No dia 2 de julho último, aconteceu
no distrito de Brumal, município de Santa Bárbara (MG), a 80ª edição das suas
Cavalhadas. Viajei especialmente para acompanhar e documentar a festa, regida
por um “maestro” que há 61 anos integra a mesnada[1], falo de Divino Lúcio.
(foto do livro de Dilce Mendes, p. 6, realizada por Moacir Nunes)
Conheço bem a festa por leituras e
experiência própria, pois já estive na cidade de Guarapuava (PR) para
acompanhar a manifestação que, no ano em que lá fui, envolveu cerca de 600
pessoas, entre atores, cavaleiros e comunidade vestida “à moda medieval”! Como
medievalista, tenho grande consideração por tudo o que promove a curiosidade
das pessoas para o estudo dos modos de viver desse largo período ainda hoje
marcado pelo desconhecimento e pelo preconceito. Quem já não ouviu ou leu (!) a
famigerada expressão “Idade das Trevas” associada à Idade Média? Pois é, o que
vi em Brumal foi luz e cor, o que há de mais próximo dos vitrais de uma
catedral gótica...
Segundo Dilce Amara Mendes:
a
festa [em Brumal] foi criada pelo tropeiro Jorge da Silva Calunga, natural de
Morro Vermelho, distrito de Caeté. Em meados de 1936 mudou-se para Brumal com
toda a família. Tropeiro, foi trabalhar numa fazenda onde conheceu Amaro
Antônio Luiz, que exercia a mesma profissão. Após terem uma graça alcançada por
Santo Amaro, os amigos decidiram realizar a cavalhada em sua homenagem,
seguindo as características da festa existente na terra de origem de Jorge.[2]
O cavaleiro Divino Lúcio a quem me
referi no primeiro parágrafo é filho de Amaro Antônio Luiz. Dilce Amara
Mendes é a organizadora do belíssimo livro Brumal
mostra a cavalhada, obra bilíngue (português e inglês), repleta de depoimentos
e de fotografias. Segundo um de meus informantes, praticamente toda a
comunidade de Brumal tem em casa um exemplar da obra. Trouxe para a minha casa
o exemplar desse meu informante, não surrupiado, mas ofertado.
Creio que muita gente sabe a origem
da festa. Ela remonta à Reconquista, um conceito controverso, mas operativo,
que enfeixa relações vivenciadas na Península Ibérica, durante a Idade Média:
expansão territorial (por sobre os territórios conquistados pelos muçulmanos
depois de 711); confronto bélico; expansão do poder político cristão;
substituição de modos de viver radicados nas relações feudo-vassálicas, nobreza
bélica e suporte ideológico[3]. Desse conteúdo
ideológico, faz parte o universo da guerra justa e da guerra santa. A
Reconquista teve como seu guardião espiritual, São Tiago, cujas relíquias
encontradas na Galiza no início do século IX fortaleceram a coesão das
populações cristãs frente ao domínio mouro.
Todos sabemos como essa história
terminou: a conquista cristã do reino mouro de Granada marca (para mim) o fim
da própria Idade Média na Península Ibérica, em 1492. A Reconquista não se
confunde com a Idade Média Ibérica, mas é um de seus elementos constitutivos
mais estruturais. É evidente que uma vitória tão retumbante do cristianismo,
frente a uma presença que durante séculos foi culturalmente mais brilhante
haveria de ser evocada e comemorada de muitas formas. Assim, nasceram as cavalhadas.
Elas habitam o diversificado
repertório cultural trazido pelos portugueses ao Brasil. Mas se no medievo a
sua base de realidade pingava sangue, hoje no Brasil essa festa agrega as
pessoas e promove a paz:
·
Com o
passar dos anos, para mim, a Festa de Santo Amaro se tornou o momento de
encontros. Momento de Brumal e sua gente se reencontrar. Gerações que haviam se
mudado retornavam e, juntas, traziam seus filhos. (depoimento de Murilo
Nazário)[4];
·
A Cavalhada
de Brumal (...) promove e fortalece o que é o maior legado desta festa: o
sentimento de pertencimento comunitário da Vila. (depoimento de Viviane Corrado
de Andrade)[5]
Cheguei a Brumal no dia 1º de
julho, sábado, e pude acompanhar a preparação do terreno em que se daria a
corrida.
