Eu não me
lembro da primeira vez em que peguei um lápis com a intenção de conversar com o
texto que eu lia. Sei que agora há lápis espalhados pela minha vida e, de vez
em quando, eu acho alguns esquecidos dentro de livros que não terminei. Eu
conheço gente que prefere canetas e coloridos marca-textos. Também conheço
gente que tem repugnância pelo que acredita ser uma profanação do livro,
investido de mana, força sobrenatural. Outro dia, surpreendi a minha filha com
um lápis e um livro na mão. O lápis dançou pelos seus dedos, caiu no chão
algumas vezes, mas não foi para a página. Talvez ela só repetisse meu gesto,
talvez achasse que o lápis é um adereço de leitura. Um dia talvez, lápis e
papel se beijem sob o olhar cúmplice de minha filha.
Dou muito
valor aos grifos e às anotações que faço nas margens e, quando tenho de apagá-los,
com vergonha de emprestar a alguém um livro cheio da minha intimidade, eu sofro
um bocado. Mas isso não quer dizer que todas as minhas anotações sejam motes
para grandes pensamentos ou artigos. Eu já encontrei na página de um romance a
lembrança de uma salada. A leitura não me entorpece, ela me acorda inteira e,
não raro, quando leio, eu me lembro de coisas que fiz grande esforço para
trazer à minha consciência antes daquela página!
Por que me
lembrei de escrever sobre isso? Porque ganhei de presente, de um dos
tradutores, Vinícius Nicastro Honesco, As
Categorias Italianas (2014) de Giorgio Agamben. O livro já está tomado de
intimidade, com exclamações, interrogações, grifos e anotações para mim mesma e
para as pessoas de quem conheço bem o universo de pesquisa. Não é raro
encontrar o nome de meus orientandos nas margens dos meus livros! No capítulo
5, “O ditado da poesia”, leio o nome de Ana Luíza Mendes.
No capítulo
11, “A festa do tesouro escondido”, Agamben examina as margens da Ética de Spinoza, em exemplar que pertencera à escritora italiana Elsa
Morante (1912-1985). Não é um livro trivial na biblioteca da autora de La Storia (1974), mas uma obra
importante para ela: “não é motivo de surpresas, então, que o exemplar da Ética em questão contenha várias marcas
marginais de Elsa, em forma de estrelas, linhas, pontos de interrogação e
exclamação alternados e, por fim, em um único caso significativo, de uma
anotação de leitura” (pág. 171). O texto de Agamben versa sobre esse comentário
singular: a discordância entre Elsa e sua referência, a respeito de uma
primazia do homem sobre os animais em geral. Antes que alguém aluda a uma
pretensa bandeira ecológica sustentada por Elsa Morante, não que Agamben tenha
alegado isso, embora eu tenha visto uma sugestão muito leve na expressão “nossa
sensibilidade” (pág. 173), o filósofo sacode a identificação superficial.
Para
Agamben, Elsa não pode concordar com o “direito maior” que os homens têm sobre
os animais, porque estes testemunharam a “existência do paraíso terrestre”
(pág. 175), estavam lá quando homem sucumbiu! Onde o filósofo vai buscar a sua
certeza? Na própria obra de Elsa, obra esta em que, paradoxalmente, Spinoza
goza de prestígio inaudito, subscrito com a consideração de um “tesouro
escondido”. Agamben tem mais trabalho para compreender esse tesouro.
O filósofo
percorre o repertório da autora, sua própria obra, os dilemas pessoais,
combates, acertos de contas e o tempo que mora em Elsa e que a atravessa. Traz
outros autores para atuarem sobre suas escolhas, “é o terrível preço que a
mente deve pagar no momento em que atinge o ponto incandescente da certeza”
(pág. 178), júbilo e luto (!), a “alquimia da luz”, solução do enigma do tesouro
que, afinal, fez as pazes entre Elsa Morante e Spinoza.
Eu não
saberia dizer se esse é o meu texto favorito ou o mais útil no momento em que
estou. Leio no capítulo 7, “O ‘logos erchomenos’ de Andrea Zanzotto” a minha
anotação: “de certa forma contém as ideias fortes da obra”. Há três asteriscos
no início do capítulo 12, “O fim do poema”. O texto que contém mais grifos,
exclamações e dúvidas é o primeiro, intitulado “Comédia”, sobre Dante,
onipresente nas Categorias Italianas.
Se alguém lembrar de ofertar esse meu exemplar a uma pessoa que eu amo, depois
que eu morrer, é possível que ela ache que eu comecei com toda a energia a
leitura; ou que estava muito interessada em ler Dante outra vez.
O certo é
que, a partir de uma única frase na margem de um livro amado, quase um sussurro...,
alguém esclareceu um enigma e isso me emocionou. Nas margens dos nossos livros,
mora uma história da leitura privada, toda feita de caos! Vejo um desenho
indecifrável da minha filha na margem de uma obra lida nas férias; reencontro a
receita de salada; surpreendo-me com um telefone de médico; vejo a proposta de
um artigo que não escrevi e que talvez fosse útil a alguém; em outra página, percebo
que aproveitei bem uma deixa; leio um velho poema; sorrio para uma carta de
amor jamais passada a limpo.
Escrever
nas margens é, portanto, uma mania que eu e Elsa Morante aprovamos! Mas como
fazer com as obras que não nos pertencem, por exemplo, as obras das bibliotecas
públicas? Podemos colar post its nas
páginas importantes e fazer pequenas anotações nessas folhinhas, como 2/2, para significar que, no 2º
parágrafo, 2º período, há um trecho importante para nós. Claro que é preciso
reter o que é relevante antes de devolver e, para isso, existem cadernetas e
computadores. Alguém vai me lembrar que vive pegando livros cheios de anotações
em bibliotecas e eu vou responder que isso não é só desrespeito, é um ato de perversão.
Já os
livros que compramos nos sebos eventualmente trazem a história da leitura de
uma pessoa que um dia passou adiante, por livre e espontânea vontade ou não,
aquela obra. Eu conservo as dedicatórias desses livros com passado, respeito
religiosamente os grifos e anotações do outro ou da outra e até uso nova cor
para que aquele corpo sinta a minha diferença. Os livros usados – tanto aqueles
que pego emprestado quanto os que eu posso adquirir – lembram-me que eu também
tenho passado. Os livros que tenho de devolver deixam em mim a sua presença,
sua alma, se quiserem. Eles sempre sofrem com o meu toque, com o apertado da mochila,
com minhas mãos suadas..., não precisam das feridas do meu lápis. Não pode ser
de amor o toque que não foi consentido.
O engraçado
é que tenho livros muito importantes para mim que não têm um único grifo. Não
há grifos nas margens das minhas duas edições de Os Irmãos Karamázov e
todo mundo sabe que ele é meu I Ching... Não há asteriscos na minha edição de Grande Sertão: Veredas! Mas eu me
localizo bem nessas páginas. Os grifos e anotações são mapas de leitura e, às
vezes, deliberadamente, a gente só quer se perder e não deixar rastro.
Foto: Pág. 275 de
Um quarto com vista de E.M. Forster
(São Paulo: Globo, 2006).
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