Esses tempos pascais me remetem a
uma dupla de que gosto muito nos evangelhos, trata-se das irmãs Marta e Maria.
Lá estão elas no Evangelho de Lucas, capítulo 10, versículos de 38 a 42:
E aconteceu que, indo em viagem,
[Jesus] entrou em uma certa aldeia; e uma mulher, por nome Marta, o recebeu em
sua casa. E esta tinha uma irmã, chamada Maria, a qual sentada aos pés do
Senhor, ouvia a sua palavra.
Eu as reconheço no Evangelho de
João (11, 1-46), são as irmãs de Lázaro, que choram a sua doença, a sua morte e
mandam chamar Jesus, pois aquele que ele amava estava enfermo; logo depois o
evangelista corrige que Jesus amava os três irmãos. Ele também nos lembra de
que Maria era aquela que “ungiu o Senhor com bálsamo e lhe enxugou os pés com
os seus cabelos” (Jo, 11, 2). Ora, no evangelho de João fica mais claro,
portanto, porque passando por uma aldeia qualquer, Jesus se digna a ser
recebido na casa justamente de Marta e Maria. Elas são suas amigas.
Retorno ao evangelho sinóptico. Na
casa das irmãs, Jesus é chamado a opinar sobre um assunto doméstico e isso para
mim é o encanto do quadro. O Evangelho de João certamente exibe “vigorosa
originalidade”, tanto do ponto de vista da apresentação dos acontecimentos,
quando da inspiração (SIMON, BENOIT. Judaísmo
e Cristianismo antigo – de Antíoco Epifânio até Constantino. São Paulo:
EDUSP, 1987. p.85), mas estou interessada mesmo na cena doméstica narrada em
Lucas. Muita gente conhece o problema: a chegada de Jesus distrai Maria, que
fica ao pé do amigo ouvindo as suas palavras. Entendamos: trata-se de um homem
interessante e com um bom papo! Marta, entretanto, está atarefada e, pior,
sobrecarregada, afinal Maria não mais a ajudava. Manifestando total intimidade
com Jesus, Marta pede a sua intercessão, não sem antes sutilmente apontar
aquela disparidade e até provocar, se a situação não o incomodava a ele!?! É
uma cobrança entre pessoas que podem dizer tudo umas às outras. Marta recebe um
amigo, pois bem, mas não esquece as suas obrigações. Maria, por outro lado,
acha que a visita era motivo para interromper a rotina e “jogar conversa fora”.
Vejo Marta com vassouras, panos, comida que ameaça queimar e Maria entregue à
doçura e ao privilégio de receber na sua casa um homem em quem podia confiar.
Lázaro não está em cena, as mulheres estão sozinhas com um homem que não é de
sua família.
O que faz o amigo? Aconselha!
Aconselha Marta, que está cansada e inquieta, a priorizar o que realmente
interessa. Talvez Jesus quisesse a presença e a atenção de Marta também! Na
entrega de Maria, todavia, no seu desejo de não controlar tudo, ela teria
ficado com a melhor parte.
Esses pares complementares, do
dever e do prazer, são tão explorados que qualquer um de nós preencheria a sua
própria lista com lembranças excelentes! Parece que, em diferentes contextos e
segundo outras mais diversas necessidades, temos nos dividido entre a vontade
de largar as vassouras e a necessidade de tirar o pó dos móveis...
Eu imagino muitas reações de Marta depois que
Jesus endossou o comportamento de Maria: imagino Marta virando os olhos,
malcriada; desviando o rosto, enquanto Jesus e Maria riem baixinho; imagino Jesus
sacudindo de leve o braço da amiga atarefada, conduzindo-a à roda da conversa;
imagino Maria pegando o pano da mão da preocupada irmã e dizendo: depois a gente continua, juntas...
Imagino coisas de muita cumplicidade e esta cena tem a ver com prazer e dever,
como apontei, mas tem mais a ver com isso: com confiança e liberdade. Confiança
no juízo do outro e na entrega; liberdade para falar e para escolher.
Eu imagino coisas nessa cena porque o narrador me dá a chance.
Ele se atém ao essencial e o essencial é o drama, ou seja, a ação. Todos os
dados de vassouras, panos e panelas são meus. Foi João que nos contou que a
casa dos irmãos ficava em Betânia. Nem isso o narrador de Lucas nos dá! Também
não sabemos o que fala Jesus e que desperta tanto interesse em Maria. Marta é
mesmo a senhora da cena, da casa... Confronta Jesus, provoca e pede ajuda. Foi
no duplo vocativo de Jesus: “Marta, Marta, tu afadigas-te...” que vi Jesus
menear a cabeça, mas só eu vi. Quando ele afirma que “uma só coisa é
necessária”, também não explica. Qual seria a “melhor parte” escolhida por
Maria? Jesus ainda afirma que esta não lhe seria tirada. O fragmento acaba. São
cinco versículos.
Essa atenção ao essencial e a ausência de exteriorização me
lembram muito o capítulo “A cicatriz de Ulisses” de Auerbach (Mímesis). A simplicidade do quadro, a
falta de explicações por parte de Jesus, o silêncio de Maria (!) e o de Marta
ao final sempre me encantam e me despertam. Sei que a ressurreição de Lázaro é
monumental, é uma porta escancarada! Mas eu vejo a casa de Maria e Marta por
uma nesga. Por esse entreaberto, sou convidada pelo narrador de Lucas a testemunhar
um duelo verbal, uma reivindicação e a apreciar a confiança, a liberdade e o mistério.
Jesus afirma que muita coisa
inquietava Marta. Outra vez não alude a especificidades. Teria Marta problemas
financeiros? Onde é que andava Lázaro, que deixara as irmãs sozinhas? Nada...
Fica claro, porém, que Jesus sabe de quais coisas se tratava. Eu vejo muita amizade nessa cena, em que
Jesus chega sem avisar (não parece precisar), desvia a atenção de uma amiga,
exaspera a outra e dá razão a quem esquece a obrigação! Teria Jesus, ao final
do dia, ungido com bálsamo as mãos cansadas da sua inquieta amiga Marta? Gosto de
pensar que sim.
Jan Vermeer - "Cristo em casa de Maria e Marta", séc. XVII.