Nos últimos 4 dias, estive com a
biografia do neurologista Oliver Sacks, morto ano passado, por todo lado. É
claro que as férias tendem a deixar as pessoas com mais tempo para ler “o que
quiserem”, mas a verdade é que a rapidez e a moleza antes do final (como
sobreviver depois da última página? – drama do leitor compulsivo) são resultado
de um fato simples: eu gostei muito do livro. Para quem não se lembra de Sacks(!),
ele é o autor da obra que inspirou o filme Tempo
de Despertar (1990), estrelado por Robert De
Niro e Robin Williams, e mais perto de nós, brasileiros, aparece no documentário
Janela da Alma (2001), de João Jardim
e Walter Carvalho, falando rapidamente sobre a visão e o sentimento.
Antes de
prosseguir sobre o livro, eu reflito com ele, mas de forma muito breve, sobre a
importância da biografia entre meus interesses de leitura. Meu pai sempre foi
um leitor voraz de biografias e parte das coisas que sei sobre velhos astros e
estrelas de Hollywood são resultado direto das confidências de leitura dele.
Mas, na época em que ele estava seduzido pelas biografias de John Huston,
Franco Zefirelli e Rock Hudson, eu não tive qualquer vontade de seguir essas
narrativas. Lembro-me do quanto ele se esforçou também para que eu lesse a Autobiografia de um Iogue de Paramahansa
Yogananda... Eu o cozinhei uma vida! Pois bem, foi só quando eu me tornei historiadora
que o interesse pela biografia gerou leitura e pesquisa de fato. Eu já dei dois
cursos sobre o tema no PGHIS-UFPR e os dois com um público muito ativo. Tive a
alegria de acolher alunos de todas as linhas de pesquisa de meu Programa e
interessados da comunidade, a quem costumo sempre aceitar. Agora, enquanto
escrevo, penso que folhear as obras que estudei com os alunos nessas duas
oportunidades, bem como rever as experiências que tive com eles, como a da
escrita biográfica de cada um, no segundo curso, podem bem dar um post
específico. Fica para depois. Mas considerei importante aqui, nesse momento em
que palpito pela primeira vez no blog sobre uma biografia, informar sobre meu
interesse pelo gênero biográfico.
Vi a biografia de Oliver Sacks em
meu passeio pela Livraria Ateneu em Buenos Aires, no final do ano passado. Pertinho,
a biografia de Paul Ricoeur, escrita por François Dosse! Eu tinha o Conde Lucanor nas mãos, 300 pesos e
nenhum cartão de crédito, esquecido de propósito no hotel, para não fazer
loucuras no Ateneu (o Conde Lucanor
foi 232 pesos). De volta ao Brasil, descobri que já existia tradução em
português da autobiografia de Sacks. Alguém pode me perguntar se, além do meu
interesse pelo gênero, eu tinha ficado fascinada por Tempo de Despertar. Na verdade, não. São as neurociências que me
fascinam e, mesmo que eu compreenda muito pouco delas, eu as espreito e as pico
com minha leitura ilegítima e anárquica.
Sacks é um ótimo narrador e parte
do meu gosto pela sua autobiografia talvez se deva à importância que a
narrativa teve para ele e que tem para mim. No fim do texto (e olha eu, sempre
dando spoilers!), como balanço da vida, ele afirma: “De todo modo, sou um
narrador, um contador de histórias. Desconfio que o gosto pela narrativa é uma
disposição humana universal, que acompanha as nossas capacidades de linguagem,
de consciência de si e de memória autobiográfica” (p. 329). Como não amar isso?
O texto é linear de um jeito bom,
pois não sonega ao leitor o desfecho de um acontecimento só porque ainda estamos
em 1955! O narrador sabe que nós não ignoramos que, enquanto ele escreve, as
experiências vividas tiveram de ser trazidas à tona, em esforço de evocação.
Ora, as imagens que trazemos de volta dos “palácios da memória” (Livro X das Confissões de Agostinho) assomam outro
eu, ou seja, um eu diferente daquele que fomos para a experiência em si. Isto
significa que o vivido é também mediado pela interpretação e pela emoção da
pessoa que somos quando empreendemos a busca pela lembrança. Assim, quando
Sacks traz um velho amigo ao texto, mesmo que estejamos em plena década de 80,
lemos a saudade do narrador no tempo da narração.
Sacks morreu com 82 anos, mas a sua
biografia cobre 60 anos de vida. O autor já havia se dedicado a uma memória da
infância e, em Sempre em movimento,
fala da sua prática médica, voltada à dedicação aos seus pacientes e à pesquisa,
nessa ordem, ainda que estejam imbricadas. Trata-se, então, de uma trajetória profissional
ou intelectual? Não, porque Sacks não se isola no texto e nós o vemos nadando,
entregando-se às drogas, quebrando a perna na Noruega e percorrendo um caminho
muito difícil de aceitação das próprias necessidades afetivas e sexuais. Vemo-lo
perdido de amor não correspondido; aficionado por motocicletas e
halterofilismo; surpreso por se ver apaixonado aos 77 anos; fazendo anotações
em concertos; honesto e sofrido na revelação do mal-estar quando o assunto é o irmão
esquizofrênico.
