Essa história começou há alguns
anos, desde que mudei de trajeto para conduzir a filha à escola. Nenhuma
inclinação por novidades me motivou a alterar o trajeto que seguíamos; foi a
proibição de conversão em uma das ruas que me fez pensar em alternativas. A
alternativa que afinal considerei mais adequada incluía passar diariamente em
frente à casa de uma grande amiga, o que seria ótimo, pois, mesmo que eu nunca
a visse naquele horário em frente à própria casa, olhar para sua fachada era
uma forma de dizer olá. Logo depois de passar por essa casa
querida, eu teria de dobrar à esquerda, seguir mais alguns metros, até dobrar
novamente, desta vez à direita, contornar uma rotunda e voilà: tchau, filha, boa aula!
Entre a dobrada à esquerda depois
da minha amiga e a dobrada à direita, antes da rotunda, descobri uma casa azul.
Uma casa toda de madeira, na esquina, pintada de um azulão, entre o meia noite e
o safira..., ou seja, um azul corajoso para se ostentar pelo meio da rua. Foi
amor à primeira vista.
Todo dia, encontrava novos encantos
na casa: quintal com varais repletos de roupas dançantes, o que me fazia pensar
na quantidade de gente que devia morar na casa, mas que eu nunca via naquela
profusão; mandalas coloridas nas janelas, que me faziam imaginar que a casa era
vaidosa por usar aqueles brincos bonitos; árvores, arbustos e flores em
adorável liberdade, sem a coerção dos jardineiros contratados; uns tufos de
gramíneas no telhado, que davam um aspecto de cabelos curtinhos e cheios de
estilo... Uma casa que convidou o tempo de forma muito clara para habitá-la, o
que incluía a necessidade de reparos..., mas tão bonita na sua maturidade que
me parecida orgulhosa da sua decadência! Eu gostava mais dela por isso, por ser
meio decadente e feliz, vestida de azul.
Todo dia, dávamos olá para a casa
azul, eu e a filha. Com o passar do tempo, só eu passei a saudá-la, sob o
silêncio de uma filha meio envergonhada da brincadeira; uma filha em
pré-adolescimento. Mas eu sou determinada, passei até a diminuir a velocidade
do carro, ooooláááááááááá, caaaasaa
azuuuuuulll! E foi tanto o meu amor pela casa que inventei uma história
sobre ela – a história de amigos que se encontram no portão depois de muitos
anos... Não, nunca publiquei essa história.
Um dia, a amiga querida a quem eu
ainda digo olá quando passo em frente à sua casa me contou que a minha casa
azul estava à venda. Enviou mesmo o anúncio para mim. Não demorei a perceber
que, embora precisada de cremes anti-idade de última geração ou até de
enfrentar uma intervenção mais radical, a casa azul era muita areia para o meu
carro popular. Encarei os fatos: a casa estava no meio de um quintal muito
grande para aquele bairro, bom para construir...; estava situada em uma esquina
pra lá de bem localizada... Era atraente para quem não teria o menor interesse
pela sua beleza de tufos no telhado.
Mantive uma esperança de condenado:
talvez a casa tivesse outros apaixonados, alguém mais abonado haveria de
desposá-la para uma vida de mútuo respeito!!! Minha esperança durou alguns
dias, menos do que pensei, levando-se em conta o preço anunciado... Logo, as
mandalas sumiram e as janelas se fecharam.
Não descobri sozinha o destino da
casa. Em um dia em que não fui levar a filha por qualquer impedimento, recebi a
notícia de que pessoas se agitavam no terreno para desmanchá-la. Aquilo me fez
tão triste que pedi ao mensageiro que naquele dia fatídico também buscasse a
filha. Mas não consegui fugir ao enfrentamento da realidade. Um dia, eu me
deparei com a casa sem teto.
Parei o carro. A filha se assustou.
Mãe?... Só uma foto; só uma
lembrança. Tirei duas fotos. Nos outros dias, acompanhei a demolição. Parei o
carro novamente. A casa azul reduzida a uma imensa pilha de tábuas. Falei aqui
em casa que queria uma das janelas de recordação, se viessem com os brincos
ainda ia gostar mais! Onde você colocaria
essa janela, mãe? Eu a colocaria deitada no lugar do corrimão que
arranquei, só para poder acariciá-la...
Uma
janela que vira corrimão é mesmo coisa da sua imaginação!...
Vi quando o caminhão começou a
carregar as tábuas. Nos outros dias, a terra foi aplainada; sumiram até as
flores e arbustos livres que faziam companhia aos varais. Um dia, porém, reparei
que em um canto, havia uma coisa amarela no terreno sem graça. Mas a pressa me
abrigou a seguir em frente. Mãe, estamos
atrasadas? Só em cima da hora.
Fiquei intrigada com aquela coisa
amarela, ao longo do fim de semana, e na segunda descobri que se tratava de um
sofá. Um sofá amarelo-gema-caipira havia sido esquecido ali. Esquecido ou
deixado de propósito? Um dos antigos moradores da casa teria deixado o sofá
para algum amigo, que, naquele dia, ou no dia seguinte, passaria para pegar o
presente? O fato é que se fosse o caso a pessoa demorava e, pela primeira vez,
tive vontade de ter um carro maior e me converter ao crime...
A vontade passou. Fotografei o terreno com o
sofá, imaginando se descansariam ali espíritos de antigos moradores depois de
um alegre sabá! Ri até da inovação do diabinho anfitrião, que escolheu um sofá
amarelo para repousar os foliões dos festejos. Que animação!
Eu já me mudei muitas vezes. A casa
em que morei há mais tempo é a casa em moro hoje, uma casa de que gosto muito.
Esta casa é a casa da filha, entretanto, que nasceu aqui... Toda vez que
pensamos deixá-la, a filha protesta e a gente se cala, em respeito. Ainda que
esteja tão bem onde estou, não conheço o sentimento da filha. Meu sentimento
pela casa azul defunta também não me parece semelhante ao sentimento da filha. A
filha habita essa casa com suas travessuras, malcriações, sonhos e memórias; eu
habitei por anos a casa azul com minha imaginação.
Ao longo desta semana, vou esperar
que o sofá tenha sobrevivido à chuva do fim de semana e que seja logo resgatado
pelo amigo que imaginei acima. Não estive entre os herdeiros nem da janela, nem
desse sofá... Só tenho memória inventada e três fotografias: duas da minha casa
azul sem o teto, o que me faz cantar a “casa muito engraçada”, e uma do sofá
amarelo, que compartilho afinal aqui.
Se vou mudar de trajeto, para não
confrontar meu luto com o espírito de seguir adiante, concretizado por uma nova
edificação? Vou continuar meu caminho, levando a casa comigo, afinal quem é que
me garante que aqui, onde estou, na casa da filha, não se organiza uma rave de espíritos inquietos das antigas
edificações sufocadas, quando a gente tira férias e vai viajar, ou quando vai
dormir?
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