Há pessoas que queremos imortais;
personagens também. É claro que, no caso dos personagens, sempre podemos voltar
as páginas e experimentar ser Domhnall
Gleeson de Questão de tempo (About
Time, 2013). Mas quando
o personagem amado morre bem no meio da diegese, a gente vive um luto de leitor:
sabe que ele ou ela se foi, que vamos terminar o livro sem a sua presença e que
sua vida ficou para trás. Nós
prosseguimos com a memória das palavras que disse, das coisas que fez, de quem
amou... Um dia, voltamos à estante de casa para lê-lo como quem recorre ao
álbum de família, matamos saudades. Mas no momento em que o personagem é
assassinato pelo autor, nós nos perguntamos: o que fazer?
Em O caminho de Guermantes, o narrador
perdeu a sua avó e nós, a nossa. Foi com essa avó que Marcel saiu de casa pela
primeira vez. No segundo volume (À Sombra
das raparigas em flor), foi para o balneário de Balbec sem os pais. Alguém
pode me dizer que ir à praia com a avó não é bem uma independência... Mas eu
vou precisar recomendar (com muito gosto!) a leitura do volume; vou precisar
evocar o incrível sofrimento da criança que esperava com furor o beijo da mãe
para adormecer, no primeiro volume (No
Caminho de Swann); os problemas de saúde, que certamente provocaram uma
proteção e vigilância maiores e a cumplicidade com a avó. Só em sua companhia o
narrador protagonista pode suportar a certeza: “Pela vez primeira tive a
sensação de que minha mãe podia viver sem mim, dedicada a outra coisa, com
outra vida diferente” (ASRF, p.200). A
avó percebe o dolorido dessa descoberta e, graças à sua sensibilidade, eu –
Marcella, xará desse narrador – descobri minha própria afeição por Madame de
Sévigné[1]! Em
Balbec, o quarto contíguo e a possibilidade das batidinhas nas finas paredes
antes de dormir garantem o sono de Marcel.
Se
em À Sombra das raparigas em flor, o
protagonista experimenta a liberdade, ainda que tutelado pela avó; em O Caminho de Guermantes dá passos mais
ousados para a sua construção como homem. Alguns desses passos são cheios de
equívocos, hesitações, cenas ridículas..., mas quem nunca? Um sinal de ruptura
com a tutela se dá na viagem que Marcel faz para visitar o amigo Saint-Loup,
que está em manobra. É um mundo de militares, de charutos, de bebidas, de
conversas que fascinam o narrador! Em uma manhã, Saint-Loup conta a Marcel que
escrevera à avó do narrador para dar notícias do neto; uma ligação telefônica é
feita; a consciência da passagem do tempo o atravessa na volta: “’como
envelheceu!’, eis que pela primeira vez e tão só por um instante, pois ela
desapareceu logo, avistei no canapé, congestionada, pesada e vulgar, doente,
cismando, a passear acima de um livro uns olhos, um olhar um pouco extraviado,
a uma velha consumida que eu não conhecia” (p. 127). Começava ali a nossa
despedida.
A
avó do narrador não morre subitamente, nós a lemos morrer. Lemos seu abatimento, acompanhamos seu desconforto, o
susto do seu ataque e o que me comoveu foi a maneira como é narrada a sua
debilitação progressiva. Matar uma personagem tão importante, pela qual o
narrador tem tanto apreço e sou capaz de assegurar que o autor poderia imaginar
que os leitores também teriam, não é uma coisa fácil. É preciso ser genial.
Semana
passada, publiquei uma coleção de fragmentos impressionantes em que sobressai
uma sinceridade sem desejo de agradar (para empregar eufemismo). Nas sessões do
clube do livro, muitas vezes, paramos para ler uns para os outros trechos que
nos encantaram. Está claro para nós que estamos diante um grande texto,
extraordinário, e eu fico feliz que sejam 7 volumes! Acho até que foi/é pouco,
pois um dia vou ter de lidar com a verdade de que vamos terminar. O que me
consola nessa noite de novembro é que ainda temos 4 volumes pela frente!