No dia 2, continuei a observar e a documentar a instalação de barracas, bandeirinhas e ornamentos vários. Visitei o recém inaugurado Memorial da cavalhada[6]. Esse espaço é bem organizado e oferece informações claras ao público. Na entrada, um grande mural contextualiza a Reconquista, a chegada do tema ao Brasil e a festa, a Brumal. Ao longo de um corredor, é possível contemplar a galeria de cavaleiros e notei logo que essa tropa é formada por homens de diferentes idades, que vão assumindo o lugar de seus parentes. Achei interessante esse resíduo nobiliárquico! Sabemos que no medievo a cavalaria não se confundiu sempre com a nobreza. A princípio, nem cavaleiros havia!, o que havia eram guerreiros, homens armados, milites, como surgem nos documentos. Esses homens foram se transformando e sendo transformados até um contexto em que príncipes e reis não se contentariam com seus status, queriam ser cavaleiros e assim foram feitos, sobre o chão das batalhas e em cerimônias faustosas ou mesmo simples[7].
No dia 2, continuei a observar e a documentar a instalação de barracas, bandeirinhas e ornamentos vários. Visitei o recém inaugurado Memorial da cavalhada[6]. Esse espaço é bem organizado e oferece informações claras ao público. Na entrada, um grande mural contextualiza a Reconquista, a chegada do tema ao Brasil e a festa, a Brumal. Ao longo de um corredor, é possível contemplar a galeria de cavaleiros e notei logo que essa tropa é formada por homens de diferentes idades, que vão assumindo o lugar de seus parentes. Achei interessante esse resíduo nobiliárquico! Sabemos que no medievo a cavalaria não se confundiu sempre com a nobreza. A princípio, nem cavaleiros havia!, o que havia eram guerreiros, homens armados, milites, como surgem nos documentos. Esses homens foram se transformando e sendo transformados até um contexto em que príncipes e reis não se contentariam com seus status, queriam ser cavaleiros e assim foram feitos, sobre o chão das batalhas e em cerimônias faustosas ou mesmo simples[7].
O Memorial acolhe o figurino dos
cavaleiros e, na varanda dos fundos, podemos ver dois imensos bonecos feitos em
tecido que representam o cavaleiro cristão e o cavaleiro mouro. Há também uma
boa cozinha e um salão onde os cavaleiros jantariam depois da festa. Ainda não
era hora do almoço, mas o trabalho estava fervendo ali.
Segundo apurei, a casa em que
funciona o Memorial foi cedida para esse fim e as pesquisas e obras que o
viabilizaram foram resultado de uma parceria entre a prefeitura de Santa
Bárbara e uma mineradora. No dia de minha visita, conheci o Prefeito Léris
Felisberto Braga, entusiasta das cavalhadas. Conversamos um pouco, falei das
razões de minha visita e ouvi alguns de seus planos. Observei depois que ele
prestigiou toda a festa e perambulou no meio do povo. Em tempos de tanto
descrédito político, achei inusitada a relação amistosa e aparentemente próxima
entre ele e os moradores do distrito.
Participei da missa campal, em
homenagem a Santo Amaro, o “São Tiago” do presente de Brumal. Santo Amaro não é
“matamoros”[8], é
o amigo de São Bento, portanto jamais soube em vida o que era um mouro[9]... Em janeiro deste ano, quando
visitei o Santuário do Caraça, eu havia conhecido a pequena e bela igreja
barroca construída em sua homenagem. Segui a procissão, guiada pela imagem
tricentenária. Tudo isso constitui a agenda das cavalhadas de Brumal.
