Sabe quando você escuta várias
vezes uma expressão e faz uso razoável dela, sem se preocupar muito a respeito das
partes que se juntaram para formá-la e, um dia, por encanto, ela passa a
incomodar? Há semanas eu passei a me incomodar com “confiança cega”. Isso não
significa que tenha ficado mais desconfiada, significa simplesmente que passei
a pensar mais a respeito do que significa de fato confiar em alguém cegamente.
A palavra confiar foi formada no medievo pelo radical fiar, que por sinal veio do latim fidāre/fiděre, segundo
Antônio Geraldo da Cunha[1]. Na essência dessas
palavras, está fides: fé e crença.
Então parece que quando juntamos o prefixo com-,
incluímos alguém na nossa crença... Legal, mas o Marc Bloch já nos ensinou que
as palavras valem menos pelas etimologias que pelos usos, então voltemos ao meu
incômodo. Confiar é entregar-se e crer. Por que esse absoluto passou a precisar
de advérbios? Não vou saber..., mas fiquei com vontade de conhecer a reação de
alguém que ouvisse um grande amigo afirmar que confia de olhos abertos nesse
alguém. O que pensaria o ouvinte da novidade?
Antes, eu acho que temos
necessidade dos pleonasmos. Por que dizemos: “eu vou sair lá fora”; “vou subir
para cima”; “descer para baixo”... Por que publicamos nos jornais “grávida que
sobreviveu ao acidente está viva” ou “proibido barulho sonoro a partir das
22:00”[2]? Temos necessidade de
deixar tudo muito explicadinho. Acho que a essência da confiança cega está
nessa mania de explicação.
Entregar-se ou crer não precisa ser
às cegas, se a gente não é cego. Meu desacerto talvez venha daí, de uma decisão
deliberada de não ver. Por que a confiança cega seria melhor que a confiança de
olhos arregalados? Entregar-se vendo tudo me parece inclusive mais intenso.
Crer a despeito do contrário que assoma a nossos olhos me parece ousado.
Sabe aquela brincadeira da
confiança: de costas para alguém, a gente simplesmente se abandona e esse
alguém nos sustenta e soergue? Quem fecha os olhos? Eu já brinquei assim e
nunca fechei. Desconfianças?... Acho que quis me manter na relação como alguém
que não é uma massa inerte/fardo para o outro. Talvez essa maneira minha de
brincar de confiança esconda uma personalidade controladora, que quer pilotar o
avião...
Prevejo que alguém vá relacionar
meu incômodo semântico não à pretensa inclinação para estar no controle, mas ao
contexto em quem vivemos, de desconfiança generalizada. Afirmar que se confia
cegamente estaria, assim, entre uma necessidade de precisão e rara
frequência... A desconfiança, mais constante infelizmente, necessitaria de
reafirmação para não ressoar irônica.
Cegamente é um advérbio que é modo e
intensidade. Eu confio muito, tanto que cegamente! Mas isso não melhora as
coisas... Confiar muito é realmente necessário? Confiar (simplesmente)...
quanta inteireza! Fiar, abandonar-se, crer, com/em.
Antes de resolver escrever este
breve texto, eu tive um debate com a filha sobre confiança, em que ela me perguntou
se eu não confiava nela. Eu disse que confiava, mas... calei antes de
pronunciar a oração adversativa, consciente de que ela me levaria a uma
enrascada maior que o cegamente. Eu me corrigi e disse que confiava sim, de
olhos abertos, porque tenho olhos de ver. Engraçado que ela não reclamou,
pareceu compreender que não precisava me exigir a abdicação do sentido, para
resolver nosso debate.
Não está fácil confiar...
Cegamente, então?! Mas acho que se há uma maneira de resgatar a confiança é
fazê-la na inteireza de nossa capacidade. Se eu posso ver, é com tudo o que já
vi, vejo e verei que confio; se acho que é preciso ser cego para abandonar-me
ou crer é porque relaciono essa escolha à insuficiência ou à falta. Confiança é
uma decisão plena demais para fechar os olhos. É uma decisão livre. Se somos constrangidos, não confiamos. Se não achamos, não devemos.
A gente confia muito. A gente come
fora e nem vê a comida ser preparada! Elogia e acha uma delícia. As pessoas que
preparam esses alimentos são muitas vezes completamente desconhecidas para nós.
E se elas cuspirem em nossa comida? Eu vi um filme em que o personagem fazia
isso... Se já cuspiram, nós não soubemos. Confiamos em desconhecidos e
conhecidos. Existe uma segurança maior nos conhecidos? Mulheres que foram
assassinadas por ex-parceiros lhes abriram as portas de casa, com os filhos
dentro, porque confiaram na possibilidade do diálogo... Confiança é uma coisa
poderosa. Confiança é uma coisa perigosa.
Confiar é uma decisão inteira e,
como tal, não cabe adendo. Entregar-se, acreditar, a despeito de tudo à nossa
volta, são gestos de verdade, coragem e ousadia. Agora, quando alguém me
perguntar se pode confiar em mim, eu vou dizer que pode e vou insistir para que
mantenha os olhos abertos, pois eu não vou fechar os meus. Na expressão de
minha própria confiança em tanta gente que me rodeia, vou repetir a disciplina.
Juntos ou juntas, olhos nos olhos, brincando de abandonar o corpo nos braços do
amigo, que nossa entrega possa ser mais profunda, sem abrir mão do que nos
constitui, com todos os sentidos.
PS: Queridos leitores, semana que vem, não haverá atualização no blog. Estarei em Portugal para participar de 2 eventos. Na volta, eu conto como foi!
Belíssimo texto Marcela, não havia me atentado, aliás como na maioria das palavras, da etimologia dessa palavra, confiar. Me assustei com o poder dela e de agora em diante só a usarei de olhos abertos.
ResponderExcluirObrigada, querido! Olhos arregalados! rsrsrsrs
ExcluirHavia pensado como era viver cegamente. Vc me abriu um lek importante. Pois há anos venho pensando nisso. Oque será realmente viver cegamente?
ExcluirNossa eu penso a mesma coisa que vc. Já vinha pensando ah um tempo atrás oque era viver cegamente. Vc tocou em um post inteligente. É por aí
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