segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Entrevista com o medievalista português António Rei: sua dedicação ao estudo do Al-Andalus

António Rei é um medievalista dedicado ao estudo do al-Andalus. Nasceu em Évora (Portugal), onde se formou em História; é Mestre em História (pela Nova de Lisboa) e Doutor em História Cultural e das Mentalidades Medievais (também pela Nova). É pesquisador do IEM (Instituto de Estudos Medievais), da SPEM (Sociedade Portuguesa de Estudos Medievais), do nosso NEMED (Núcleo de Estudos Mediterrânicos da UFPR), dentre outros muitos grupos. É autor de uma produção diversificada e de cuidadoso rigor científico. 
Conheci António Rei em 2012, em Lisboa, no Encontro Internacional Portugal Medieval visto do Brasil. Ele foi nos encontrar e ofereceu alguns textos seus naquela generosidade que lhe é particular. Alguns de meus orientandos provaram dessa sua virtude em e-mails trocados com ele, nos quais jamais se negou (ou tardou...) a responder o que quer que fosse. Em 2015, tive a chance de trazê-lo ao Brasil, para o XI EIEM (Encontro Internacional de Estudos Medievais), promovido pela ABREM, em Pirenópolis (GO). Participou da primeira mesa redonda do evento, totalmente voltada ao estudo do mundo muçulmano, ao lado dos excelentes colegas Beatriz Bissio e Tadeu Verza. Mesa incrível!
António Rei é um pai de família dedicado, apaixonado pelos filhos e um amigo para guardar do lado esquerdo do peito.

Literistórias – A pesquisa consagrada ao Ocidente Latino ainda é predominante nos estudos medievais, no Brasil. E em Portugal? Fale um pouco sobre sua área no seu país?

ANTÓNIO – A minha área de pesquisa é, dentro da Idade Média, especialmente o al-Andalus (a Hispânia sob poder islâmico), mais especificamente o Gharb al-Andalus (o Ocidente hispânico), e o que esse período de cerca de 550 anos deixou na cultura e na identidade portuguesas. Digamos que não me dedico muito à herança latina, mas mais à simbiose latina-judaica-árabe que existiu na sociedade portuguesa até ao final do século XV, a 1496 mais exatamente. A falta, em Portugal, de formação  sistemática, capaz e de base nesta área temática (não há licenciaturas e menos pos-graduações), e a quase inexistência de ensino do idioma árabe, tem feito com que ela não avance efetivamente, dando espaço a muitas divagações e outras tantas confusões que em nada têm promovido um esclarecimento sobre o tema, bem pelo contrário.

Literistórias – Você é também um tradutor. Como avalia a importância da tradução feita pelos historiadores?

ANTÓNIO – Entendo que uma tradução feita por um historiador deverá ser acompanhada por um estudo que contextualize a obra. Deverá procurar situar o texto traduzido num ponto algures entre a tradução literal (geralmente denotativa, dura, seca e difícil de entender para qualquer público), a tradução erudita (com linguagem elaborada, explicativa e conotativa, e quase só inteligível para especialistas) e a tradução de divulgação (com uma linguagem mais facilitista, menos precisa na transmissão de conceitos e realidades coetâneas da obra). Se um achado material fora do contexto não é um documento, também um texto descontextualizado não o é. É uma criação literária, mas não é uma fonte histórica.

Literistórias – Quais são os principais desafios que o estudante precisa enfrentar para se dedicar ao estudo de al-Andalus?

ANTÓNIO – Honestamente, todo o que procure estudar o al-Andalus, sem depender de terceiros, das traduções de outros, deverá procurar saber o idioma árabe. O conhecimento do árabe permite trabalhar as fontes no seu idioma original. Não terá que ser fluente como um nativo, mas convém que saiba o suficiente para ler, entender, escrever e se exprimir em árabe. Ser um arabista. Não será este conhecimento que, como é natural, o vai blindar ao lapso e ao erro. Mas, quando detetar o erro saberá que o erro é seu, e não andará transmitindo erros de outros. Para muitos esta última posição é mais cómoda, porque o protege do esforço de ter que aprender o idioma; e, da mesma forma, da responsabilidade dos erros veiculados. Mas nunca será cientificamente audaz nem honesto. Será sempre um dependente, que jamais traduzirá, editará ou publicará um texto em primeira mão.
Um historiador ou um arqueólogo que trabalhe o al-Andalus, se não for arabista, permanecerá nessa condição de dependência textual.
 
Literistórias – Da sua lauta produção científica, queria destacar o CD-Rom O Gharb al- Andalus al-Aqsa na Geografia Arabe (Seculos III H. / IX D. C. – XI H. / XVII D. C.), sem dúvida um de seus trabalhos que está entre os meus favoritos. Fale sobre a importância de conhecermos o espaço que hoje é Portugal na perspectiva dos autores muçulmanos?

ANTÓNIO – A importância de conhecer uma imagem do espaço, hoje português, situada entre o que a geografia imperial romana deixou, e o que, mais tarde, se foi fixando já a partir da documentação do Reino de Portugal. Sabermos como era esse espaço; como se governava; quais os seus principais polos urbanos; os seus eixos viários; como se defendia; o que tinha de riquezas naturais; o que lá se produzia (na agricultura, na pesca, no artesanato). Uma imagem daquele espaço, entre o século V e o século XII, ou de como a sacralidade do espaço da Hispânia antiga se arroupou de vestes islâmicas e sagrou o Califado do Ocidente. 

Literistórias – António Rei, como você avalia a importância de se dedicar ao estudo do Islã medieval no contexto em que vivemos: assolado pela desinformação veiculada pela mídia, pelo fundamentalismo, pela uniformização, pelas movimentações populacionais e tantos outros elementos que colocam o Islã na direção dos holofotes?


ANTÓNIO – Continuarei acreditando, validado pela História de al-Andalus, que é possível coexistir em paz, não importa a forma como cada ser humano vive ou os valores sob os quais direciona a sua existência. O ser humano é capaz do melhor e do pior. Cabe a cada um de nós escolher o que queremos ser. Manter a mente aberta e o coração desperto. O al-Andalus será sempre a prova daquela possibilidade, em que o ser humano seja o valor maior, vivendo uma Realidade Suprema, à qual cada um dará o nome que entender, se assim entender.


Foto de 2012, tirada em Lisboa, quando nos conhecemos. António Rei está ao lado da amiga Profa. Dra. Fátima Regina Fernandes; atrás de mim estão meu orientando Mateus Sokolowski e a amiga Profa. Dra. Renata Nascimento.

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