Estava consertando o uniforme,
quando o filho lhe perguntou: “Mãe, você também sabe pilotar uma moto
helicóptero?” Levou alguns segundos para compreender o contexto da pergunta: um
desenho na televisão, em que o personagem lançava a questão à própria mãe. Pelo
também concluiu rapidamente que seu
espelho ficcional tinha frequentado um tipo incomum de autoescola. Não teve
dúvida: “É claro. Que espécie de mãe eu seria se não soubesse?”. E continuou a
costura da blusa surrada, já muito precisada de substituição, consciente de que
os patrões não teriam jamais acuidade visual para perceberem aquele estrago
natural das lavagens sucessivas combinadas com os anos de dedicação.
Ao longo do dia, até o momento em
que haveriam de sair, viu-se observada pelo seu pequeno companheiro. “Mãe, por
que é que depois que eu arrumo o meu quarto de manhã, lá pela tarde, ele tá
mais ajeitado que antes?”; “Mãe, por que é que o ovo cozido não volta a ser
mole, depois que esfria?”; “Mãe, se a gente varre e tira o pó da casa todo dia,
de onde vem o pó novo que a gente varre e limpa no dia seguinte?”; “Mãe, a
gente troca de pele?”. “Porque a arrumação é que nem a desarrumação e o
desconhecimento, só vai crescendo.”; “Porque às vezes não dá para voltar atrás,
nem quando se é ovo”; “Porque a poeira é curiosa, entra pelo buraco da
fechadura”; “Sim, a gente troca de pele, principalmente quando se é cobra ou
lagarto”.
Uma vez na escola do filho, ouviu a
jovem professora cheia de palavras decoradas do dicionário falar que o menino
era imaginativo e contava “cada uma”; que achava “muito lúdico”, mas que era
preciso “tomar cuidado”... Interrompeu: “Esse negócio de lúdico ameaçava a vida
de alguém?” O filho quebrou a perna uma vez, mas não se lembrava da palavra
lúdico entre as palavras decoradas do médico. “Não ameaçava a vida; era um fenômeno
cultural, uma das bases da civilização, o jogo...”. Interrompeu: “de futebol?”.
“Não...”, não escutou mais nada, aliviada de o filho não ter saído até naquilo
ao traste que a engravidara.
Colocou a janta na mesa e arrumou
as coisas dele para levar à própria mãe. Gostava muito de trabalhar à noite e
às vezes quando lhe perguntavam se sofria, costumava agradar o curioso
observando que era a sua única opção; via a sensação boa que caía como uma
benção na expressão da pessoa que perguntava, quando soltava aquela verdade
alheia. Como única opção era tão
compreensível! Assim preservava a verdade particular. Adorava trabalhar à
noite. O silêncio, só interrompido pelo barulho de uma freada tão distante que
às vezes era difícil diferenciar de um alarme, dava importância a cada gesto ou
coisa. A vassoura, o balde, até o pano que deslizava sobre o chão não se
misturavam com nada, e aquilo era bom, inteiro. Às vezes, ousava dançar, flutuar
descalça e podia mesmo rebolar até o chão, mesmo que não fizesse, temerosa da
inconfidência de uma câmera de vigilância instalada pelos patrões para dentro
dos seus domínios.
Quando fechou a porta de casa e
segurou a mãozinha do filho para a caminhada até o ponto de ônibus, percebeu
que ele hesitava. “Mãe, se você sabe pilotar uma moto helicóptero, por que é
que a gente não vai até a vó voando e depois você não continua voando até o
trabalho?”. Lembrou. “É simples. Porque mesmo que eu saiba pilotar e até faça
isso muito bem, eu ainda não consegui juntar dinheiro para comprar uma”. “Mãe,
um astronauta só pode ir à lua se algum governo emprestar uma nave...”. “Você
conhece alguém que tem uma moto helicóptero?”. “Não”. “Então também não posso
pedir emprestado. A gente pode ir de ônibus até uma dessas coisas acontecer
primeiro: ou eu conseguir juntar o dinheiro ou alguém me emprestar”. Viu-o
sorrir e se apressar. Lá vinha o ônibus. “Tá pronto? Bora usar as asas dos
pés”. “Mãe, nosso pé tem asas??!!”. “Claro! Já me viu perder ônibus alguma
vez?”.
Violeta Bevilaqua
Violeta Bevilaqua é bibliófila.
Ilustração
de Maria Clara Guimarães Prado.
Maria Clara tem 8 anos, é
estudante, faz Ginástica Rítmica e quer ser veterinária quando crescer.
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