terça-feira, 24 de novembro de 2015

Carta de uma mãe (que por acaso é medievalista) ao Ministro da Educação, sobre a BNCC

Curitiba, 20 de novembro de 2015

Excelentíssimo Senhor Aloizio Mercadante, Ministro da Educação,

Não sei se esta mensagem vai alcançá-lo, mas, se eu não a escrever, vou abrir mão da possibilidade. Sou Professora de História Medieval na UFPR, desde 2006. Meu currículo está disponível na plataforma lattes. Lá, Vossa Excelência vai ver que me formei em Letras, que fiz Mestrado em Literatura, que mudei de área no Doutorado, que já escrevi alguns livros, até uma coleção para crianças (a coisa mais linda que fiz em minha carreira), que tive um livro meu selecionado no PNBE do Professor (em 2013), que tenho um blog e até me aventuro pela Literatura. Não vou perturbá-lo com mais detalhes sobre a minha formação e experiência, pois elas podem ser consultadas na rede. O que me leva a acreditar na possibilidade de ser lida é a BNCC.
Li o documento com atenção e tenho militado pela colaboração de colegas, alunos e pais na consulta pública. Tenho uma filha de 7 anos. A Base impactará a formação de Maria Clara, bem como a de seus amigos e amigas. Impactará o trabalho de meus alunos e a minha área, que foi construída com tanto empenho no nosso país, por gerações que já começaram a partir...
Detive-me na parte dedicada à História. Pensei sobre ela e inseri minha colaboração como cidadã. Senhor Ministro, a Base tem falhas graves... O mundo não nasceu no século XVI, como o senhor bem sabe, mas esse é o tom... Conversei com os colegas de meu laboratório de pesquisa, o NEMED (Núcleo de Estudos Mediterrânicos) e elaboramos um documento cujos pontos essenciais já foram incluídos na consulta, ou seja, colaborei individualmente e, de maneira coletiva, como participante de um grupo de pesquisa cadastrado no CNPq. Um fragmento de nosso documento:
Imporemos assim, um brasilcentrismo tão ou mais perigoso quanto o europecentrismo que esta proposta quer combater. Como discutir Ciência e produção do conhecimento sem antes conhecerem o contexto de fundação das primeiras Universidades, dos ambientes de produção do conhecimento nos espaços árabes e gregos, discutir cidadania sem conhecer o conceito nos ambientes grego e romano, como saber de onde partiram as primeiras e fundamentais reflexões sobre o Direito desde a época dos romanos e boa parte das instituições que nos cercam até hoje? Uma parte dos dados culturais que constituem nossa tradição cultural brasileira seria apagada da História da mesma forma que antigas escolas europeias fizeram com as culturas ameríndias e africanas em séculos anteriores segundo interesses específicos. Ao aplicar seleções de conteúdo a nossos jovens estaremos praticando uma espécie de revanchismo pobre, ideologizado, tão corruptor das mentes juvenis como o daqueles que nos antecederam.

