Outro dia, a minha querida Denise
Mazocco me mostrou a autobiografia de Rita Lee e me disse: “Marcella, você não vai
reoferecer aquela disciplina de biografia? Então, você tem de ler esta aqui
[mostrou a autobio], pela narrativa”. Então, quando o Luiz me perguntou o que
eu queria de presente de Natal, não titubeei. Tenho sido muito feliz em aceitar
sugestões de leitura de gente bacana!
Quando eu entreguei a lista para o
Papai Noel, ele me mostrou a resenha de Sérgio Garcia, publicada na Época de novembro. Resenha correta,
atenta aos acontecimentos narrados, opinião aqui e ali, trechos do livro
recuperados, fotos. Acho que cumpre o papel de informar o futuro leitor de
Rita. Só tenho um senão: a sua expectativa meio óbvia de sexo, drogas e
rock’n’roll.
Vamos ver se eu sei cumprir o papel
de informar. A primeira memória de Rita é uma casa (Garcia começa assim também):
a casa da Rua Joaquim Távora, 670, na Vila Mariana. A descrição da casa, do
porão, do palquinho e do pé direito alto deixa entrever gente passando pelas
portas. A gente de Rita. Ela vai devagar... até que bruscamente insere o
trauma: a morte da pata Débora! Essa é uma pista boa demais para entender a
sugestão que Denise me deu: a autora combina habilmente as diferenças de ritmo
na narrativa. Cadê a surpresa? Ela sabe compor.
Na descrição do casarão há outro
elemento (recorrente no texto todo): o humor. Meu livro está cheio de risos nas
margens. O que é “Lavou bem sua Emilinha Borba?” ou “O sutiã novo tá machucando
a Marlene”? Chorei. O que é essa revelação de papi: “’Rita, eu acredito em você
e vou te contar uma verdade: Papai Noel, Coelho da Páscoa, Deus e o Diabo, Céu
e Inferno, essas bobagens não existem, quem compra os presentes é sua mãe. O
que você viu não foi o Peter Pan. Você viu um disco voador, minha filha!’/ Da
série ‘a verdade dói, mas liberta’” (p. 44). Tremi.
Mas nem só de risos vivem as minhas
margens. Há pontos de exclamação e reticências. Sérgio Garcia referiu a
violência sofrida na infância, não posso ignorar..., o que me faz pensar que
nenhuma composição dá conta do horror da experiência. Chorei.
A família é uma casa e Rita sente
que precisa habitá-la para nós, até porque ficamos confusos a princípio sobre
quem é mesmo papai, mamãe... Ao lado da descrição dos personagens, seus signos:
mãe geminiana; pai canceriano; madrinha virginiana; irmã adotiva canceriana...
Rita, capricorniana com ascendente em aquário, eita conflito[1]! Aos poucos, a origem
misturada – italianos e americanos – vai sendo destrinchada por quem viveu as
contradições de um lar em que havia, pasmem![2], muito amor. Quando seus
filhos surgem na vida e no texto, também aparecem devidamente identificados pelos
seus signos do zodíaco.
Na página 52, surge um elemento
textual muito interessante na obra: o Phantom, desenhado e tudo, com uma caixa
de texto rabiscada: “Não se assuste, sou Phantom, sabe como é. Sabemos que
algumas ‘autobiografias’ de artistas são obras de ghost writers. A autora deste livro, entretanto, fez questão de
escrever tudo. Sabemos também, que a memória dela pode trair, e que sua
autocrítica (também conhecida como ‘chatice com ela mesma’) pode interferir
(...). Então, vou assombrar este livro desembaralhando umas cronologias,
apontando dados deixados de fora...”. Essa presença está longe de ser
obsessiva, ela é ótima, muito orgânica. Tece um diálogo bom com Rita e ajuda o
leitor, porque se trata de um grande leitor da vida de Rita! Fiquei o livro
todo com vontade de mandar uma mensagem para a autora sobre esse personagem.
Mas não precisei, pois em “colecionador de mim”, ela esclarece. Trata-se de
Guilherme Samora, um fã apaixonado, mas não cego. Fofo.
A narrativa é toda cortadinha em
episódios: “manas parceiras”; “primeiro emprego”; “banda vai, banda vem” e por
aí... segue (pensou que eu ia escrever “vai”?). Para o historiador que acredita
que a experiência vivida é organizada de forma narrativa, o que significa
afirmar o caráter racional da narrativa, estruturante de quem somos para nós e
para os outros, essa autobiografia é um desafio a mais. Mais um ponto para a
Denise!
