segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Uma chef na academia: deliciosas trocas culturais, por Ana Cláudia Spengler

Há uma semana, convidei minha ex-aluna Ana Cláudia Spengler[1] para escrever um texto para Literistórias, sobre a sua experiência de ter sido aluna da disciplina História e Cultura da alimentação, disciplina oferecida ao curso de Nutrição pelos historiadores..., sendo ela – Ana – não aluna da UFPR, mas membro da comunidade externa e chef de cozinha renomada no sul do Brasil! Meu convite não teve nada a ver com um desejo de fazer propaganda da disciplina que, por muitos anos foi ministrada pelo grande especialista da área, o saudoso Prof. Dr. Carlos Antunes, e que depois de sua morte em 2013, passou a ser oferecida por mim, requisitada por mim na rodada de encargos do DEHIS. Na verdade, depois de um semestre confuso – o 2º de 2016 -, eu fiquei com vontade de saber mais sobre a importância de acolher membros da comunidade externa à Universidade nas minhas disciplinas; em saber do impacto dos textos, da convivência e das amizades sobre pessoas que estavam há algum tempo um pouco afastadas dos bancos escolares e que encararam a volta; em saber por fim o que a querida Ana levava para casa de um semestre intenso, cheio de trocas culturais bacanas ali no nosso microcosmo, rodeado, entretanto, pelo desentendimento e pela cizânia geral. Eu agradeço muito o tempo que ela empregou na escrita desse texto que li, em lembrança do seu sorriso, do seu jeito alegre de ser; na lembrança do acolhimento que recebi (que a turma inteira recebeu!) em sua casa, ao lado do amor de sua vida, o querido André[2], em meio às delícias que suas mãos são capazes de preparar!

Então, queridos leitores, bon appétit!

Uma chef na academia: deliciosas trocas culturais

Quando me inscrevi na disciplina História e Cultura da Alimentação nunca imaginei quantos horizontes seriam abertos e nem o quanto eu seria provocada por aquelas aulas. Temas relacionados com história e gastronomia sempre estiveram presentes na minha formação e no meu trabalho, mas acabavam chamando minha atenção de outra forma; era mais um prazer, quase um passatempo – delicioso e cheio de conteúdo, não vou negar. Boa parte da bibliografia da disciplina já estava ali na minha estante, e eu já havia lido boa parte deles, com um interesse curioso, mas não o de um estudo aprofundado.

Mas, então, o que estaria fazendo uma chef de cuisine na academia? E não estou me referindo aqui à academia de ginastica, evidentemente, porque seria uma contradição!
(tenho um amigo que sempre diz que não confia em cozinheiro magro)

Na graduação (sou bacharel em Gastronomia pela Univali) tive o meu primeiro contato com a história da alimentação (isso lá no final do milênio passado). Diria que foi um despertar. Primeiro para a própria disciplina “História” em si – sou do tempo da LBD de 1971, em que o ensino de humanidades ficou em segundo plano – e, depois, pela história da alimentação, diretamente. Mas era um tempo onde os artigos eram escassos, pra não dizer inexistentes, e muitas das publicações se baseavam em lendas misturadas a conteúdos de fundamento histórico.

No início das suas aulas, sentimentos múltiplos me acompanharam. O encantamento que o aprendizado traz, a sensação de “poder dominar o mundo” que chega junto com o entendimento e a compreensão... Começamos pelo Egito antigo. Tudo era distante e, ao mesmo tempo, tão palpável, tão “óbvio” sob aquele olhar! Fiquei igual criança quando aprende a ler.

Agora vejo, porém, que meus interesses giravam em torno de uma época apenas, e um local: o início do século XIX na França. A cerimônia em torno da refeição, a etiqueta (ou a falta dela) à mesa e tantos assuntos afins que me encantavam estavam todos ali, naquele momento histórico. Talvez isso acontecesse por causa da atração que sempre tive pela gastronomia francesa, a corte onde ela era tão importante e fértil, ou, talvez, pela oferta de publicações narrando esse período – ou, mais provavelmente, uma junção dos dois fatores.

Assim, paralelamente aos textos de “leitura obrigatória” para nossos encontros, revisitei as biografias e obras dos meus grandes ídolos – Carême, Brillat-Savarin, Grimod de la Reynière – agora interessada na História por trás das histórias. Ah, como foi esclarecedor reler meus preferidos sob a ótica do historiador! Foi um semestre e tanto! Não consegui acompanhar tudo... a vida pulsante batia na porta (e na cara) a cada evento, a cada treinamento, a cada preparo. E eu ali, querendo ler mais, descobrir mais...

Que sufoco! Cheguei a pensar que essa “vida dupla” era impossível. Perdi muitas aulas – que aconteciam às sextas-feiras, dia de ouro dos eventos – e sofri um pouco até aceitar que eu não precisava aprender tudo de uma vez. Nessa corrida contra o tempo, querendo abraçar o mundo, me via sem tempo de ler e comprando mais livros, baixando mais arquivos com textos e tentando de todas as formar “comer” todas aquelas informações.

E agora? Passada a angústia da impotência (conteúdo X tempo), digerida essa experiência, penso mais em como o conhecimento dos hábitos antigos e a riqueza da diversidade na alimentação dos diferentes povos e épocas nos fazem refletir sobre a nossa relação com a comida – que é a essência da gastronomia.

Percebi que, do ponto de vista da história da cultura, a atividade cotidiana em cada época é tão importante quanto os grandes eventos, porque nos aproxima do chamado “espírito do tempo” por meio do conhecimento da vida das pessoas comuns. Nesse contexto não é difícil imaginar a importância que a gastronomia tem para a história da cultura, sendo um elemento fundamental da cultura dos povos. Assim, fomos agraciados com uma quantidade imensa de publicações acerca do assunto. 

Diante de tantos assuntos interligados e tantas descobertas fundamentadas e estudadas, vejo um grande campo de pesquisa onde historiador e gastrônomo podem colaborar, unindo conhecimentos técnicos de cozinha com a pesquisa e interpretação das fontes, documentos, receitas, ingredientes, utensílios.

Por outro lado, nos dias de hoje, em que as pessoas almoçam fast food e “jantam no sofá”, todo empenho em trazer toda a nossa atenção para o ato de comer nos ajuda a restabelecer a importância dos hábitos à mesa no desenvolvimento humano. Por esse motivo, considero que a gastronomia tem seu lugar no rol das disciplinas essenciais ao progresso da sociedade e não simplesmente um capricho da elite.

Ana Cláudia Spengler

Detalhezinho: Quem levou Ana Spengler para a UFPR foi Bruna Michelin, minha ex-aluna dos tempos de Escola Palmares. Na época, éramos meninas: ela literalmente; eu uma menina grande... rsrs Quem tem alunos fiéis não morre pagão! Obrigada, Bru!

Ana! Não preciso escrever mais nada a respeito dessa imagem tão linda.


[1] Para conhecer mais o trabalho de Ana Spengler:
Todo mundo vai ficar com água na boca!!!!!
Para conhecer mais o pensamento de Ana sobre a alimentação e gastronomia no presente: https://www.youtube.com/watch?v=-ts0X52hBlk&t=159s
[2] Prof. Dr. André Ricardo de Souza (UNESPAR – Bacharelado e Licenciatura em Música e Teatro).

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