Em O Caminho
de Guermantes, 3º de Em busca do
tempo perdido, sobretudo na segunda metade do volume, frequentamos o meio
mofado que estraga os mais promissores talentos antes mesmo que floresçam. Ocupamos
os cantos dos salões, em jantares povoados por conversas vazias em que até os
mais interessantes escritores são citados em suas páginas menores... Mas em
meio a tudo sobressai uma sinceridade
que merece atenção:
· Sobre quando as comparações arrasam o que é “excepcional”: “O
espírito dos Guermantes (...) era uma reputação como as salsichas de Tours ou
os biscoitos de Reims” (p. 411).
·
Sobre nada que preste: “Se
naquele salão haviam ficado enterradas para sempre tantas ambições
intelectuais, e tantos nobres esforços, das suas cinzas, pelo menos, havia
nascido a mais rara floração do mundanismo”( p. 413).
·
Sobre ser sincero com surpresa: “Pouco
interesse tinha essa frase de Bloch, mas eu a recordava como prova de que às
vezes na vida, ante o choque de uma emoção excepcional, nós dizemos o que
pensamos” (p. 453).
·
Sobre ser extemporâneo ou culpado mesmo: “É
verdade que se fazem às vezes para os mortos coisas que não se fariam para os
vivos” (p. 454).
·
Sobre arrebentar um elogio...: “- Que
deliciosa criatura era ela...
- Sim, meio
louca, um pouco insensata, mas era uma boa mulher, uma louca muito amável; só
não compreendi jamais por que nunca havia ela comprado uma dentadura que se
mantivesse firme....” (p. 456).
·
Sobre não saber do que o outro está falando e
se entregar: “A princesa de Parma, que ignorava até o nome do
pintor, fez violentos gestos de cabeça e sorriu com ardor, a fim de manifestar
a sua admiração por esse quadro. Mas a intensidade de sua mímica não conseguiu
substituir essa luz que permanece ausente de nossos olhos enquanto não sabemos
de que nos querem falar” (p. 466).
·
Sobre prometer e não cumprir: “Eu tinha
imaginado para o senhor coisas infinitamente sedutoras, que me guardara de
revelar-lhe” (p. 498).
·
Sobre motivação: “É
inaudita a fúria das pessoas de uma religião em estudar a dos outros” (p. 514).
·
Sobre os Guermantes e muitos mais... por Swann: “Primeiro
porque no fundo toda essa gente é anti-semita” (p. 519).
·
Sobre não ter nada na cabeça: “Sempre é
preciso que tenham uma opinião sobre tudo. Então, como não têm nenhuma, passam
a primeira parte da vida a perguntar as nossas, e a segunda a no-las resservir”
(p. 524).
·
Sobre ser cínico ou sem noção: “Há
noites em que a gente preferia morrer! É verdade que morrer talvez seja igualmente
aborrecido, pois não se sabe o que é” (p. 525).
·
Sobre o desencontro conjugal: “ – Mas
onde vão meter uma tetéia [fotografia] desse tamanho?
- No meu
quarto; quero tê-la diante de meus olhos.
- Ah, como
queira; se fica no seu quarto, tenho a chance de não vê-la nunca” (p.531).
·
Sobre ser humano na aparência: “Colocada
pela primeira vez na vida entre dois deveres tão diferentes como subir ao carro
para ir jantar fora e testemunhar piedade a um homem que vai morrer, não
encontrava nada no código das conveniências que lhe indicasse a jurisprudência
a seguir e, não sabendo a qual dar preferência, julgou que deveria fingir que
não acreditava na segunda alternativa, obedecendo assim à primeira, que
demandava naquele momento menos esforço” (p. 532).
Se alguém me perguntar qual dessas sinceridades
obtusas é a minha favorita, eu devo confessar que espero que, em Sodoma e Gomorra, o Barão de Charlus
cumpra as suas promessas...rsrsrs Mas O
Caminho de Guermantes é muito mais que essa coleção chocante de franquezas.
É o volume que narra uma perda muito sentida pelos leitores. Fica para a semana
que vem.
Que maravilha essa coleção que vc fez de citações. E que foda essa parte final, né? Beijos, Rapha.
ResponderExcluirDemais! Obrigada pela leitura. Beijão, M.
ResponderExcluirQuando vejo você comentar com propriedade toda esta beleza, tenho vontade de chorar pensando em quem fazia Proust parecer inacessível para a maioria das pessoas e que vivia cochichando como se fosse um tesouro que ninguém pudesse desfrutar ou partilhar.
ResponderExcluirQue maravilha essas sinceridades escolhidas por você, pessoalmente me encanta a sinceridade! São maravilhosas e pretendo cita-las. Obrigada, professora Marcella!
Querida, no clube do livro em que lemos Proust, estamos todos no mesmo barco: entre aprendizes e encantados! Obrigada por sua leitura e carinho. Muitas saudades!
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