Senhor Ministro, eu sou membro da diretoria da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais) e, em consulta aos meus pares, não consegui descobrir um único colega que tenha participado da elaboração desse importante documento. Não sei se esta ausência explica os problemas que encontrei e que outros colegas encontraram, mas estou disposta a ajudar. É isso que me leva a escrever-lhe. Senhor Ministro, eu sou uma servidora pública e, depois que a consulta tiver se encerrado, gostaria de me colocar à disposição do MEC para ajudar a redigir uma Base que acolha as colaborações de tantas pessoas interessadas na formação das crianças e adolescentes brasileiros.
Estamos atravessando uma grande mudança história, as movimentações populacionais que assistimos vão mudar quem somos e, para termos um futuro, é preciso que compreendamos as identidades que nos tocam. Sobre o terceiro ano do Ensino Médio, escrevemos em nosso documento coletivo:
Sobressai a evidência forçada de que o mundo “começou” no século XVI... Depois de 2 anos repisando essa inverdade, os alunos podem se convencer de que não houve pensamento, filosofia, tecnologia, convivência, brilho e dor antes desse “marco”.
Como ao longo de todo o Ensino Médio, segundo a proposta dessa Base, os alunos ficaram sem conhecer o Ocidente Latino, Bizâncio e o Mundo Muçulmano, os medievalistas se perguntam como os jovens poderão entender a ressonância de um fenômeno como a Primavera Árabe?! Como entenderão a ressonância do Prêmio Nobel para o quarteto de Túnis (a Túnis do sábio muçulmano medieval Ibn Khaldun...)? Sem entender que o mundo muçulmano na Idade Média alimentou de filosofia o próprio Ocidente Latino, como as alunas e os alunos verão homens e mulheres dessa religião, e que chegam hoje ao Brasil em grandes contingentes, para além do fundamentalismo que a mídia proclama? Aliás, como entenderão o nascimento do próprio fundamentalismo, cujas correntes contemporâneas estão radicadas em interpretação equivocada de pensamento nascido na Baixa Idade Média?
Como um aluno que encerra seus estudos regulares, entre o Ensino Fundamental e Médio no Brasil, entenderá que só pode ler Aristóteles porque ele foi traduzido e comentado na Idade Média? Ao ignorar esse contexto, tiraremos dos jovens a aprendizagem dos caminhos de transmissão das fontes com as quais o pensamento científico se fez, entre a Época Moderna e Contemporânea.
O mundo não começou no século XVI nem para África, nem para o Brasil, nem para Portugal, nem para qualquer outra parte desse planeta em que homens e mulheres, graças ao conhecimento da História, podem descobrir que uma guerra pode até ter durado mais de 100 anos (a Guerra dos Cem Anos: 1337 – 1453), mas que as sociedades do passado encontraram meios de alcançar a paz. O conhecimento histórico pode dar esperança aos jovens, ao mostrar com evidências diversas que as sociedades mudam, que se refazem, que empregam tempo e energia diversos para encontrarem soluções para seus problemas.

Senhor Ministro, a História me deu e dá ainda... esperança. Mais uma vez, não sei se essa mensagem chegará à Vossa Excelência, mas resolvi tentar e dizer claramente que estou disposta a ajudar.
Despeço-me com sinceros votos de que sua gestão seja coroada pela elaboração da Base mais equilibrada para a formação de nossas crianças e jovens: nossos filhos, filhas, seus amigos, futuros médicos, professores e ministros.
Marcella Lopes Guimarães.


PS.: Essas foram as leituras de ontem à noite para Maria Clara. Entre as Histórias à brasileira, recontadas por Ana Maria Machado, a "Moura Torta". Depois, Obax, a menina que acreditava em chuva de flor. Que nossas crianças tenham direito à fruição de todas as histórias...

Resposta do Gabinete (de ontem, 23/11/2015):
Prezado(a) Senhor(a),
Informamos que sua mensagem endereçada ao Ministro de Estado da Educação foi encaminhada à Secretaria de Educação Básica (SEB), por tratar-se de matéria de competência daquela Secretaria.
Caso queira obter mais informações, sugerimos que entre em contato diretamente com a SEB, por meio do e-mail: gabinete-seb@mec.gov.br .

Atenciosamente,

Coordenação de Gestão e Apoio Administrativo
Gabinete do Ministro
Ministério da Educação
Bloco L – Ed. Sede, 8° Andar – sala 811
Cep: 70.047-900 - Brasília/DF
É(61) 2022.7866
* apoioadministrativogm@mec.gov.br

2 comentários:

  1. sabe o que acho? que estão querendo solapar a educação pra terem pretextos a privatizar ou melhor, chamam agora de concessão a empresas. Em Goiás o governo fala em terceirização da educação, as OSs; coisa que já fez na saúde. Não vão ouvir, quando estão no poder não ouvem nada, e mandam um aparato armado pra bater em professores. Sem falar que o ENEM veio pra acabar com a educação, uma educação voltada para um índice, mas conhecimento mesmo pra vida nada, enquanto isso professores discutem salários, mas se essa política educacional continuar, não adianta ganhar muito dinheiro, gastaremos tudo com remédios e tratamentos, enfim. Nós não podemos aceitar as coisas assim, não há debate, não há nada, somente há imposição. E nós só falamos com os pares, nossos trabalhos e nas universidades só dialogam com os pares em uma guerra de egos, enquanto nossa educação afunda. Desculpa, estou puto com o que esses políticos estão fazendo conosco, seja esquerda direita volver, precisamos unir forças, rápido.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Concordo com seu desejo de juntar forças! Não vamos deixar passar a BNCC sem debate e colaboração. ‪#‎queroajudarabnccmeconvidaministro‬

      Excluir