Havia muitos cavaleiros em Brumal
para as Cavalhadas, não necessariamente participantes da “campanha”. Destaco os
cavaleiros do município de Raposos (MG), chamados de “Cowboys da amizade”,
entre outros e mesmo mulheres que participam de cavalhadas femininas, que
gostaria muito de documentar um dia! Essas mulheres ajudaram no momento do
trançado das fitas, manobra realizada pelos cavaleiros de Brumal.
No fim da tarde, a entrada da tropa
de Divino Lúcio no terreno foi anunciada com papel picado colorido e muitas
palmas. Um pouco antes, os organizadores distribuíram pequenos lenços para que o
público pudesse acenar para os cavaleiros.
A mesnada foi composta por 34
cavaleiros, liderados pelo comandante. No princípio, foram realizadas as
embaixadas, que são uma espécie de profissão de fé da “campanha”. Os cavaleiros
treinam a fala e o microfone ajuda a gente a entender algumas frases. É
importante lembrar que falam enquanto exibem a destreza a cavalo e “confrontam”
o comandante, empinando a montaria. Várias coisas juntas...
(...)
completei idade e fui convidado pelo meu pai a fazer parte da cavalhada como
cavaleiro. Comecei acompanhando, correndo, até que chegou o dia de ser
embaixador. Foi com orgulho que treinei e decorei a embaixada. Para mim tudo
isso é muito especial porque é tradição de família. (depoimento de Luciano
Bernardo Luiz, filho de Divino Lúcio e neto de Amaro Luiz) [10]
(Foto do livro de Dilce Mendes, p. 72, realizada por Marcos Leg)
Depois começaram as evoluções do
grupo. Como foi a primeira vez que vi o espetáculo, não posso afirmar que a
“coreografia” tenha mudado ao longo dos anos[11]. Taí uma pergunta para
fazer em uma próxima visita a Brumal. No excelente livro organizado por Dilce
Mendes também não encontrei pista disso, a não ser algumas imagens em que
cavaleiros empunhavam espadas. Assim, sobre o que vi, posso dizer que na edição
de 2017 das cavalhadas de Brumal não vi jogos (como por exemplo, lançamento de
arco em argolas), mas evoluções, como a trança das fitas e outros movimentos
realizados por cavaleiros cristãos e mouros de forma colaborativa. Mesmo quando
o locutor anunciava que o movimento significava um combate, os cavaleiros não
emulavam a luta, mas executavam um “ballet” em que se misturavam cristãos e
mouros. Essa foi para mim a mais significativa renovação da memória e da
História! As cavalhadas em Brumal celebram para o público – da comunidade ou
para os turistas – que é possível cavalgar junto, na diferença. Não sei ao
certo se as pessoas que prestigiam o evento e que aplaudem a destreza dos
cavaleiros têm consciência disso. Mas se esse “ballet” tiver despertado o
interesse de visitar o belo memorial e ler um pouco mais a respeito da
Reconquista, as cavalhadas, realizadas em nosso país, em diversas localidades
do Brasil, terão cumprido um papel importante de promoção do conhecimento de
uma realidade específica, radicada no medievo, e de como tradições podem ser
renovadas e transformadas!
Ora, mesmo quando há disputa entre cavaleiros, refiro-me às praticas em outras cavalhadas, ao final, o que se promove é a paz; é a possibilidade de congraçamento. Em Brumal, depois da festa, cavaleiros mouros e cristãos sentam-se à mesma mesa e como afirmou Isidoro de Sevilha (séculos VI e VII) em sua Regra: “não pode haver uma mesa comum para os que não partilham do modo de vida”[12]. No período das Cavalhadas, a comunidade de Brumal se reconhece nessa mesa comum.
Um dos segmentos mais
significativos do livro de Dilce Mendes é a recolha dos depoimentos das
crianças, entre os quais eu destaco o de Gleison: “Sou um cavaleiro mirim e,
quando eu crescer, vou ser um cavaleiro de verdade e representar os mouros e
cristãos na Cavalhada de Santo Amaro”[13]. Na declaração do menino,
leio a vitalidade das cavalhadas e uma promessa a ser fortemente levada em
consideração no mundo em que vivemos... Gleison não se importa em ser mouro ou
cristão, quer ser cavaleiro! Acho que ele compreendeu tudo.
