Sábado, dia 29 de abril, fui ver o
filme brasileiro Joaquim (2017), de
Marcelo Gomes e estrelado por Júlio Machado, no papel título. Ele me fora
recomendado por duas amigas. Como eu não sou uma historiadora consagrada à
pesquisa das relações entre História e Cinema, nem sou uma historiadora que
pesquisa História do Brasil, esses comentários são naturalmente pouco
científicos. Vi o filme como documento do presente é claro e como experiência
estética.
Eu tinha a expectativa de ver uma
cinebiografia de Tiradentes radicada no Brasil triste em que vivemos, e assisti
decerto a um filme biográfico, que relê a trajetória do herói antes dos eventos
que haveriam de transformá-lo em feriado republicano, compreendido em um feixe
de relações cuja singularidade não é sacrificada pela ambição de perscrutar uma
individualidade específica. O que eu mais gostei no filme (e eu gostei do
filme) é que os personagens têm história, às vezes pequena, às vezes mais
robusta, mas sempre deles próprios. Ninguém ali precisa de Tiradentes para viver.
No início do filme, a narração post mortem meio didática e talvez
desnecessária, da cabeça fincada num pau, identifica o personagem. Essa
introdução pode ter a intenção de aproximar-se da expectativa do público (e
minha!), para na sequência surpreender com outro caminho. Depois da narração, vemos
o alferes: cabeludo, piolhento, a dividir a comida com os companheiros e
“permitir” ao pequeno índio partilhar aquele pouco (prenúncio do herói?), rechaçado
nas sucessivas promoções dos outros para tenente... Ao seu lado, Januário, que
sonha ser alferes; Benedito da venda; Zua, mulher que Joaquim deseja, mas que
se liberta a si mesma (inclusive dele); João, pai de família que vive na condição de escravo de
Joaquim; Matias, o português que vem da corte e integra uma expedição por ouro...
É interessante que intendentes e governadores, cujo exercício de poder ressuma
a corrupção e empáfia, não têm história própria. É uma “vingança” da narrativa que
aprovamos.
Joaquim tem dois sonhos: a
princípio quer ser tenente. Mas depois que Zua esfaqueia Benedito, que a obriga
a sujeitar-se às sevícias sexuais do intendente, Joaquim deseja reencontrá-la.
Já no sertão proibido, embriagado com os companheiros, afirma que o ouro que
tanto buscava seria o recurso para conquistar a promoção e Preta. Então o ouro
é caminho, não fim. Detalhe importante: só sabemos que Preta é Zua, quando ela
está no quilombo e é uma cena de fazer a gente gritar no cinema. Algo assim: Meu nome não é Preta; Preta é cor; meu nome
é Zua. Arrepio. Depois ela dança, é uma mulher, é uma guerreira. Novo arrepio.
Cena bonita mesmo. Mas sabe o que eu achei brilhante? Foi Zua libertar Joaquim.
A mulher que libertou a si foi também a que libertou o herói. Ponto para
Marcelo Gomes.
Nessa noite de embriaguez, cada
homem fala sobre seus desejos. É uma cena triste e bonita. Joaquim, Januário e
Matias...; mas ali perto João e o indígena que guiava a expedição conversam
também, só não podemos compreender. O diretor nega a tradução. Eu gostei disso.
De manhã, uma das minhas cenas do filme: o guia indígena e João cantam, cada um
no seu ritmo e idioma, enquanto os militares dormem, roncam, Joaquim abre os
olhos... Quando o canto é silenciado, a câmera para no rosto de João. Joaquim
observa deitado, um detalhe no canto da cena. É um quadro. A minha outra cena
também é protagonizada por João.
Joaquim empreende uma busca
infundada por ouro. Na volta, vencido, detém-se em uma propriedade onde
descobre umas pedras que pressupõe serem valiosas. Já havia tirado um dente de
Benedito e nessa propriedade acaba por ajudar uma das esposas do proprietário (as
terras brasis são cheias de relações reconfiguradas...). Ora, é o Tiradentes!
Joaquim leva essas pedras para o
governador e, na vila, aproxima-se das pessoas, livros e ideias que haveriam de
transformá-lo no feriado nacional. É importante perceber, porém, que a escolha
de Marcelo Gomes é compreender essa aproximação como fruto da solidão e da
desilusão. Nisso, o filme firma seu pacto com o presente. As pessoas, os livros
e as ideias não libertam Joaquim, abrem-lhe certamente possibilidades, é
preciso continuar a viver, mas o herói de Marcelo age porque seus sonhos
morreram... Como é difícil escrever isso.
Minha segunda cena no filme tem a
ver com a solidão do herói e com a reivindicação de um homem, pai e marido. Na
vila, João vai visitar a mulher e as filhas. Conta a Joaquim que a esposa havia
juntado o dinheiro necessário para comprá-lo... A princípio, Joaquim refuta a
transação. Diz mais ou menos o seguinte: você
também vai me deixar sozinho? João olha nos olhos do senhor, fala que as
filhas estavam crescendo, que precisava cuidar da família. Se Joaquim não tem
ninguém, João tem família. O herói diz: você
tem direito. Marcelo Gomes põe na boca do seu Joaquim o reconhecimento do
direito de um homem (e de uma mulher, afinal Zua havia antecipado esse embate)
de ser livre, que João vai buscar do jeito que encontra para isso naquele
contexto. É um jogo temporal interessante. Presente e passado se encontram na
narrativa, na História do Brasil.
Epílogo
O filme estreou em nosso país na
altura do dia de Tiradentes, 21 de abril, e pouco antes do dia 28 de abril, dia
da greve nacional. Não posso deixar de apontar essa sintonia, que agrega mais
sentidos à narrativa fílmica. Eu não esperava um filme comemorativo, mas me
surpreendi com a solução de Marcelo para mover o herói: ao mesmo tempo, a
desilusão; ao mesmo tempo a necessidade. Nisso, Joaquim parece um homem de 2017.
E ele parece tanto que a narrativa post
mortem do início pode não ser exatamente didática como a princípio a
compreendi. Vendo Joaquim é possível confundir-se com ele hoje; ou ver nele
nosso próximo[1]
mais aguerrido, meio desbocado e violento, entre desiludido e triste,
entretanto não abatido, no Brasil que temos.
[1] No sentido como o compreende Paul Ricoeur,
em Memória, história e esquecimento,
e eu no capítulo “Amizade” de Diálogo
sobre o tempo: entre a Filosofia e a História.
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