Há alguns meses, minha amiga Cíntia
Régia Rodrigues me emprestou o livro As
memórias da Viscondessa: família e poder no Brasil Império (Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2008), sabedora de que eu tenho o célebre sonho (é célebre só
porque eu propalo bastante...) de percorrer as antigas fazendas do café do Vale
do Paraíba. Pois bem, não foi desta vez que realizei o sonho, mas a leitura do livro
de Mariana Muaze me aproximou do intento, pela qualidade do trabalho, pelo que
entrevi que ainda pode ser feito e pela riqueza dos documentos, dos quais
destaco a epistolografia e as fotos a que a pesquisadora teve acesso.
Mariana me fisgou desde o início
quando, na introdução, compartilha com os leitores os caminhos de sua pesquisa,
ou seja, suas intenções iniciais e decisões efetivas (incluindo
redirecionamentos), o que valorizo enormemente; define a partir de que fontes
construiu seu exame e vincula a investigação à micro-história. Cumpre todas as
suas promessas. Talvez por isso e pelas conclusões a que chegou, duas delas de
grande impacto para o estudo do Brasil Império, tenha obtido menção honrosa da
Jorge Zahar.
O livro de Mariana tem três partes,
mas na verdade tem duas... e preciso dizer que o título é uma falsa pista ou um
ardil. Espero que ela não se chateie. Na parte 1 e 2, conhecemos as famílias
reunidas em casamento, ou seja: a família do marido da viscondessa do título,
família Ribeiro de Avellar, e a família da viscondessa, os Velho da Silva.
Mariana nos conta como o enlace foi urdido, com todo o cuidado, pois se tratava
de unir dois núcleos que não tinham relações. Embora o patrimônio dos Ribeiro
de Avellar fosse diversificado, e seria ainda mais na descendência que Mariana
examina, a essência era proveniente da Fazenda Pau Grande. Obviamente que já
descobri que a fazenda está em pé e já a incluí em meu roteiro daquele sonho
dourado! E os Velho da Silva? Tudo gente urbana e cortesã, do Rio de Janeiro.
Como um fazendeiro rico decerto,
mas sem nobreza, conseguiria desposar para seu filho uma moça que frequentava
os imperiais?? Mariana descortina os caminhos para essa conquista, que passaram
pela aquisição do título de barão por parte do patriarca Joaquim Ribeiro de
Avellar, no qual se destacou a labuta do comissário Domingos Alves da Silva
Porto. Foram necessários cinco anos para a elevação de Joaquim a barão de
Capivary. Quilômetros foram encurtados nas tratativas do casamento entre o
filho do barão, de mesmo nome do pai, e da jovem Mariana Velho da Silva, a
futura viscondessa do título da historiadora Mariana. Adoro gente que estuda os
parentes! Meus cronistas Fernão LOPES
e Pero LOPEZ de Ayala confirmam que
também tenho esses hábitos... É brincadeira, Mariana Muaze.
O Barão do Capivary jamais se
casou, portanto a origem do filho é um tema que merece reflexão da historiadora.
O certo é que esse filho foi legitimado como herdeiro e finamente educado para
suceder e superar o pai. Novamente o comissário Domingos se destaca na tarefa. Mariana
compila as cartas em que as necessidades do rapaz são mencionadas.
O casamento do filho do Barão do
Capivary e de Mariana Velho da Silva faz jorrar sobre nós uma série de novos
hábitos que Mariana Muaze enquadra nas novas modas cortesãs. Isso é um dos
pouquíssimos temas da obra cujo desenvolvimento não me satisfez, o que me faria
propor algumas questões à historiadora em uma roda de conversa. Mariana Muaze
está preocupada em não isolar a família constituída dos Ribeiro de Avellar (com
os Velho da Silva), ou seja, em não destacá-los do contexto. Não foge da sua
micro-história, mas algumas vezes parece que sufoca as idiossincrasias para
acomodar as suas excelentes conclusões em velhas fórmulas...
Joaquim Ribeiro de Avellar Jr não
era um moço de fazenda qualquer, estudou na Europa, casou-se com moça carioca,
cheia de necessidades de vestidos e de vida cultural. Mariana não esconde que
ele diversificou enormemente o patrimônio da família. A sua visão é bastante
moderna (no sentido baudelairiano, ok?). Será que todos esses filhos de barões
eram assim?... Alguém vai me lembrar que Mariana se alinha à micro-história.
