António Rei é um medievalista dedicado ao estudo do
al-Andalus. Nasceu em Évora (Portugal), onde se formou em História; é Mestre em
História (pela Nova de Lisboa) e Doutor em História Cultural e das Mentalidades Medievais (também pela Nova). É
pesquisador do IEM (Instituto de Estudos Medievais), da SPEM (Sociedade
Portuguesa de Estudos Medievais), do nosso NEMED (Núcleo de Estudos
Mediterrânicos da UFPR), dentre outros muitos grupos. É autor de uma produção diversificada
e de cuidadoso rigor científico.
Conheci António Rei em 2012, em Lisboa, no Encontro
Internacional Portugal Medieval visto do
Brasil. Ele foi nos encontrar e ofereceu alguns textos seus naquela
generosidade que lhe é particular. Alguns de meus orientandos provaram dessa sua virtude em e-mails trocados com ele, nos quais jamais se
negou (ou tardou...) a responder o que quer que fosse. Em 2015, tive a chance
de trazê-lo ao Brasil, para o XI EIEM (Encontro Internacional de Estudos
Medievais), promovido pela ABREM, em Pirenópolis (GO). Participou da primeira
mesa redonda do evento, totalmente voltada ao estudo do mundo muçulmano, ao
lado dos excelentes colegas Beatriz Bissio e Tadeu Verza. Mesa incrível!
António Rei é um pai de família dedicado, apaixonado
pelos filhos e um amigo para guardar do lado esquerdo do peito.
Literistórias – A pesquisa consagrada ao Ocidente
Latino ainda é predominante nos estudos medievais, no Brasil. E em Portugal?
Fale um pouco sobre sua área no seu país?
ANTÓNIO – A minha área de pesquisa é, dentro da
Idade Média, especialmente o al-Andalus (a Hispânia sob poder islâmico), mais
especificamente o Gharb al-Andalus (o Ocidente hispânico), e o que esse período
de cerca de 550 anos deixou na cultura e na identidade portuguesas. Digamos que
não me dedico muito à herança latina, mas mais à simbiose latina-judaica-árabe
que existiu na sociedade portuguesa até ao final do século XV, a 1496 mais
exatamente. A falta, em Portugal, de formação
sistemática, capaz e de base nesta área temática (não há licenciaturas e
menos pos-graduações), e a quase inexistência de ensino do idioma árabe, tem
feito com que ela não avance efetivamente, dando espaço a muitas divagações e
outras tantas confusões que em nada têm promovido um esclarecimento sobre o
tema, bem pelo contrário.
Literistórias – Você é também um tradutor. Como
avalia a importância da tradução feita pelos historiadores?
ANTÓNIO – Entendo que uma tradução feita por um historiador
deverá ser acompanhada por um estudo que contextualize a obra. Deverá procurar
situar o texto traduzido num ponto algures entre a tradução literal (geralmente
denotativa, dura, seca e difícil de entender para qualquer público), a tradução
erudita (com linguagem elaborada, explicativa e conotativa, e quase só
inteligível para especialistas) e a tradução de divulgação (com uma linguagem
mais facilitista, menos precisa na transmissão de conceitos e realidades
coetâneas da obra). Se um achado material fora do contexto não é um documento,
também um texto descontextualizado não o é. É uma criação literária, mas não é
uma fonte histórica.
Literistórias – Quais são os principais desafios que
o estudante precisa enfrentar para se dedicar ao estudo de al-Andalus?
ANTÓNIO – Honestamente, todo o que procure estudar o
al-Andalus, sem depender de terceiros, das traduções de outros, deverá procurar
saber o idioma árabe. O conhecimento do árabe permite trabalhar as fontes no
seu idioma original. Não terá que ser fluente como um nativo, mas convém que
saiba o suficiente para ler, entender, escrever e se exprimir em árabe. Ser um
arabista. Não será este conhecimento que, como é natural, o vai blindar ao
lapso e ao erro. Mas, quando detetar o erro saberá que o erro é seu, e não
andará transmitindo erros de outros. Para muitos esta última posição é mais
cómoda, porque o protege do esforço de ter que aprender o idioma; e, da mesma
forma, da responsabilidade dos erros veiculados. Mas nunca será cientificamente
audaz nem honesto. Será sempre um dependente, que jamais traduzirá, editará ou
publicará um texto em primeira mão.
Um historiador ou um arqueólogo que trabalhe o
al-Andalus, se não for arabista, permanecerá nessa condição de dependência
textual.
Literistórias
– Da sua lauta produção científica, queria destacar o CD-Rom O Gharb al- Andalus al-Aqsa na Geografia Arabe (Seculos III H. /
IX D. C. – XI H. / XVII D. C.), sem dúvida um de seus trabalhos que está entre os
meus favoritos. Fale sobre a importância de conhecermos o espaço que hoje é
Portugal na perspectiva dos autores muçulmanos?
ANTÓNIO – A importância de conhecer uma imagem do
espaço, hoje português, situada entre o que a geografia imperial romana deixou,
e o que, mais tarde, se foi fixando já a partir da documentação do Reino de
Portugal. Sabermos como era esse espaço; como se governava; quais os seus
principais polos urbanos; os seus eixos viários; como se defendia; o que tinha
de riquezas naturais; o que lá se produzia (na agricultura, na pesca, no
artesanato). Uma imagem daquele espaço, entre o século V e o século XII, ou de
como a sacralidade do espaço da Hispânia antiga se arroupou de vestes islâmicas
e sagrou o Califado do Ocidente.
Literistórias – António Rei, como você avalia a
importância de se dedicar ao estudo do Islã medieval no contexto em que vivemos:
assolado pela desinformação veiculada pela mídia, pelo fundamentalismo, pela
uniformização, pelas movimentações populacionais e tantos outros elementos que
colocam o Islã na direção dos holofotes?
ANTÓNIO – Continuarei acreditando, validado pela História de
al-Andalus, que é possível coexistir em paz, não importa a forma como cada ser
humano vive ou os valores sob os quais direciona a sua existência. O ser humano
é capaz do melhor e do pior. Cabe a cada um de nós escolher o que queremos ser.
Manter a mente aberta e o coração desperto. O al-Andalus será sempre a prova daquela
possibilidade, em que o ser humano seja o valor maior, vivendo uma Realidade
Suprema, à qual cada um dará o nome que entender, se assim entender.
Foto de 2012, tirada em Lisboa, quando nos conhecemos. António Rei está ao lado da amiga Profa. Dra. Fátima Regina Fernandes; atrás de mim estão meu orientando Mateus Sokolowski e a amiga Profa. Dra. Renata Nascimento.
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