Já escrevi sobre a aventura
maravilhosa de ter epifanias diante do conhecido: filmes revistos, livros
relidos, gente reencontrada! Não sei quantas vezes ouvi e li o capítulo 20 de João, versículos de 1 a 10, mas ontem me
pareceu particularmente emocionante ouvi-lo da boca de um dominicano e de certa
forma engraçado reparar na disposição dos panos que cobriam o corpo de Jesus,
quando eles já não o cobriam.
O fragmento a que me refiro é muito
conhecido:
"1.No primeiro dia da semana, Maria
Madalena veio ao sepulcro, bem de madrugada, quando ainda estava escuro, e viu que
a pedra tinha sido removida do sepulcro. 2. Então foi correndo até onde estava Simão
Pedro e o outro discípulo a quem Jesus amava e disse-lhes: “Tiraram o Senhor do
sepulcro, e não sabemos onde o puseram!” 3. Pedro saiu com o outro discípulo e
foram ao sepulcro. 4.Corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa
do que Pedro e chegou primeiro. 5.Inclinando-se, viu as faixas de linho no seu
lugar, mas não entrou. 6. Depois chegou Simão Pedro, entrou no sepulcro e viu as
faixas de linho no seu lugar 7. e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de
Jesus. O sudário não estava com as faixas de linho, mas enrolado num lugar à
parte. 8. O outro discípulo que chegou primeiro entrou também, viu e creu. 9.
De fato, eles ainda não se haviam dado conta da Escritura, segundo a qual era
preciso que Jesus ressuscitasse dos mortos. 10. A seguir, os discípulos
voltaram para casa."[1]
Há
coisas muito significativas em um trecho tão visual: madrugada, ainda bem
escura; pessoas correm, umas são mais velozes que outras, mas as velozes não
são necessariamente as mais corajosas; o encontro dos panos: “um no seu lugar”,
duas vezes referido, e o pano que envolvia o rosto dobrado em separado, “num
lugar à parte”. Os outros evangelhos vão
dizer que Madalena não estava sozinha em seu intento de ir cedo ao sepulcro,
fora com amigas: Maria, mãe de Tiago, Salomé... e afirmam também que tinha a
intenção de ungir Jesus, levava perfumes... Mas João não quer saber desse tipo
de enredo: deixa Madalena só, a descobrir e a propalar aos discípulos.
Domingos
de Gusmão tinha particular apreço por ela! Tomás de Aquino soube ler o
fragmento que destaquei como ninguém, ao reconhecer o protagonismo da
personagem como testemunha e anunciadora. Não é à toa que os dominicanos vão
buscar nela a inspiração para sua identidade como predicadores. Esse fato conhecido
por mim teve outro nível de internalização hoje, quando eu o ouvi pela voz de
um dominicano. Eu nunca tinha ouvido esse trecho lido por deles? Não sei dizer,
talvez..., mas só ontem o meu conhecimento encontrou a minha emoção.
Volto
à cena. Quando Madalena fala a Pedro e ao discípulo que Jesus amava, ela acusa:
“Tiraram o senhor...” e usa a primeira pessoa do plural: ”não sabemos”, um
indício fraco de que não estava sozinha. Digo fraco, porque só me sirvo de
traduções. Os outros evangelhos, porém, fortalecem a pista. O clima é de
insegurança geral depois do processo, da condenação e da morte de Jesus, assim
entendo a acusação, que na verdade é um pedido de ajuda. Os homens se apressam.
Pedro
é velho, portanto perde na corrida. O discípulo que Jesus amava chega primeiro
e vê o linho “no seu lugar”. Adoro essas coisas no texto bíblico... Que
lugar???? O lugar desse linho não era no corpo de Jesus?! Sempre visualizei
esse “lugar” como o chão. Imagino as tiras jogadas, fazendo um montinho, mas
nunca reparei, pois cheguei ainda mais atrasada que Pedro rsrsrs, nesse “seu
lugar”. Para piorar tudo, o sudário, ou seja, o tecido que cobria o rosto, fora
colocado não no “seu lugar” (ufa, mais uma confusão, pois o lugar seria a
cabeça...), mas “à parte” (?!).
