Na semana em que estive em
Portugal, fui com minha amiga Patrícia Garpar e com minha prima Andréia Bentes
ao Shopping das Amoreiras em Lisboa, para ver São Jorge, filme dirigido por Marco Martins e estrelado por Nuno
Lopes, Mariana Nunes e David Semedo. Depois da exibição, o diretor e o ator
conversaram com o público até quase a madrugada, com toda a energia, apesar da
maratona que têm cumprido para divulgar e debater o filme por diversas cidades
europeias. Em setembro de 2016, Nuno Lopes conquistou o prêmio de
melhor ator no
Festival de Cinema de Veneza pela sua atuação no filme. Mereceu.
Nuno é Jorge,
português, boxer, cobrador de
“cobranças difíceis”[1], marido
de Susana e pai de Nelson[2]. Mora
com o pai, o filho e um monte de gente em um apartamento minúsculo, no bairro
da Bela Vista; Mariana é Susana, brasileira, mora no bairro da Jamaica e dá um
duro danado fazendo limpeza. Apertados no carro, o casal se entrega à paixão
teimosa que o racismo do pai de Jorge e as crises da vida teimam (em vão) em
arrefecer... Em uma das cenas mais lindas do filme, os personagens estão nos
braços um do outro, dançam no bairro da Jamaica, Susana sonha com a casa que
Jorge lhe prometera, suas roupas já estão arrumadas para a nova vida, é o único momento em que Mariana pode deixar Susana sorrir; Jorge
está à beira do abismo, vai fugir, pode ser implicado na morte de um homem. Ela
a tudo ignora; nós não, somos cúmplices, sabemos que ele não matou, mas
constrangeu com violência, há testemunhas. Risco. Coração pesado na plateia.
O filme é forte.
Se Jorge e Susana são personagens ficcionais, a Troika[3] não. O
constrangimento econômico abate o casal; abate os personagens[4] que
debatem sua situação na casa do pai de Jorge sob o olhar da câmera que,
entretanto, observa sem se intrometer; abate Nelson, a criança que não vemos ir
à escola, que vemos respirar mal na cama do pai, que não suporta vê-lo apanhar
no ringue para ganhar dinheiro. Mas a câmera é insidiosa para Jorge, vemo-la no
seu encalço; a focalizar a nuca, o perfil de Nuno, a evitar seus olhos... até o
final, quando ele parte sem olhar para trás. A câmera faz questão de nos
colocar frente a frente com ele. Quer o quê? Talvez que sejamos a barreira, que
digamos a ele: Volta; volta pra Susana e
pro Nelson; toma novamente o colar que acabou de entregar para seu filho e
cinge o pescoço com o santo guerreiro, entoando o célebre “eu andarei vestido e
armado com as armas de Jorge”!
Fiz duas perguntas
ao diretor depois da exibição, e calei uma questão que queria propor a Nuno,
para não ser a brasileira-chata-monopolizadora-do-debate... Ao ver o ator
sorridente, barbado e cabeludo, tão diferente de como está no filme, fiquei com
vontade de ouvi-lo falar sobre sua preparação física. Não me refiro aos treinos
de boxe que certamente deve ter sido obrigado a encarar com rigor, gostaria de
ouvi-lo falar sobre como foi conter-se e estar sempre pronto a explodir; sobre
como foi representar quando a câmera fugiu do encontro com os seus olhos, com o
seu rosto, de fato tão diverso do belo ator que quando sorri é capaz de o fazer
com covinhas!
Perguntei a Marco
Martins sobre o enquadramento e ele confirmou a intenção de uma câmera
persecutória. Uma pessoa na plateia fê-lo abordar a iluminação, ou a falta
dela. Quase não há sol no filme e, quando há, no campo de futebol, onde pai e
filho jogam com outras crianças, Nelson tem de ir embora, levando por outro
homem, com quem a mãe mora. Não sabemos bem a relação de Susana com esse homem
que abraça Nelson e o conduz para longe do pai. Só vemos Jorge sem sol afinal.
