Pense em um livro que eu adorei ano
passado? Esquece. Não sou confiável, a lista é enorme. Mudo a questão. Pense em
um livro que eu adorei folhear? Agora sim: À
mesa com Proust, de Anne Borrel, Jean-Bernard Naudin e Alain Senderens
(Tradução de Ana Luiza Borges, Fernnado Py e Maria Cecpilia d’Egmont. Rio de
Janeiro: Sextante, 2013). Fiz questão de nomear os tradutores, pois deve ter
sido um desafio..., eufemismo para coisa difícil à beça!
Conheci esse livro pelo de Alain de
Botton, Como Proust pode mudar sua vida,
lido ano passado[1].
Botton desqualifica o livro de Borrel/Naudin/Senderens e, como escrevi em 2016,
só isso seria motivo para eu me interessar! O fato é que quando mais
avançávamos na leitura dos volumes de Em
busca do tempo perdido no clube do livro, mais meu interesse crescia, entre
um banquete e outro, um papo entre amigos militares em um hotel, uma merenda
romântica etc. Claro, há ainda minha queda pela cozinha, por receitas e sabores
novos.
O livro de Borrel/Naudin/Senderens é
um livro presente, no melhor sentido da expressão. Mas é um presente para
poucos. Livro caro decerto e totalmente voltado aos leitores de Proust. Anne
Borrel, consultora da sociedade dos Amigos de Marcel Proust, não está nem um
pouco interessada em demarcar verdades e ficções e, como o protagonista de Em busca do tempo perdido e seu autor
têm o mesmo prenome, os leitores que não conhecem o texto, podem achar que quem
experimentou a madeleine de revocação foi o recluso escritor... Trechos do
romance, sobretudo até o quarto volume, comparecem robustamente entre um
comentário minúsculo ou outro dessa “amiga de Proust”. Por causa dela, fui
olhar o site desses amigos[2] e descobri que para ser
amigo de carteirinha é preciso pagar. Então, serei amiga secreta mesmo.
Anne Borrel faz uma boa seleção de
fragmentos do romance. Conhece o texto! Poderia, entretanto, ter se aventurado
mais na mediação. Outro dia, copiei em meu perfil do FB um fragmento que
adorei, um dos raros momentos em que a mediação de Borrel não se intimida com o
monumento. Vale repetir aqui:
"A cozinheira levanta o véu que ocultava
mistérios aterradores e implacáveis. O menino os pressente: como a literatura,
a cozinha é uma arte violenta, e, para conter essa onda de selvageria, a
civilização instituiu um certo número de leis e rituais. Os ornamentos
litúrgicos, que cercam metaforicamente o animal cozinhado ao ponto, testemunham
a passagem da selvageria primitiva ao 'estado de cultura'. O ritmo inalterável
das refeições ordena o desenrolar dos dias e dissimula a crueldade da
cozinheira." (p. 30).
Borrel havia acabado de referir a
lida de Fraçoise na cozinha, entre aspargos e o sacrifício de um frango. Mas o
trecho extrapola aludindo a um processo civilizador cujo palco se estende da
cozinha à sala de jantar.
Compreendo Borrel e a reverência a
Proust, e talvez esta seja a essência da má vontade de Alain de Botton
(reverência a que ele também não está imune. Minha bronca foi essa: para que
resistir, assume e vai!). Mas o livro é o que é de verdade porque colaboram
nele Jean-Bernard Naudin e Alain Senderens. O primeiro ilustrou À mesa com Monet (quero também!!!) e colabora
em revistas de decoração; o segundo é chef prestigiado e responsável pela adaptação
das receitas
As fotografias do livro são
extraordinárias! Tanto as fotos de cenários recompostos, com mobiliário da
época ou inspirado na época em que viveu o autor; quanto de alimentos;
paisagens; quadros famosos; até as fotografias da família de Proust, dele mesmo
e dos seus amigos, ou melhor, dos amigos que fez enquanto viveu a vida real.
Esses documentos são a metade do esplendor de uma obra que faz sonhar. A segunda
metade vem do trabalho de Alain Senderens!
As receitas coligidas constituem
mais de 25 por cento de À mesa com Proust.
Fiquei super curiosa para saber como essa pesquisa foi realizada, conhecer a
metodologia mesmo! Imagino Senderens com cadernos de receita da época no seu
balcão de chef chique; vejo cardápios das grandes casas espalhados; livros de
cozinha pelo chão; listas de compras de hotéis; preços... Mas nada disso está
explícito. Há uma bibliografia com letra minúscula e desinteressante no final
do livro. Você vai dizer: Marcella, curte
o livro e para com essa de metodologia... Mas, veja bem, meu bem, sinto lhe informar[3]...
rsrsrs, que eu curto mais quando ganho corda. Faltou.
Folheando a obra, em uma foto, descobri
ainda a pintora Madeleine Lemaire da qual nunca tinha ouvido falar. Era amiga
de Proust! Das íntimas, com todo respeito. Ela viveu no mesmo contexto em que
os badalados impressionistas de nossos livros de história da arte escolares
produziram. São Google me mostrou que Lemaire merecia páginas e páginas dos
meus manuais. Fiquei hipnotizada pelas suas flores, pelos seus nus e pelas suas
mulheres que descansam depois dos bailes da vida... À mesa com Proust, sentam-se convidados talentosos de quem
conhecemos pouco por razões dificilmente sustentáveis hoje. À mesa, um
presente.
Fui com meu livro às compras para a
ceia de Natal. Fui com meu livro para a cozinha e fiz o Daube de Boeuf, reconstituído por Alain Senderens. Escrevi no meu
perfil do FB, no alto da minha animação ainda não etílica, que comida que se
finaliza com bouquet (no caso bouquet garni) é coisa especial... Há
mais, porém. Comida que precisa de mais de 24 horas para ficar pronta desafia o
tempo e só Proust para nos fazer reencontrar as prioridades!
À
mesa com Proust é um extraordinário livro presente e me foi dado
como presente, pela minha aluna Morgana Kwaczynski (espero ter escrito certo
seu sobrenome, conferi 3 vezes...). Não sei em que momento em sala de aula eu
descaradamente mencionei o quanto sonhava ter esse livro, só sei que ela fisgou
minha falta de vergonha e a transformou em um gesto amoroso, no último dia de
nossa disciplina, sem nenhuma pretensão de ajudinha na nota, afinal aluna
excelente e não precisada dessas desconfianças. Morgana, esse texto é para
você, não um presente, uma lembrancinha.
Sobre a minha mesa...: o livro e a caixa de madeleines que ganhei dos meus alunos
Bouquet garni!
Eu e Maria Clara compartilhando mais uma paixão...
[1] Remeto o leitor à minha resenha: “Um livro
legal, mas que terminou esnobe, seguido de CONVITE!”, em http://literistorias.blogspot.com.br/2016/02/um-livro-legal-mas-que-terminou-esnobe.html
[3] Versos de “Veja bem, meu bem” de Ney
Matogrosso.
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