Epílogo:
Em janeiro de 2017, estive no
Santuário do Caraça com minha família. Era um sonho antigo meu! Lá conheci o
Padre Lauro e Sílvio Quirino Pereira, funcionário do santuário. Graças a
Sílvio, conheci a igrejinha de Santo Amaro, segui a procissão do santo em
janeiro e fiquei sabendo da realização das cavalhadas em julho. Sílvio me
acolheu em Brumal; hospedou-me; levou-me a todo canto; apresentou-me a pessoas,
ao prefeito de Santa Bárbara e à sua família: a esposa Joana, as suas meninas
Fran e Sabrina, seus netos Arthur e Calebe, suas irmãs Geralda, Márcia e
Margarida, seu irmão Pedro e a esposa, Mariza, que preparou nosso café da
manhã. Esse texto não existiria sem o seu acolhimento amigo que me fez me
sentir parte da família, como uma prima que mora em outra cidade e que vem
rever os seus sempre que pode. Obrigada, Sílvio. Agradeço também à minha mãe,
que largou suas coisas, seu gato (felino mesmo rsrsrs), para me acompanhar e
segurar a minha mão no avião.
Pergunta: quando
mesmo serão realizadas as próximas cavalhadas, comunidade de Brumal?
Confira o álbum em: https://www.facebook.com/marcella.lopesguimaraes/media_set?set=a.936714086468480.1073741906.100003896911130&type=3&pnref=story
[1] Tropa.
[2] MENDES, Dilce Amara Margarida (org.). Brumal mostra a cavalhada. Santa Bárbara
(MG): Associação Comunitária de Brumal, 2013. p. 4.
[3] Sobre o tema da Reconquista, sugiro o
excelente texto de García Fitz: GARCÍA FITZ, Francisco. “La Reconquista: un
estado de la cuestión”. Revista Clio
& Crimen 6, p. 142-215, 2009. Disponível em: https://www.durango-udala.net/portalDurango/RecursosWeb/DOCUMENTOS/1/1_1945_3.pdf ; acesso em 6/07/2017.
[4] MENDES, Dilce Amara Margarida (org.). Brumal mostra a cavalhada. Santa Bárbara
(MG): Associação Comunitária de Brumal, 2013. p. 16.
[5] Idem, p. 25.
[6] O Memorial foi inaugurado em 23 de junho de
2017.
[7] Sugiro o pequeno livro de Jean FLORI: A cavalaria. A origem dos nobres guerreiros
da Idade Média. São Paulo Madras, 2005.
[8] São Tiago foi chamado assim no medievo, quando
atuou como “patrono” da Reconquista.
[9] Maomé teve revelado o conteúdo do Alcorão
entre 610 até a sua morte em 632, portanto depois da existência histórica de
Amaro (ou Mauro) e Bento.
[10] MENDES, Dilce Amara Margarida (org.). Brumal mostra a cavalhada. Santa Bárbara
(MG): Associação Comunitária de Brumal, 2013. p. 18.
[11] No mural que cobre o 1º aposento do
Memorial, há os esquemas das evoluções.
[12] Retirei o trecho do excelente livro do meu
amigo Renan FRIGHETTO: A comunidade vence o indivíduo: a regra monástica de
Isidoro de Sevilha (século VII). Curitiba: Prismas, 2016. p. 191. Lembro-me que
quando li os originais da obra, “obriguei” meu amigo a colocar esse trecho como
epígrafe. Pois não é que ele me atendeu?! É a epígrafe de sua conclusão.
[13]
MENDES, Dilce Amara Margarida (org.). Brumal mostra a cavalhada. Santa Bárbara
(MG): Associação Comunitária de Brumal, 2013. p. 24.
Nenhum comentário:
Postar um comentário