A segunda pergunta
que fiz a Marco tinha a ver obviamente com o santo que nomeia o filme. Aludi à
longa relação dos portugueses com São Jorge; lembrei do grito radicado no
medievo, antes das batalhas. Mas Marco não pareceu embarcar em minha sugestão e
ligou o santo mais aos brasileiros que aos portugueses, apesar de tradição.
Nuno fez um aparte e nos contou que, em sua leitura muito particular do amor de
Jorge e Susana, acredita que ela tenha oferecido a seu personagem a medalha...
Fiquei morrendo de vontade de falar uma coisa que não tive coragem lá, mas que
escrevo aqui: Nuno, então foi o amor que fez o Brasil devolver a Portugal seu santo de devoção medieval? Emoção triplicada de
uma devota do santo (ergui a minha medalha em público...), filha de pais portugueses
e medievalista!
O filme é um
documento relevante por pelo menos duas razões. Foi desenvolvido mesmo no
caminho acidentado que percorreu, afetado pela crise que representa, demorou
cinco anos para ficar pronto. Marco Martins afirmou que tinha a intenção de
fazer um filme sobre boxe, mas conheceu os cobradores de cobranças difíceis nas
academias e pensou: o filme estava ali. Sua pesquisa não foi particularmente
beneficiada pela abundância de fontes, afinal nenhuma empresa dessas lhes
escancarou as portas... Mas conheceu os homens que a qualquer hora do dia
lembravam aos devedores com o auxílio de técnicas diversas as suas dívidas.
Quem imagina um
Portugal de Torre de Belém e Mosteiro dos Jerônimos vai se surpreender com São Jorge. Vai se surpreender com a
escolha dos cenários, bairros reais, em que habitam pessoas que dão um duro
danado. É preciso dizer ainda que as dificuldades não habitam só esses bairros
e que não constrangem apenas os imigrantes e seus filhos... Constrangem os
portugueses, em uma frase direta. As empresas de cobranças difíceis são a
redução de escala da própria Troika, essa é a segunda razão pela qual para mim
o filme é um extraordinário documento fixado no presente. Marco Martins deu
visibilidade a problemas que muita gente ignorava em Portugal, eu inclusive.
Continuo com a
história do santo atravessada no meu coração. O final do filme não me deu
esperança, mas Marco Martins o chamou de São
Jorge!... Fiquei a considerar a hipótese de um país que precisa cantar para
si mesmo dois lindos versos escritos por Chico Buarque em “Fado tropical”[5].
Eu agradeço à
minha amiga Patrícia Gaspar, uma amante do cinema português, conhecedora e
admiradora do trabalho de Nuno Lopes, o ter nos levado para ver o filme e
participar do debate. Lembro-me que, quando ela foi cônsul de Portugal em
Curitiba, realizamos um pequeno mas muito exitoso festival de cinema português
na PUCPR.
Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa,
[1] Por “cobranças difíceis” se entende a
verdadeira perseguição a devedores que tiveram suas dívidas compradas por
empresas, que empregam por sua vez métodos violentos para reaver as somas.
Conferir: https://jpn.up.pt/2017/03/22/nuno-lopes-conversou-sao-jorge-anunciou-novo-projeto/ (acesso em 9 de abril de 2017).
[2] David Semedo
é a criança encantadora que nos emociona no filme, descoberto justamente no
bairro da Bela Vista, em Setúbal.
[4] Que não são atores!
[5] Em “Fado tropical”, Chico Buarque afirma: “Ai,
esta terra ainda vai cumprir seu ideal:/ Ainda vai tornar-se um imenso
Portugal!”. Referia-se ao Brasil. Em minha hipótese, entretanto, caberia a
Portugal descobrir a sua própria imensidão...
[6] Versos de “Fado tropical”.
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