de Vermandois e Petronila, nem o papel de
Leonor no projeto. Assim, o poema claramente envereda para o protagonismo da
jovem rainha, que na altura não tinha 20 anos quando se deu o enlace da única
irmã. Uma ausência relevante no poema é a de Henrique Plantageneta. Os
plantagenetas comparecem entre os filhos de Leonor com Henrique e na referência
ao seu cunhado que teria armado um rapto, do qual ela escapa, logo que se
divorciou do rei da França. Leonor também foi bem sucedida em fugir de outro
assédio. Entre os numerosos filhos tidos da segunda união, apenas aqueles que
seriam reis, depois do pai – Ricardo Coração de Leão e João sem terra –
comparecem a murmurar ao pé do ouvido de sua mãe. Na voz do poderoso Ricardo a
intimidade da relação mãe e filho.
Entre
os ancestrais de Leonor, está seu avô, o primeiro trovador conhecido,
personagem que abre o poema. Guilherme IX ainda vivia quando Leonor e Petronila
nasceram. Seu murmúrio manifesta presciência do futuro. Comparecem ainda seu
pai, que não teve uma trajetória literária como Guilherme IX; a mãe, esta filha
por sua vez da amante do avô de Leonor e o irmão, morto na primeira infância.
Destaco
a presença do sogro de Leonor, Luís VI, que recebeu como encargo a proteção dela
e da irmã, depois da morte de Guilherme X. É projeto do rei o casamento entre Leonor,
riquíssima herdeira e seu filho; no poema a voz do rei é rigorosa e determina exclusivamente
o comportamento da mulher. Destaco também a presença do tio de Leonor, em
versos ambivalentes, que tanto podem manifestar a reconfiguração do laço de
parentesco, quanto fazer referência ao suposto incesto entre tio e sobrinha,
capítulo que robustece a “lenda negra” protagonizada por Leonor. A ambivalência
também recai na declaração de Berenguela de Navarra, ou seja, valeria a pena
todo o esforço para desposar um homem que, por sua vez, é protagonista de outra
“lenda” que liga seu nome à homossexualidade?
O
segundo grupo de personagens é formado por trovadores. Destacam-se Marcabru,
Jaufré Rudel, Bernard de Ventadour e Arnaut Guilhem de Marsan, mas também
poderíamos incluir André Capelão, ainda que este não esteja no perímetro
cultural em que “nasceram” os 4 outros citados. Por que esses personagens
comparecem à obra? Segundo Jean Flori[12], Leonor
viveu em um contexto em que nasceram e se difundiram valores sócio-culturais
muito transformadores das sociedades do Ocidente Latino. Esses valores nasceram
na obra de poetas e romancistas, a princípio dos trovadores do sul da França,
que colaboraram para tornar menos rudes, mais corteses, as formas de viver. Aos
valores militares que caracterizavam a cavalaria veio a se juntar uma nova
sensibilidade mediada pelo amor à mulher, quer tenha sido essa presença uma
metáfora, quer tenha sido real e histórica, escrita, entretanto, com o
vocabulário das relações feudo-vassálicas. Leonor participou como metáfora e como
realidade; é personagem referida em vidas
do cancioneiro occitano, no tratado de André Capelão e seu movimento primeiro
da Aquitânia em direção ao reino da França e depois à Inglaterra beneficiou a
circulação de poetas e de seus temas[13].
O último grupo é constituído por
clérigos, como Suger, Hélinand de Froimont e Thibaud du Bec. O poema não subscreve
nenhuma simpatia por Leonor por parte desses homens sisudos. O menos violento é
Thibaud du Bec.
***
O
Jacente e o livro
O poema de Paul Fournel é também um
texto dramático, que propõe uma interação com o jacente. Essa possibilidade
transforma a barreira entre a vida e a morte, a matéria inerte em sujeito de
auscultação. Por outro lado, é porque Leonor escuta tantos murmúrios que ela
não pode ler (?!) e nisso Fournel não muda o destino do livro, mas o da própria
Leonor. A rainha da França e da Inglaterra não escuta confissões, não pode
redimir ninguém, mas tem acesso a segredos, confidências inacessíveis. Quem teria
coragem de, ao pé do seu ouvido, chamar-lhe de “puta mais que rainha”? A sua
morte também protege os acusadores.
