segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

À Mesa com Proust é um presente para os olhos!

Pense em um livro que eu adorei ano passado? Esquece. Não sou confiável, a lista é enorme. Mudo a questão. Pense em um livro que eu adorei folhear? Agora sim: À mesa com Proust, de Anne Borrel, Jean-Bernard Naudin e Alain Senderens (Tradução de Ana Luiza Borges, Fernnado Py e Maria Cecpilia d’Egmont. Rio de Janeiro: Sextante, 2013). Fiz questão de nomear os tradutores, pois deve ter sido um desafio..., eufemismo para coisa difícil à beça!
Conheci esse livro pelo de Alain de Botton, Como Proust pode mudar sua vida, lido ano passado[1]. Botton desqualifica o livro de Borrel/Naudin/Senderens e, como escrevi em 2016, só isso seria motivo para eu me interessar! O fato é que quando mais avançávamos na leitura dos volumes de Em busca do tempo perdido no clube do livro, mais meu interesse crescia, entre um banquete e outro, um papo entre amigos militares em um hotel, uma merenda romântica etc. Claro, há ainda minha queda pela cozinha, por receitas e sabores novos.
O livro de Borrel/Naudin/Senderens é um livro presente, no melhor sentido da expressão. Mas é um presente para poucos. Livro caro decerto e totalmente voltado aos leitores de Proust. Anne Borrel, consultora da sociedade dos Amigos de Marcel Proust, não está nem um pouco interessada em demarcar verdades e ficções e, como o protagonista de Em busca do tempo perdido e seu autor têm o mesmo prenome, os leitores que não conhecem o texto, podem achar que quem experimentou a madeleine de revocação foi o recluso escritor... Trechos do romance, sobretudo até o quarto volume, comparecem robustamente entre um comentário minúsculo ou outro dessa “amiga de Proust”. Por causa dela, fui olhar o site desses amigos[2] e descobri que para ser amigo de carteirinha é preciso pagar. Então, serei amiga secreta mesmo.
Anne Borrel faz uma boa seleção de fragmentos do romance. Conhece o texto! Poderia, entretanto, ter se aventurado mais na mediação. Outro dia, copiei em meu perfil do FB um fragmento que adorei, um dos raros momentos em que a mediação de Borrel não se intimida com o monumento. Vale repetir aqui:
"A cozinheira levanta o véu que ocultava mistérios aterradores e implacáveis. O menino os pressente: como a literatura, a cozinha é uma arte violenta, e, para conter essa onda de selvageria, a civilização instituiu um certo número de leis e rituais. Os ornamentos litúrgicos, que cercam metaforicamente o animal cozinhado ao ponto, testemunham a passagem da selvageria primitiva ao 'estado de cultura'. O ritmo inalterável das refeições ordena o desenrolar dos dias e dissimula a crueldade da cozinheira." (p. 30).
Borrel havia acabado de referir a lida de Fraçoise na cozinha, entre aspargos e o sacrifício de um frango. Mas o trecho extrapola aludindo a um processo civilizador cujo palco se estende da cozinha à sala de jantar.
Compreendo Borrel e a reverência a Proust, e talvez esta seja a essência da má vontade de Alain de Botton (reverência a que ele também não está imune. Minha bronca foi essa: para que resistir, assume e vai!). Mas o livro é o que é de verdade porque colaboram nele Jean-Bernard Naudin e Alain Senderens. O primeiro ilustrou À mesa com Monet (quero também!!!) e colabora em revistas de decoração; o segundo é chef prestigiado e responsável pela adaptação das receitas
As fotografias do livro são extraordinárias! Tanto as fotos de cenários recompostos, com mobiliário da época ou inspirado na época em que viveu o autor; quanto de alimentos; paisagens; quadros famosos; até as fotografias da família de Proust, dele mesmo e dos seus amigos, ou melhor, dos amigos que fez enquanto viveu a vida real. Esses documentos são a metade do esplendor de uma obra que faz sonhar. A segunda metade vem do trabalho de Alain Senderens!
As receitas coligidas constituem mais de 25 por cento de À mesa com Proust. Fiquei super curiosa para saber como essa pesquisa foi realizada, conhecer a metodologia mesmo! Imagino Senderens com cadernos de receita da época no seu balcão de chef chique; vejo cardápios das grandes casas espalhados; livros de cozinha pelo chão; listas de compras de hotéis; preços... Mas nada disso está explícito. Há uma bibliografia com letra minúscula e desinteressante no final do livro. Você vai dizer: Marcella, curte o livro e para com essa de metodologia... Mas, veja bem, meu bem, sinto lhe informar[3]... rsrsrs, que eu curto mais quando ganho corda. Faltou.
Folheando a obra, em uma foto, descobri ainda a pintora Madeleine Lemaire da qual nunca tinha ouvido falar. Era amiga de Proust! Das íntimas, com todo respeito. Ela viveu no mesmo contexto em que os badalados impressionistas de nossos livros de história da arte escolares produziram. São Google me mostrou que Lemaire merecia páginas e páginas dos meus manuais. Fiquei hipnotizada pelas suas flores, pelos seus nus e pelas suas mulheres que descansam depois dos bailes da vida... À mesa com Proust, sentam-se convidados talentosos de quem conhecemos pouco por razões dificilmente sustentáveis hoje. À mesa, um presente.
Fui com meu livro às compras para a ceia de Natal. Fui com meu livro para a cozinha e fiz o Daube de Boeuf, reconstituído por Alain Senderens. Escrevi no meu perfil do FB, no alto da minha animação ainda não etílica, que comida que se finaliza com bouquet (no caso bouquet garni) é coisa especial... Há mais, porém. Comida que precisa de mais de 24 horas para ficar pronta desafia o tempo e só Proust para nos fazer reencontrar as prioridades!
À mesa com Proust é um extraordinário livro presente e me foi dado como presente, pela minha aluna Morgana Kwaczynski (espero ter escrito certo seu sobrenome, conferi 3 vezes...). Não sei em que momento em sala de aula eu descaradamente mencionei o quanto sonhava ter esse livro, só sei que ela fisgou minha falta de vergonha e a transformou em um gesto amoroso, no último dia de nossa disciplina, sem nenhuma pretensão de ajudinha na nota, afinal aluna excelente e não precisada dessas desconfianças. Morgana, esse texto é para você, não um presente, uma lembrancinha.
Sobre a minha mesa...: o livro e a caixa de madeleines que ganhei dos meus alunos

Bouquet garni!

Eu e Maria Clara compartilhando mais uma paixão...




[1] Remeto o leitor à minha resenha: “Um livro legal, mas que terminou esnobe, seguido de CONVITE!”, em http://literistorias.blogspot.com.br/2016/02/um-livro-legal-mas-que-terminou-esnobe.html
[3] Versos de “Veja bem, meu bem” de Ney Matogrosso. 

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