Ok. Mas de fato a ampliação da perspectiva favoreceria a distinção entre o que
é partilhado por aquele grupo e o que lhe é idiossincrático. Mas não implico
com a micro-história e reconheço que o exame de Mariana permite a gente
contemplar o golpe que ela desfere contra um dos muitos mitos do ciclo do café
no Paraíba. Mariana mostra com sobejas fontes que é redutor afirmar a
decadência geral do vale do Paraíba na segunda metade do século XIX. Essa é uma
das conclusões de alto impacto que aludi acima.
Mas cadê a viscondessa?... Pois é. Na
parte 1 e 2, que para mim constituem a 1ª parte da obra, temos o mundo dos
homens, entre a economia, a política e a busca de prestígio social. Na parte 3,
para mim a real 2ª parte, vemos a viscondessa e toda uma série de elementos lançados
na primeira parte é costurada aqui, no conceito de família, historicamente
construído.
Mariana Muaze teve em mãos uma
epistolografia formidável, que ela afirma ter sido reunida pela viscondessa
(algumas cartas foram mesmo recuperadas por esta), e pode contemplar os álbuns de
fotografia dessa personagem. Aqui, a viscondessa dá título à obra de verdade,
como artífice da memória familiar! Mas novamente Mariana teme destacá-la demais
e a enquadra no que era esperado e “possível” às mulheres daquele contexto. E outra
vez sobram dúvidas em mim. Reconheço que no jogo entre o particular e o mais
amplo, é muito difícil equilibrar os sentidos.
Nas cartas compiladas, a
historiadora teve de lidar com relações muito complexas no que se refere “aos
afetos na vida privada da sociedade escravista” (pág. 134) e faz isso de forma
brilhante, acadêmica. Eu fiquei imaginando o quanto essas cartas fizeram-na
refletir!
No livro, os leitores têm a
satisfação de contemplar algumas das fotografias que Mariana Muaze analisou.
Essa é uma experiência muito bacana, de lição de análise e de entrega ao
leitor, para que ele experimente ensaiar leituras também. A História é uma
ciência muito carnal e essas fotos trazem as pessoas à nossa frente, mais um
acerto de Mariana!
O fato é que a obra As memórias da Viscondessa: família e poder
no Brasil Império faz a gente querer saber mais. Uma filha dos Ribeiro de
Avellar, Mariquinhas, acompanhou a família real no exílio. No livro, há uma
foto bem linda da moça ao lado da princesa Isabel. Mariana Muaze poderia escrever
a biografia dessa personagem! Só uma sugestão... No comecinho do livro, há
também um dado que some depois: o fato de o pai do Barão do Capivary ter sido
interrogado na Devassa. É depois disso que se estabelece na Fazenda Pau Grande.
Como sou uma historiadora que trabalha com o poder, fiquei sedenta de mais
detalhes... Afinal, essa é uma reorientação importante. Mas Mariana não dá bola
para isso. Faltariam documentos? É possível.
Além de abalar o mito da decadência
geral do Vale do Paraíba na segunda metade do século XIX, Mariana Muaze conclui
que a “criança foi a personagem social que sofreu maior valorização no que
concerne aos papéis sociais no interior desse grupo” (pág. 206). As cartas e as
fotografias levaram-na a essa conclusão. Os Ribeiro de Avellar tinham forte
preocupação com a educação dos filhos e destacavam suas individualidades nos
relatos e fotografias. Ao estudar essa família, a historiadora afirma o
“triunfo da família oitocentista” (pág. 206).
As
memórias da Viscondessa foi uma de minhas leituras de férias e esta é
uma obra que pode ser lida assim, como leitura de férias de uma medievalista
rsrsrs, mas seria item relevante nos programas de Brasil Império. É muito bem
escrita e não tem medo de revelar limites do trabalho do historiador. Aborda-os
mesmo francamente. Nesse sentido e pelo cuidado com a interpretação dos
diferentes documentos, é uma excelente leitura para Teoria da História!
Pelas páginas de Mariana Muaze,
realizei um pedaço do meu sonho de andarilha e ainda matei as saudades do
trabalho com álbuns de família[1]. Livro excelente, que dá
gosto de ler!
[1] Remeto o leitor ao meu livro Capítulos de História: o trabalho com fontes,
sobretudo ao 2º capítulo “O que revelam nossos álbuns de família?” (Curitiba:
Aymará, 2012).
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