segunda-feira, 10 de abril de 2017

“Eu andarei vestido e armado...”: sobre São Jorge (2016), filme de Marco Martins

Na semana em que estive em Portugal, fui com minha amiga Patrícia Garpar e com minha prima Andréia Bentes ao Shopping das Amoreiras em Lisboa, para ver São Jorge, filme dirigido por Marco Martins e estrelado por Nuno Lopes, Mariana Nunes e David Semedo. Depois da exibição, o diretor e o ator conversaram com o público até quase a madrugada, com toda a energia, apesar da maratona que têm cumprido para divulgar e debater o filme por diversas cidades europeias. Em setembro de 2016, Nuno Lopes conquistou o prêmio de melhor ator no Festival de Cinema de Veneza pela sua atuação no filme. Mereceu.
Nuno é Jorge, português, boxer, cobrador de “cobranças difíceis”[1], marido de Susana e pai de Nelson[2]. Mora com o pai, o filho e um monte de gente em um apartamento minúsculo, no bairro da Bela Vista; Mariana é Susana, brasileira, mora no bairro da Jamaica e dá um duro danado fazendo limpeza. Apertados no carro, o casal se entrega à paixão teimosa que o racismo do pai de Jorge e as crises da vida teimam (em vão) em arrefecer... Em uma das cenas mais lindas do filme, os personagens estão nos braços um do outro, dançam no bairro da Jamaica, Susana sonha com a casa que Jorge lhe prometera, suas roupas já estão arrumadas para a nova vida, é o único momento em que Mariana pode deixar Susana sorrir; Jorge está à beira do abismo, vai fugir, pode ser implicado na morte de um homem. Ela a tudo ignora; nós não, somos cúmplices, sabemos que ele não matou, mas constrangeu com violência, há testemunhas. Risco. Coração pesado na plateia.
O filme é forte. Se Jorge e Susana são personagens ficcionais, a Troika[3] não. O constrangimento econômico abate o casal; abate os personagens[4] que debatem sua situação na casa do pai de Jorge sob o olhar da câmera que, entretanto, observa sem se intrometer; abate Nelson, a criança que não vemos ir à escola, que vemos respirar mal na cama do pai, que não suporta vê-lo apanhar no ringue para ganhar dinheiro. Mas a câmera é insidiosa para Jorge, vemo-la no seu encalço; a focalizar a nuca, o perfil de Nuno, a evitar seus olhos... até o final, quando ele parte sem olhar para trás. A câmera faz questão de nos colocar frente a frente com ele. Quer o quê? Talvez que sejamos a barreira, que digamos a ele: Volta; volta pra Susana e pro Nelson; toma novamente o colar que acabou de entregar para seu filho e cinge o pescoço com o santo guerreiro, entoando o célebre “eu andarei vestido e armado com as armas de Jorge”!
Fiz duas perguntas ao diretor depois da exibição, e calei uma questão que queria propor a Nuno, para não ser a brasileira-chata-monopolizadora-do-debate... Ao ver o ator sorridente, barbado e cabeludo, tão diferente de como está no filme, fiquei com vontade de ouvi-lo falar sobre sua preparação física. Não me refiro aos treinos de boxe que certamente deve ter sido obrigado a encarar com rigor, gostaria de ouvi-lo falar sobre como foi conter-se e estar sempre pronto a explodir; sobre como foi representar quando a câmera fugiu do encontro com os seus olhos, com o seu rosto, de fato tão diverso do belo ator que quando sorri é capaz de o fazer com covinhas!
Perguntei a Marco Martins sobre o enquadramento e ele confirmou a intenção de uma câmera persecutória. Uma pessoa na plateia fê-lo abordar a iluminação, ou a falta dela. Quase não há sol no filme e, quando há, no campo de futebol, onde pai e filho jogam com outras crianças, Nelson tem de ir embora, levando por outro homem, com quem a mãe mora. Não sabemos bem a relação de Susana com esse homem que abraça Nelson e o conduz para longe do pai. Só vemos Jorge sem sol afinal.