Depois
que não encontram o corpo de Jesus, o que fazem esses dois amigos de Madalena,
a quem ela foi pedir ajuda? Vão para casa!!! Ela fica só e chora. Vê dois
anjos, que revelam algo interessante sobre esses lugares que me despertaram
interesse: um deles está disposto onde estaria repousada a cabeça de Jesus e o
outro, aos pés. Logo depois, Madalena vê Jesus, mas ela não o reconhece, pensa
que é um jardineiro (João sabe ser engraçado...), confronta-o, até que ele a
chama: “Maria” (versículo 16). É muito bonito isso, um dado de intimidade,
talvez só ele pudesse dirigir-se a ela nesses termos, da afirmação de seu
primeiro nome, um reconhecimento de quem é muito próximo. Imagino que ela quer
abraçá-lo, mas ele evita o contato: “Não me retenhas porque não subi ao Pai”
(versículo 17).
Mas
vamos lá, à disposição das coisas. Então, os anjos me informam que o linho que
envolveu o corpo de Jesus estava no limite desse corpo, que assumo como sendo o
“seu lugar”, entre a cabeça e os pés. Mas e o sudário? Uma das coisas que mais
me encantam nesses escritores de tradição hebraica, e que encantou Eric Auerbach[2], é
a sua concisão. Ela me permite imaginar muita coisa. Vejo Jesus acordar e mover
as suas mãos em direção ao rosto. Tira primeiro esse tecido. Sua fraca
humanidade (acabou de ressuscitar!) quer respirar e ver onde está. Remove esse
tecido com surpresa, ainda hesitante. Está escuro à sua volta, portanto não
pode depositar esse sudário no lugar (????), então o põe à parte, onde alcança.
Mas e os linhos que envolvem seu corpo? Trata-se de um homem adulto, pleno,
imagino uma quantidade razoável de tecido. Jesus se desprende e levanta..., os
tecidos caem onde está, afinal, o lugar! Os olhos querem ver. Só é possível se
a pedra for removida. Para um homem que acabou de ressuscitar, o que é um
pedregulho?! É óbvio que não tem o menor interesse em fazer arrumações. Deixa a
morte para trás.
Sei
o que estão a pensar: sai vestido ou desnudo? Não sei. O que sei é que quando
aparece à Madalena, não é a sua (falta de) compostura que a surpreende, mas
decerto Jesus está diferente. Ela só pode reconhecê-lo pela palavra que apenas
ele saberia proferir... Maria. Essa
palavra é nome do reconhecimento.
João deixa um espaço imenso à minha
imaginação. Eu o cubro com a humanidade, pois só posso imaginar com o meu
repertório, afastado do divino. A concisão pode ser calculada, portanto. João
pinta o céu/cenário, põe seus atores a correr, a mulher a chorar... tem muito
drama na cena! Diz que os homens foram para casa, só Madalena fica. João afirma
que só com ela está a coragem. Põe Jesus a dizer a palavra mais íntima, quase
um sussurro, que só alguém próximo está autorizado a emitir.
Toda
essa história de “seu lugar” e “lugar à parte” é puro diletantismo meu, quando
o mais importante é o que Madalena haveria de anunciar? O que aconteceu dentro
do sepulcro é um drama sem testemunha. As tiras e o sudário, porém, na sua
diferente disposição, são as únicas pistas para um mistério: a vida vencer a
morte, ou simplesmente um corpo enfaixado acordar surpreso e hesitante, ávido
de liberdade. Esses panos são o testemunho mais vivo do que sucedeu lá dentro.
Só posso invejar o narrador de João e a extraordinária solução narrativa
de representar o movimento dramático pelo detalhe ínfimo, a diferença desses
panos jogados lá no texto.
A Ressurreição de Giotto
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