Dois elementos sobressaem na
narrativa: o narrador, mas isso é meio esperado em se tratando de uma
autobiografia, e o tempo. Confesso que quando escrevi isso pensei na
possibilidade de estar sendo ludibriada pelo elemento que me fascina como
historiadora e leitora obsessiva do Marcel Proust. Então, vou tentar me
defender. Na página 77, Rita afirma: “sou péssima em matéria de precisão
histórica, escrevo sobre as impressões que ainda guardo na minha maltraçada
memória”. Então, a gente se pergunta: como Rita afinal demarca o tempo?
Guardo a minha hipótese por um
parágrafo. A narrativa de Rita é linear. Aqui e ali, antecipa e volta, mas não
ameaça jamais a linearidade. Nós a vemos crescer; adolescer; experimentar; dar
com os burros n’água; ser enganada, mas não ser vítima; lamber a maçaneta dos
Beatles, mais risos...; conhecer Roberto, parir ordenadamente e registrar
“polaroides”. Rita chama de polaroides
extratos de memória, insulados do esquecimento. Eles aparecem mesmo
identificados em breves listas: “minha memória guarda três minipolaroides desse
festival”; “ressalto três polaroides”; “guardo três polaroides sentimentais”.
Volto à hipótese. Rita demarca o
tempo com a sua discografia. Não sei se fez intencionalmente ou se respondeu à
sugestão de Phantom, ou da editora mesmo, o fato é que os discos, ou seja, a
sua música a localiza no tempo e isso é uma das coisas mais acertadas da
narrativa como realização de um projeto arquitetônico (desejo de escrever sobre
si) que tem de organizar o vivido para o outro (e para si...).
Para os que conhecem (muito melhor
que eu inclusive!) a biografia de Rita era esperado que muitas páginas de sua
autobiografia fossem dedicadas à sua relação com os Mutantes. Rita vai fundo. Esse
mergulho não exclui o ressentimento. Não julgo Rita, falo da narrativa. É
possível que ela tenha superado esse veneno em forma de sentimento que muita
gente tem vergonha de admitir que alimenta no coração. Só posso falar do que li
e a narrativa borda episódios de fel... Delícia. Ironia.
Há um segmento que mistura
ressentimento e História que me interessou muito. Depois de falar francamente
da importância dos Mutantes na “cena musical daquela época” e de afirmar sem
meias palavras o seu papel: “Hoje, os Mutantes são considerados cult, especialmente a fase da qual fiz
parte, o que muito me orgulha” (p. 110), Rita solta: “Eu aqui apenas conto o
lado da minha moeda com o distanciamento inverso ao dos críticos-viúvos que
teimam interpretar a história como se soubessem mais do que quem, como eu, fez
parte dela”. Há muitas coisas significativas no trecho: a relação de Rita com
os críticos (que perpassa outras páginas...), mas também o ponto de vista de
quem integra a experiência e de quem a revê anos depois, alimentada pelo
conhecimento ulterior dos seus desdobramentos e pela mudança dos próprios
sentimentos. Rita foi protagonista e crítica da peça que estrelou. Viveu para
ver e contar. Mas não estou tão certa de que essa “exaltação da experiência
individual”[3] é
por si só a garantia de um poder sobrenatural sobre a verdade, Rita... Mas em
sua defesa (e você não precisa!), devo completar que você, Rita, deu a volta
completa pela experiência em si, em boa lição de Saramago[4].
É engraçado olhar os ícones pelo
ângulo de Rita... Os fãs de uns e outros devem ter se torcido! Risos. Mas esse
ângulo torna mais gostáveis umas pessoas de quem muita gente já gosta, tipo Gil
e Elis. O episódio “Elis, a poderosa” é balsâmico e anjodaguardísto!
Achei interessante também a
percepção de Rita do “contexto maior”, seja ele do rock brasileiro: “o clube do
Bolinha afirmava que para fazer rock ‘precisava ter culhão’” (p. 127 e outros
momentos!), seja da política: “Sobre a ditadura militar passo batido” (p. 145).
Mas não passa não, revela e muito, sua perspectiva é o sarcasmo. Corajoso.
