terça-feira, 26 de abril de 2016

A Flor da Liberdade

Literistórias agradece ao amigo, Prof. Dr. António Rei, por essa memória tão afetiva do seu 25 de abril!

Évora, 25 de abril de 2016

Minha mãe me despertou às 7h da manhã do dia 25 de abril de 1974, e disse: “Há um movimento militar em Lisboa”.
Eu saltei do sono para o despertar.
De um novo dia.
Do novo dia.
Ouvi um comunicado na rádio, com meus pais e o nervoso miudinho se instalou.
Um mês antes, a 17 de março de 1974, houvera um movimento militar que abortara, e os oficiais generais se impuseram, declarando publicamente a sua fidelidade ao regime totalitário que desde 1926 dominava em Portugal.
Enquanto não ficou claro a tendência do golpe e a orientação política do mesmo, houve horas de expectativa.
Na escola esse dia foi diferente.
A primeira aula, de Física, foi uma conversa sobre a situação política e sobre a guerra colonial que se arrastava, e ensombrava o futuro dos jovens, em especial dos rapazes: “Como é ? Vais à guerra ou dás o salto?”
Era o drama que o tempo cada dia acercava mais de nós: ou ir à guerra, podendo não voltar; ou fugir para o estrangeiro, para não ir à guerra, podendo não voltar ?
Muitos conhecidos tinham tomado uma ou outra decisão, e as consequências eram visíveis: trauma de guerra, ou uma caixa de madeira, no primeiro caso.
Ou no segundo, uma ausência, entrecortada por alguma correspondência, enviada de França, da Alemanha, da Holanda… Essas cartas eram lidas em família, de forma quase incógnita. Ter um filho que “saltara a fronteira” era ter um filho “traidor”...

A partir daquele dia, e de quando ficou clara a orientação política do Movimento das Forças Armadas, nós, os jovens, tivemos a percepção que estávamos na crista da onda da História: estávamos sendo atores espetadores da História.
Tudo o que até então era inacessível e proibido passava a ser possível. E assim foi.
A Europa, para nós começava a norte dos Pirenéus, pois o regime espanhol de Franco, similar ao português, não era fiável.
Os que tinham saído puderam voltar, e a guerra avançou para o seu fim, e para a independência das colônias africanas.
Sentíamos que os olhos do mundo se cravavam em nós. O que acontecera em Portugal fizera alterar os equilíbrios geo-estratégicos mundiais, em especial no eixo atlântico.

Para a juventude europeia de então, Portugal apareceu como a “Terra Prometida”:
a Revolução dos Cravos tomara o poder.
Nesse momento confluíram em Portugal as expectativas de todos os que em Maio de 68 tinham proposto “Utopia ao Poder” e uma efetiva socialização da sociedade, em que se derrubassem as diferenças sociais; e também o culminar do Flower Power que em 69 tinha tido em Woodstock, USA, em 70 na Ilha de Man, Inglaterra, duas provas vivas de que é possível uma vida sem guerra, em que cada um ame seu irmão como a si mesmo. Quando os ensinamentos espirituais e a ética social pareciam fundir-se e ficar ao alcance da mão.
Para os irmãos espanhóis Lisboa passou a ser o local de refúgio dos seus dissidentes, que aqui preparavam a sua nova realidade social. Bastava esperar que Franco morresse…
Muitos faziam excursões de fim-de-semana a Lisboa para fazerem tudo o que continuava sendo proibido em Espanha…
Era uma autêntica peregrinação, a novos lugares e novas realidades sociais que levavam na cabeça e no coração, de volta para suas terras.
O êxodo de jovens de toda a Europa a oeste da “Cortina de Ferro” para Portugal foi uma realidade.
Vinham para participar do espírito da Utopia e da Flor no Poder.
A Reforma Agrária viu as suas comunas agrícolas cheias de jovens de longos cabelos e colares de missanga que trabalhavam com os portugueses por um prato de comida. Pela confraternização.
Pela Liberdade, pela Fraternidade, pela Igualdade.
Foi um tempo realmente exaltante.
Nós éramos a Revolução, e a Revolução acontecia em nós.
Tudo era novo. Para nós, e para eles. E todos nos fomos despindo de preconceitos, e de roupa. O amor livre assentou arraiais nas praias e nos campos e nas cidades  de Portugal.   
A censura terminara e toda a literatura e música, proibidas entraram na nossa vida.
Tudo se tornou uma vertigem.
Tudo ficou diferente e mesmo quando, uns anos depois, a poeira social e cultural assentou, nada mais voltou a ser igual.
Anos mais tarde, em pontos vários da Europa, encontrei gente que tinha estado em Portugal naquele período, entre 1974 e 1980, e que falavam de suas experiências com um misto de gratidão e alguma desilusão, por se ter desvanecido o que parecia estar logo ali.
Enquanto estiveram em Portugal terão aprendido, muito possivelmente, o sabor da “saudade”.
Muitos ainda regressam para rever gente e lugares, apesar de tudo.
Outros não quiseram voltar mais, para manter intactas as imagens do estado de graça que aqui viveram, e que a realidade atual iria manchar.
Todos têm e tiveram a sua parte na Revolução dos Cravos.
Todos puseram uma parte no todo.

25 de abril sempre !


António Rei

Navegar é preciso.

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