A
promoção do protagonista como homem vai de encontro com a degeneração da avó,
daí vermos Marcel um pouco exasperado com o ritmo da doente. Essa realidade não
se opõe ao essencial no caso: a dignidade da personagem que morre. Ela se
manifesta na narração (quem narra não é o mesmo que vive os acontecimentos...;
o narrador protagonista os revoca) e na extraordinária coerência na
constituição dos personagens. A última cena antes da segunda parte de O Caminho de Guermantes deixa a gente
sem oxigênio: “Sorriu-me [a avó] tristemente e apertou-me a mão. Compreendera
que era inútil ocultar-me o que eu logo havia adivinhado: que ela acabava de
ter um ataque“ (p. 280).
O
protagonista a leva rapidamente ao médico, que vaticina: “Sua avó está perdida”
(p. 287). Em seguida, conduz a avó à casa da família. Sou levada a completar
Barthes, para tantos fragmentos de discurso amoroso(!). A mesma mãe que
“soubera viver” sem o filho para que este afinal crescesse devolve àquela a
quem entregou a tutela de uma primeira liberdade a combinação rara de
reverência, respeito e amor:
·
“Não queria que minha mãe notasse muito a alteração da
fisionomia, o desvio da boca; minha preocupação era inútil: minha mãe
aproximou-se de vovó, beijou-lhe a mão como a do seu Deus, susteve-a,
carregou-a até o ascensor, com precauções infinitas em que havia, a par do medo
de mostrar-se inábil e de magoá-la, a humildade de quem se sente indigno de
tocar aquilo que conhece de mais precioso; mas não ergueu os olhos uma única
vez e não olhou para o rosto da enferma” (p. 288);
·
“- Mamãe, em breve estarás curada, é a tua filha quem o
garante.
E encerrando o seu amor mais forte, toda a sua vontade de que
sua mãe sarasse, em um beijo a quem os confiou e que acompanhou com o seu
pensamento, com todo o seu ser, até a borda dos lábios, foi depô-lo
humildemente, piedosamente, sobre a fronte adorada.” (p. 289)
Choro novamente trazendo esses trechos para cá.
Esse
Marcel Proust um dia levantou de manhã (ou não levantou, afinal escreveu
deitado boa parte do texto!) com a necessidade de matar a avó do seu
protagonista e deu-lhe uma morte de arrasar a gente, pelo que há de tão amoroso
em quase todos aqueles que cuidam da personagem, mas, sobretudo, e quero
destacar (acho a hipérbole importante no caso), pelo que conseguiu dar de
dignidade a quem morre. A doença pode nos tirar muito, tudo, mas esse grande
romancista não permitiu que sua personagem perdesse um milímetro de sua
grandeza no caminho doloroso que teve de percorrer para morrer:
“Quando minha
avó sofria assim, escorria-lhe o suor pela vasta fronte amarela, grudando-lhe
as mechas brancas e, quando supunha que não estávamos no quarto, soltava
gritos: ‘Ah! É horrível!’, mas se avistava minha mãe, logo empregava toda a sua
energia em apagar do rosto as marcas de sofrimento, ou, pelo contrário, repetia
os mesmos queixumes, acompanhando-os de explicações que davam
retrospectivamente outro sentido aos que minha mãe pudesse ter escutado:
- Ah! Minha
filha, é horrível ficar na cama com esse belo sol, quando se desejaria tanto
sair a passeio. Choro de raiva com essas prescrições de vocês.” (p. 292)
Imaginamos
a sua dor e só mesmo um personagem por quem se tem tanto respeito pode bradar
por esse “belo sol” em um momento assim!
Entre
a narração da degeneração progressiva da avó, imiscuem-se vários acontecimentos
e considerações. É com horror que lemos o misto de insensibilidade e (/ou
apenas) de despreparo com que Françoise penteia os cabelos da avó; que
recebemos a visita do (este sim!) insensível Duque de Guermantes que esperava
que a mãe do protagonista lhe fizesse sala enquanto a doente avançava sem
desvios para o fim; que lemos considerações sobre a fama dos escritores: “Por
certo acontece que unicamente depois de morto é que um escritor se torna
célebre. Mas era ainda em vida, e durante o seu lento caminho para a morte, que
ele assistia ao das suas obras para a Fama. Um autor morto é pelo menos ilustre
sem fadiga.”(p. 294). Seria esse trecho uma interferência do autor-modelo[2]?
Vejo uma ambiguidade no segundo período do trecho: a avó e Marcel Proust.