Para o poema de Fournel convergem
conhecimento histórico fundado nos documentos e na pesquisa histórica, e a
“mitologia” sobre Leonor da Aquitânia. Essa mitologia fundada em camadas e
camadas de misoginia também está no poema, pois a História já compreendeu que
as lendas em torno do objeto também o constituem. O que faz, portanto, Fournel em
“Les confidences” é realizar a síntese de elementos da trajetória pessoal,
política e cultural de Leonor da Aquitânia (mais radicada nos elementos franceses
dessa trajetória). Seu poema é uma historiografia poética, escrita da história
em forma de síntese poética, como realizou Fernando Pessoa na Mensagem, ao escrever sobre D. Dinis,
sobre o condestável Nun’Álvares, sobre D. João I, sobre a rainha Filipa de
Lencastre... Os poetas conjugam temporalidades diversas em um dístico, estrofe
ou até mesmo em um único verso.
A experiência de Oulipo no ano de
2014 ressignifica o monumento, a abadia de Fontevraud, que interage com a
comunidade local, como ponto turístico e de interesse de pesquisadores
consagrados ao estudo do medievo. Cada poema concebido, projetado e escrito
enfim no Livro de Leonor apresenta
possibilidades para o enigma que não cessa de apaixonar quem visita a abadia. A
poesia escreve alternativas e, com isso, propõe futuro ao livro de pedra, mudo
ou pleno de um interesse renovado? Se a pesquisa histórica se orienta pelas
questões propostas aos restos do passado, Paul Fournel produz um documento
sobre a recepção da História e do Mito de Leonor e, com isso, enfeixa um
capítulo a mais no códice de compreensão do passado e do presente. “Les
confidences” agora é camada que não oculta ou submerge, mas vivifica e aquece;
auscultando íntimas e chocantes confidências, Leonor pode abrir os olhos e virar
a página do livro que tem entre as mãos.
[1] PRIGENT, Daniel, GAUD, Henri. Fontevraud. Éditions Abbaye de
Fontevraud. 2010. p. 22.
[2] Idem. p. 2-8.
[3] CHAUOU, Amaury. Sur des pas de Aliénor d’Aquitaine. Photographies de Thierry
Perrin. Rnnes: Éditions Ouest-France, 2005. p. 113.
[4] http://oulipo.net/
[5] Le
Livre d’Aliénor. Oulipo, 2014. Disponível em: http://www.fontevraud.fr/lelivredalienor/
acesso em 22 de maio de 2017. p. 4. Minha tradução.
[6] Idem, p. 5.
[7] Nessa excelente entrevista: https://www.youtube.com/watch?v=-rQOMO-F-q0
(acesso em 22 de maio de 2017), o autor aborda a escrita como um
desafio/pressão ou disciplina a ser vencido ou vencida ludicamente, que é a
essência do grupo Oulipo.
[8] http://www.lacauselitteraire.fr/entretien-avec-paul-fournel
acesso em 22 de maio de 2017.
[9] Le
Livre d’Aliénor. Oulipo, 2014. Disponível em: http://www.fontevraud.fr/lelivredalienor/
acesso em 22 de maio de 2017. p. 60-62.
[11] FLORI, Jean. Aliénor D’Aquitaine. La reine insoumise. Paris: Éd. Payot &
Rivages, 2004.
[12] Idem, p. 337-338.
[13] Sobre o amor cortês, Jean Flori escreveu um
excelente capítulo na biografia que consagrou à Leonor, p. 352 a 368.
[i] FLORI, Jean. Aliénor D’Aquitaine. La reine insoumise. Paris: Éditions Payot
& Rivages, 2004. p. 32.
[ii] Idem, p. 41.
[iii] http://www.lexpress.fr/informations/une-reine-moderne_636046.html
acesso em 26 de maio de 2017.
[iv] POÉSIE DES TROUBADOURS. Anthologie présentée
et établie par Henri Gougaud. Texte français de René Nelli et René Lavaud, revu
et corrigé par Henri Gougaud. Éditions Points, 2009. p. 43.
[vi] http://www.chateaudetalmont.com/module-Contenus-viewpub-tid-2-pid-15.html
acesso em 26 de maio de 2017.
[vii] FLORI, Jean. Aliénor D’Aquitaine..., p. 60 e 64.
[viii] Idem, p. 305.
[ix] Idem, p. 344.
[x] POÉSIE DES TROUBADOURS..., p. 109.
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