Até agora, eu brinquei com uma
coisa de que ri muito na biografia de Rita: as suas conclusões adjetivas de
períodos e parágrafos. No trecho abaixo, destaco duas dessas conclusões com
negritos, super sinceras:
“Grávida de Beto, fui ao Rio
conhecer o lado paterno de Roberto (...) Me acolheram super bem (...). Todos,
menos tia Silvia. Antes de me estender a mão, disse com seu sotaque carioquês
carregado: ‘Rita, você sendo cinco anosh maish velha que Roberrrto deveria,
isso sim, incentivá-lo a voltarrr aossh eshtudosh e se tornarrr diplomata’. Fina. Vamos combinar que Silvia tinha
toda razão, pensa bem, criou o sobrinho num ambiente chique e educado para
chegar uma cantorazinha paulista vigarista, bem mais velha, presa por tóxico e
dando golpe da barriga? Se bem que depois de conhecer Chesa [mãe de Rita],
passou a me trata um pouco melhor, deve ter sido uma analogia entre ela e a mãe
de Roberto, duas vítimas do mesmo câncer. Gostou tanto da sogra do sobrinho que
mandava por ele garrafas de um ‘elixir milagroso’ que curava a doença. Sim,
Silvia como boa carioca socialite também tinha um pé na macumbinha. Fofa.”
Passei mal. Fina e fofa aparecem
muito, em situações várias! Também aparece Humm,
mas só para Roberto... Compreendemos, Rita. Também me apropriei das manias de
neologismos ritalísticos, muito libertador!
A coleção de imagens é excelente: fotos
tiradas dos álbuns de família, fotos de divulgação das bandas, shows, documento
de censura, bilhete da ala dos presos políticos, um bilhete de Elis, duas fotos
com as botas roubadas da Biba. Risos. Discografia final para consulta. Coloquei
um marcador lá, para acompanhar as histórias de cada canção e os julgamentos
ácidos de Rita sobre suas próprias músicas. Irresistível o comentário de
Phantom na página 263: “Você é bacana, Rita. Lide com isso”.
Na mesma página desse comentário
fofo do Phantom, Rita dá e toma uma narrativa do presente próximo, depois da
prisão no Recife. O texto aparece riscado com caneta preta grossa. Não dá para
ler nada mesmo. Aliás, parece que Rita cansa depois de 2007: “não vou ficar
aqui me alongando no dia a dia da lenga-lenga na sequência dos shows-discos e
gracinhas que andei fazendo” (p. 261). Poucas páginas para os últimos anos, de
limpeza, desde o nascimento na neta, segundo conta.
Ao final, tendo adorado a narrativa
- com todo os seus recursos criativos e expressivos -, fiquei com vergonha de
admitir que não tenho um único disco de Rita. Afinal, nunca fui fã de Rita...
Folheei, porém e de novo, a
discografia e sabia cantar um montão de músicas! O que isso quer dizer? Que de
alguma forma, muito sem eu me dar conta, Rita sempre esteve em mim como um caso
sério, ao som de um bolero rock’n’roll; dando letra para eu revelar a minha
própria ovelhanegrice e coragem em forma de canção quando eu resolvia botar as
minhas asas pra fora e assumir meu bem você me dá água na boca... Lá vem ela,
lá vem eu! Rita, obrigada!
“Estranho ter sido o
que fui sendo eu o que sou hoje” (p. 267). Caramba, tem muito Proust nas veias
de Rita!
[1] Eu sou aquário com ascendente em gêmeos, sem
conflito, só paz e amor!
[2] Roland Barthes refere em A Câmara Clara essa nossa mania de achar
que não há amor nas famílias. Cansativo. Concordo com o mestre e escrevi isso
em Capítulos de História: o trabalho com
fontes (2012).
[3] Expressão que aparece no excelente texto: “Por que perdemos? Moral cristã,
individualismo e espetacularização nos movimentos de protesto”, disponível em http://blogjunho.com.br/por-que-perdemos-moral-crista-individualismo-e-espetacularizacao-nos-movimentos-de-protesto/#_ftnref2 (acesso em 29 de dezembro
de 2016).
[4] “Para conhecer as coisas, há que dar-lhes a
volta completa, a volta toda”, frase proferida por Saramago no documentário
“Janela da Alma” (2001), tal qual eu me recordo dela... rsrsrs
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