Queria
voltar àquela dignidade de morrer. A avó ficou cega no seu lento percurso para
a Fama, mas se esforçava para dar a quem entrava em seu quarto a ilusão da
plenitude do sentido da visão. Ao ouvir qualquer pequeno barulho na porta do
seu quarto, olhava sorridente na direção de quem adentrava, um olhar parado. O
narrador utiliza a expressão “calma bravura de um estoico” (p. 302) e não
economiza em quanto essa atitude foi testada na doença... Nenhum milagre,
porém, vai beneficiar a nossa avó e é com a explosão dos soluços de Françoise
que lemos afinal: “Súbito, minha avó ergueu-se a meio, fez um esforço violento,
como alguém que defende a própria vida” (p. 311). Por favor, deixem-me reescrever
isso: “como alguém que defende a própria vida”...
Os
historiadores não têm inveja dos romancistas desde que Georges Duby escreveu Guilherme Marechal[3]!
Sabemos que Duby vai até depois da evidência física na narração da morte
exemplar do cavaleiro. Sabemos que a historiografia muito se beneficiou da
Literatura no século XX para a construção da narrativa. Não sei se Duby leu
Proust, arrisco que provavelmente, mas posso estar apenas a construir novos
mitos. Todos os historiadores brasileiros leram a integralidade dos romances de
Machado de Assis? Eu li, mas tive o benefício de ter sido aluna de uma grande
especialista[4]!
Essas coisas mudam a gente. Ora, a digressão desse parágrafo que, fora do blog,
talvez fosse cortado por um bom editor, expressa a associação que fiz enquanto
lia o respeito do autor por sua personagem depois do fim:
Algumas horas depois que Françoise pôde pela última vez, e sem
maltratá-los, pentear aqueles formosos cabelos que apenas começavam a branquear
e que até então haviam parecido de menos idade que ela. Mas agora, pelo
contrário, só eles é que impunham a coroa da velhice sobre o rosto outra vez
moço de onde haviam desaparecido as rugas, as contrações, os empastamentos, as
tensões, as relaxações que, desde tantos anos, lhe vinham acrescentando o
sofrimento. Como nos longes tempos em que seus pais lhe haviam escolhido um
esposo, tinha ela as feições delicadamente traçadas pela pureza e a submissão,
as faces brilhantes de uma casta esperança, de um sonho de felicidade, mesmo de
uma inocente alegria, que os anos tinham pouco a pouco destruído. A vida,
retirando-se, acabava de carregar as desilusões da vida. Um sorriso parecia
pousado nos lábios de minha avó. Sobre aquele leito fúnebre, a morte, como
escultor da Idade Média, tinha-a deitado sob a aparência de menina e moça.” (p.
311)
Cabelos
jovens em um rosto sofrido; brancos, no rosto morto que remoçou; expectativa e
desilusão... E vejam que esse bruxo francês, foi ele mesmo o responsável por me
levar à Idade Média! Entre os túmulos de uma Saint-Denis literária, o autor
esculpiu um rosto de menina no esquife dessa personagem extraordinária.
Todo
mundo conhece gente que se comportou muito mal na doença ou no fim mesmo; que
magoou pessoas que amava; que se sentiu ofendido por memórias arqueologicamente
recuperadas dos seus aterros sanitários interiores ou transformadas pela
desrazão; gente que jamais pediu perdão. Algumas dessas pessoas foram
atravessadas pela perda delas mesmas, que espaço haveria para a dignidade?...
Um luxo impossível. Mas se é verdade que para Proust: “a vida verdadeira, a
vida descoberta e esclarecida, a única vida, portanto, plenamente vivida, é a
literatura”[5],
a morte dessa personagem com quem fui a Balbec pela primeira vez e li Madame de
Sévigné é um luto sentido e uma confluência inventiva para as duas avós que não
conheci.
[1] Há 2 textos no blog sobre Madame de Sévigné:
“Ah, sim, a senhora lê Madame de Sévigné” (parte 1) e “Ah, sim, a senhora lê
Madame de Sévigné” (parte 2). Procure em “Sévigné”.
[2] Categoria de presente em: ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. Tradução
de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
[3] Obra: Guilherme
Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo.
[4] Profa. Dra. Marta de Senna, grande amiga e
grande mestra.
[5] BORREL, Anne, NAUDIN, Jean-Bernard,
SENDERENS, Alain. À mesa com Proust. Tradução
de Ana Luiza Borges; Fernando Py; Maria Cecília d’Egmont. Rio de Janeiro:
Sextante, 2013. p. 11.
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