A segunda pergunta que fiz a Marco tinha a ver obviamente com o santo que nomeia o filme. Aludi à longa relação dos portugueses com São Jorge; lembrei do grito radicado no medievo, antes das batalhas. Mas Marco não pareceu embarcar em minha sugestão e ligou o santo mais aos brasileiros que aos portugueses, apesar de tradição. Nuno fez um aparte e nos contou que, em sua leitura muito particular do amor de Jorge e Susana, acredita que ela tenha oferecido a seu personagem a medalha... Fiquei morrendo de vontade de falar uma coisa que não tive coragem lá, mas que escrevo aqui: Nuno, então foi o amor que fez o Brasil devolver a Portugal seu santo de devoção medieval? Emoção triplicada de uma devota do santo (ergui a minha medalha em público...), filha de pais portugueses e medievalista!
O filme é um documento relevante por pelo menos duas razões. Foi desenvolvido mesmo no caminho acidentado que percorreu, afetado pela crise que representa, demorou cinco anos para ficar pronto. Marco Martins afirmou que tinha a intenção de fazer um filme sobre boxe, mas conheceu os cobradores de cobranças difíceis nas academias e pensou: o filme estava ali. Sua pesquisa não foi particularmente beneficiada pela abundância de fontes, afinal nenhuma empresa dessas lhes escancarou as portas... Mas conheceu os homens que a qualquer hora do dia lembravam aos devedores com o auxílio de técnicas diversas as suas dívidas.
Quem imagina um Portugal de Torre de Belém e Mosteiro dos Jerônimos vai se surpreender com São Jorge. Vai se surpreender com a escolha dos cenários, bairros reais, em que habitam pessoas que dão um duro danado. É preciso dizer ainda que as dificuldades não habitam só esses bairros e que não constrangem apenas os imigrantes e seus filhos... Constrangem os portugueses, em uma frase direta. As empresas de cobranças difíceis são a redução de escala da própria Troika, essa é a segunda razão pela qual para mim o filme é um extraordinário documento fixado no presente. Marco Martins deu visibilidade a problemas que muita gente ignorava em Portugal, eu inclusive.
Continuo com a história do santo atravessada no meu coração. O final do filme não me deu esperança, mas Marco Martins o chamou de São Jorge!... Fiquei a considerar a hipótese de um país que precisa cantar para si mesmo dois lindos versos escritos por Chico Buarque em “Fado tropical”[5].
Eu agradeço à minha amiga Patrícia Gaspar, uma amante do cinema português, conhecedora e admiradora do trabalho de Nuno Lopes, o ter nos levado para ver o filme e participar do debate. Lembro-me que, quando ela foi cônsul de Portugal em Curitiba, realizamos um pequeno mas muito exitoso festival de cinema português na PUCPR.
Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa,
Mas meu peito se desabotoa.[6]

Certamente o meu peito se desabotoou de emoção por Jorge, Susana e Nelson! Marco Martins, você fez um filme importante!







[1] Por “cobranças difíceis” se entende a verdadeira perseguição a devedores que tiveram suas dívidas compradas por empresas, que empregam por sua vez métodos violentos para reaver as somas. Conferir: https://jpn.up.pt/2017/03/22/nuno-lopes-conversou-sao-jorge-anunciou-novo-projeto/ (acesso em 9 de abril de 2017).
[2] David Semedo é a criança encantadora que nos emociona no filme, descoberto justamente no bairro da Bela Vista, em Setúbal.
[3] Conferir: https://www.economias.pt/troika/ (acesso em 7 de abril de 2017).
[4] Que não são atores!
[5] Em “Fado tropical”, Chico Buarque afirma: “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:/ Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!”. Referia-se ao Brasil. Em minha hipótese, entretanto, caberia a Portugal descobrir a sua própria imensidão...
[6] Versos de “Fado tropical”.

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