Comprei para ler nas férias o livro
Minha vida na França de Julia Child e
Alex Prud’homme (tradução de Celina C. Falk-Cook. São Paulo: Seoman, 2009).
Sim, eu sou apaixonada pelo filme Julie
& Julia, com Meryl Streep e Amy Adams (2009). Confesso. Não desista da leitura por causa disso...
Gostei da obra. Trata-se da
biografia de um livro (!), no caso o Mastering
the art of french cooking (1961), escrito por Julia, Simone Beck e
Louisette Bertholle. Na introdução, a autora afirma que a obra “é sobre algumas
das coisas que mais [amou] na vida”(pág. 13): o marido, cozinhar e comer. Reúne
memórias do tempo em que o casal viveu na França (entre fins dos anos 40 e
meados dos 50), mas se estende no tempo e abarca a doença de Paul, a morte de
Simca etc. Na verdade, como antecipei, esse livro é mesmo sobre um livro, ou
seja, sobre tudo o que confluiu para a realização de uma obra memorável e
inovadora.
Julia trabalhou para o governo, foi
esposa de um diplomata e teve dificuldade para encontrar uma carreira, quando
se desligou do emprego. Poderia ter se acomodado, mas não. Sua trajetória
também fala sobre a dificuldade em conciliar sonho, trabalho, família, amizades
e expectativas. É o que temos para almoço e jantar!
Minha
vida na França é também uma obra para quem gosta de comer e
valoriza a culinária como pesquisa (Julia foi uma pesquisadora incansável e o
sucesso da sua obra prima deve-se muito à sua busca e precisão). As pessoas que
gostam de aspectos da cultura francesa também vão achar o livro uma delícia,
pois Julia fala sobre uma sociabilidade muito particular a eles naquele
contexto; escreve sobre o prazer de viver; sobre refutar a pressa; preparar um
belo prato e sentar com os amigos para comer, beber e conversar, sem pensar no
dia seguinte.
Não se apresse em relacionar o que
escrevi no parágrafo acima a uma certa afetação... Um belo prato pode ser
preparado com ingredientes sofisticados decerto, mas pode ser preparado com
ingredientes muito triviais, combinados de um jeito único! Eu cozinho, gosto de
cozinhar e me relaciono com gente que cozinha muito melhor que eu. Sei que há
muita confusão na área. Um dos momentos em que a confusão que aponto é facilmente
refutada no texto é o caso da maionese. Por sinal, esse tema aparece explorado com
graça no filme Julie & Julia.
Um dos aspectos que mais me tocaram
no livro foi a relação de Julia com Simca. É uma amizade muito complexa, mas
quando não?... Em vários momentos, Julia afirma que Simca foi mais que uma
amiga, foi uma irmã. Quando narra a morte dessa parceira de escrita e da vida,
volta ao termo: “foi uma irmã afetuosa e generosa para mim”(pág. 342). Mas essa
relação foi muito conturbada, cheia de rivalidade, palavras caladas e
rompimentos! Destaco que a narrativa de Julia não a transforma na irmã boazinha
da história, ok? Remeto o leitor ao capítulo sobre a amizade em Diálogo sobre o tempo[1]. Eu vi muito Nietzsche ali... rsrsrs
Mas esse meu texto não é uma resenha de Minha vida na França... Eu te
enganei?
Paul Child, marido de Julia, vivera
na França nos anos 20. Nesse contexto, Paul conheceu Ernest Hemingway e sua
esposa Hadley Richardson! Aqui retomo o
propósito do meu texto. Quando chegou a Paris, no final dos anos 40, Julia mal
falava francês e sofreu para se comunicar. Era natural que Paul procurasse
ambientá-la e a si mesmo recompondo relações. Em um dia de Ação de Graças, o
casal é recebido por Paul Mowrer e sua esposa... Hadley Richardson, mãe de Jack Hemingway, ou melhor, Bumby, como aparece
identificado em Paris é uma festa.
Eu li Paris é uma festa apenas ano passado. Procurei a obra porque estava
escrevendo sobre livros que são esperança e sobre festas. Fiquei encantada pelo livro!
A palavra é essa mesma. O fato de compreender a memória de um homem muito
depois das experiências narradas, em torno de 30 anos!, fez com que a alegria e
a doçura que certamente habitam esse relato sejam atravessadas pela melancolia,
fruto do conhecimento (e amadurecimento) dos desdobramentos de tudo o que figura
ali. Uma dos elementos de maior doçura dessa obra é a relação entre Hadley Richardson e o marido... Chorei lendo o final e
confesso que tive ódio a Hemingway. Imagino, porém, que quando escreveu
aquele final, ele teve mais ódio de si mesmo.
Em Minha vida na França, aquele menino corado de Paris é uma festa, Bumby, é um homem e vai casar! O casal Paul e
Julia Child foi convidado para a cerimônia, a que o papai Hemingway não
compareceu.
Entre as duas obras que trago aqui
há menos em comum do que se pode supor. Há por certo a paixão de Julia e
Hemingway por Paris e há a consciência de que a temporada em que viveram na
cidade foi fundamental para as pessoas que ambos se tornaram. Os dois textos
são biográficos também, muito embora Hemingway assuma que o leitor pode
preferir compreender seu livro como um trabalho de ficção... Mas a diferença
tem me interessado mais ultimamente e, na dessintonia de objetivos e
desdobramentos, de personalidades e estilos, o que me comoveu nessas férias foi
o trânsito de personagens conhecidos: foi encerrar um volume e achar alguém que
“conheci” menino, já crescido; foi reencontrar uma mulher, renascida para o
amor. O que me comoveu foi o reencontro.
Os apreciadores de séries devem
sentir uma comoção similar, mas devo corrigir que no caso das séries, o
reencontro é esperado... Vejam também que não falo de intertextualidade, ou
seja, de um tipo de intimidade entre textos em nível celular, mas de circulação
de gente e de encontros inusitados! Achar Bumby e Hadley Richardson no livro de Julia Child me fez sorrir. Sabe
aquela sensação de um mundo que mais parece uma aldeia? Foi isso que senti.
Dando voltas por aí e quase sem querer, é sempre possível reencontrar velhos
amigos. Julia não precisou de Facebook para realizar essa maravilha e
provavelmente não poderia imaginar que seu livro seria um passaporte mágico
para mim.
Quando li os nomes de Bumby e
Hadley Richardson na página de Julia, apertei
meus olhos e disse para mim mesma um Ah!.
Foi uma sensação muito particular. Se isso já me aconteceu? Sempre! Sou
historiadora. A minha gente está em tantos lugares diferentes quanto sou capaz
de descobrir e, todas as vezes, reencontrá-las me permite saber mais sobre elas
obviamente, mas também ter um olhar mais amplo sobre a vida e sobre suas
deliciosas improbabilidades todo dia sucedidas.
Endereço de Julia Child em Paris: Rue d'Université, 81.
[1] OLIVEIRA, Jelson, GUIMARÃES, Marcella Lopes.
Diálogo sobre o tempo entre a filosofia e
a história. Curitiba: PUCPRess, 2015.
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