Já li muitas
biografias daquela série “Reis de Portugal” do Círculo de Leitores, alguns
autores são meus amigos de FB, então vou com calma... rsrs Na verdade, esse
texto NÃO é a resenha de uma dessas biografias, é um pensar compartilhado e
rapidinho sobre o gênero, pois além dos cursos que já dei a respeito, eu mesma
me preparo para escrever uma biografia. Não, eu não fui convidada a reescrever a
biografia dos outros, nem fui sondada por Cláudia Leite.
Há duas semanas,
terminei a biografia de D. Duarte, escrita por Luís Miguel Duarte. Eu gostei
muito, até das coisas com as quais não concordei, uma maneira interessante de
gostar a meu ver. Há coisas que me incomodaram, o de sempre... Entendo, porém,
que os historiadores têm suas preferências historiográficas e que deixam de
fora, porque desconhecem ou por escolha deliberada, muito mais do que podem
abarcar.
Desde que terminei
a biografia e já aproveitei o que me interessava, dois parágrafos continuaram a
me deter. Na verdade, um parágrafo e meio:
“Quando se sentiu
[D. Duarte] sem força e sem argumentos para continuar a ser contra, então sim,
portou-se como um rei, assumiu as suas responsabilidades antes, assumiu todas
as responsabilidades depois do desastre [de Tânger], mesmo as que não tinha e
morreu torturado pelos remorsos que, julgo, não tinha razão para sentir, mas
sentia.
Estas reflexões são
delicadas. Sinto-me num tribunal a defender o rei. Uma biografia histórica não
tem de o fazer. Nem de o condenar. Tem de tentar reconstituir o mais aproximadamente
possível o homem e as suas circunstâncias, o seu tempo. Quando isso é
razoavelmente conseguido, acaba por se defender postumamente o biografado,
apenas porque se lhe faz um pouco de justiça, ao devolver-lhe a autenticidade
possível e, nas suas grandezas, nas suas imitações, nos seus defeitos, nos seus
equívocos, a sua verdadeira dimensão humana, quase sempre mais interessante do
que qualquer mito” (p. 316).
Leio, nesses
segmentos, a constatação da proximidade que o biógrafo conquistou, ou de que
foi vítima..., com o biografado; leio a imaginação do historiador, no bom
sentido de que já nos falou Georges Duby; leio a ousadia da possibilidade
lançada ao leitor; uma concepção de biografia e os conflitos de quem escreve.
Semana passada,
assisti à entrevista de Rui Castro no Roda
Viva. Se alguém pensa que vou comparar o seu trabalho com o de Luís Miguel
Duarte, desista. Mas há uma questão que me pareceu interessante nos dois casos,
muito reveladora da escolha da biografia como modo de explicação da vida de
homens e mulheres. Antes, porém, sim, estou convencida de que o gênero
biográfico é um modo de explicação, que se manifesta de forma narrativa, e é
resultado de uma escolha do pesquisador. O aspecto que me chamou a atenção foi
a proximidade. Tenho lido essa confissão em muitas biografias...
Como afirmei acima,
já ministrei cursos sobre a biografia histórica e cursos cheios. Quanta
curiosidade temos sobre a vida dos outros! Mas a escrita biográfica desafia o
pesquisador naquilo que muitas vezes ele não gostaria de revelar: a
identificação. Luís Miguel Duarte está desconfortável com a “defesa” de D.
Duarte, mas desempenha a tarefa, até para apresentar uma voz dissonante ao
prestígio de Oliveira Martins ou às baboseiras disfarçadas de ciência de Júlio
Dantas. Precisou enfrentar a memória “original”, a de Rui de Pina, e, por isso,
colocou uma faca entre os dentes na defesa do seu rei. Se eu gostei? Claro!
Todo mundo sabe que eu também adoro o autor do Leal Conselheiro!
No meio disso tudo,
a polêmica com a biografia de Claudia Leite... O melhor texto que li a respeito
foi o de Rodrigo Perez (http://www.semrodape.com/sem-categoria/a-interdicao-popular-a-biografia-da-claudia-leite-outra-vez-o-nosso-velho-moralismo-moralizante-em-acao/). Eu externei para
o próprio Rodrigo que tinha imensas dúvidas a respeito de sua hipótese sofisticada
de explicação para a reação pública negativa ao projeto. Eu acho que a hipótese
do Rodrigo deve ser conhecida, mas vejo que o público leitor brasileiro de
biografias tem hoje um repertório muito diversificado para se escudar na
memória laudatória do gênero. Eu sou uma pessoa simples, tendo também às
explicações simples, que Rodrigo de certa forma contempla. O público gosta de
exposição, mas se cansa do esforço contínuo de aparecer e não quer comprar a
narrativa de quem parece que não tem mais nada para mostrar. Já estou até vendo
a cara do Rodrigo, que não conheço, para mim: preconceituosa... Pode ser.
Agora, que me preparo para escrever
sobre a vida de alguém, sem ter sido convidada a fazê-lo ou mesmo constrangida,
eu me pergunto: o que afinal me atraiu a essa vida em particular? Devo começar
como quem deseja travar amizade? Mas se eu me apaixonar? O barulho das reações
negativas diante de um projeto só confirma a importância do gênero biográfico
como explicação. Confiante em que a reflexão sobre a apresentação da pesquisa
histórica é tão importante quanto a pesquisa (dá para dissociar?), eu me
pergunto afinal o que está em jogo quando escolho a biografia para tecer o meu
discurso sobre o passado?
OS.: Eu sou também uma leitura de
biografias. Confira a minha resenha da autobiografia de Oliver Sacks: http://literistorias.blogspot.com.br/2016/01/sempre-em-movimento-de-oliver-sacks-e.html
Eu, sendo personagem de nossa (?) curiosidade pela vida dos outros...
Profa. Marcella, identifiquei-me com sua reflexão. Como também estou à caça de uma vida do passado, às vezes me pego "me vendo nesse outro"; ou seria "vendo esse outro em mim"? Parece-me que distância/amizade com o "outro" é uma tensão necessária à vida - e à "arte"(presunçosa!) de escrever uma vida!
ResponderExcluirNossas perguntas, querido Rogério!... Obrigada pela leitura.
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