Há dois aspectos que eu queria
destacar no livro. O primeiro deles é o valor das trocas afetivas e
científicas. Para uma autora que acabou de escrever um livro em que um dos
capítulos versa sobre a amizade, vejo uma grande sintonia entre o que escrevei
e a evidência de que Sacks cresceu em todos os sentidos nas incríveis trocas
que teve a chance de fazer com quem amou desse jeito tão verdadeiro de amar. Eu
estou prestes a completar 42 anos e admiro/invejo a amizade de 60 anos entre
Sacks e Eric Korn, por exemplo. Uma intensa troca de cartas, numerosas viagens,
horas de telefonemas... só confirmam a verdade, incômoda para os que propalam a
validade do exclusivo silêncio de seus gabinetes, de que o conhecimento é
dialógico e que a descoberta, vivida a dois, a três ou sei lá a quantos mais, é
tanto mais ousada, quanto mais animada!
Meus alunos sabem que me reconheço
com alma de monja que não fez votos de castidade, então gosto do silêncio da
clausura, mas é tão bom confiar a dúvida ao outro e ouvir o que ele tem a
dizer! As minhas pesquisas se beneficiam muito de grandes interlocutores que,
não por acaso, são grandes amigos! Vejo-me, entretanto, em um mundo barulhento
que despreza o diálogo. Como isso é possível? Simplesmente porque parece que
muitos de nós não estão interessados em ouvir.
Oliver Sacks falou muito e não
ouviu menos. Leu os outros, o que elevo como virtude em um mundo em que muitos
de nós ignoram pesquisas que são feitas tão ao nosso lado, com máximo rigor.
Sacks importou-se com as críticas que recebeu, elas o abalaram e, embora eu
tenha ficado comovida com isso e conheça na carne a sensação da incompreensão,
seja ela legítima ou maldosa, acho que a arrogância do “dar de ombros” esconde
mesmo uma profunda insegurança.
Minha comoção particular se deveu
ao fato de que boa parte das críticas negativas que a obra de Sacks recebeu
teve a ver com a alegação de menor “cientificidade” dos seus textos. Ora, basta
um pesquisador não desejar falar exclusivamente com o seu campo para receber a
mesma imputação. O teor das trocas prova, porém, o quanto a obra de Sacks
representou um papel importante na história das neurociências entre o final do
século XX e o alvorecer do XXI. Até quando o autor reconhece, e nisso também é
exemplar, a vanguarda e a precisão das terias de outro, como o Darwinismo
neural de Edelman, vemos o quanto Sacks avançou junto, na pesquisa e no
cuidado.
Outro aspecto que mereceu minha
atenção especial foi o apreço do autor, ao longo da sua vida e para espanto de
muitos, pela História da Ciência. Os historiadores vão amar a autobiografia... Sacks
costumava sugerir aos seus alunos a leitura de tratados dos séculos XVIII e
XIX. Ele mesmo era um leitor voraz das descrições científicas do passado. A
leitura do apreço de Sacks me lembrou da pergunta de Paolo Rossi, em O Passado, a memória, o esquecimento. Seis
ensaios da história das ideias (São Paulo: Ed. da UNESP, 2010):
(...) seria muito difícil
pensar num currículo de estudantes de letras modernas que excluísse a leitura
direta de Dante, Ariosto ou Shakespeare. Por que, ao contrário, nos parece
óbvio e natural que um graduando em física ou biologia possa deixar de ler
diretamente os Principia de Newton ou
as memórias de Einstein ou A origem das
espécies de Darwin? E ainda: por que nos parece óbvio e natural que um
estudante de física ou de biologia – antes de começar a desenvolver pesquisas
autônomas (sempre inseridas num projeto mais amplo) – leia e estude somente páginas que foram escritas apenas para serem lidas por estudantes
de física, genética ou fisiologia? (p. 169)
Rossi fala em seguida que os
especialistas dessas áreas muitas vezes tendem a esquecer “o passado do próprio
saber” (p.171). A questão é que a evocação desse passado não deveria servir ao
anedotário científico, mas à contextualização dos porquês e das condições dos
saberes. Nessas duas direções, a sugestão de Oliver Sacks aos seus alunos vai
ao encontro da provocação de Rossi de maneira muito significativa. Mas Sacks
não quer “responder” aos historiadores, ele tem apreço pela cultura, o que se
manifestou em suas paixões pessoais, como pelo poeta Richard Selig; na eleição
de textos literários; na elaboração de seus próprios textos; na escolha de
compositores e de outros artistas que conviveram muito bem com a leitura das
revistas científicas do seu campo de trabalho.
Sempre
em movimento de Oliver Sacks é um ótimo presente para dar às
pessoas com quem adoramos conversar, com quem temos muito em comum. É um bom
presente também para os que têm interesse pela área médica ou os que já atuam
no campo. É um convite a não dissociar a prática da pesquisa. Sacks dá inúmeros
exemplos pessoais dessa impossibilidade em que muitos crêem...
A edição tem lindas fotografias, em
que o autor pode ser visto com Robin Willians; ou estabelecendo recorde de
agachamento completo em 1961; ou em cima de sua BMW R60 (minha favorita!);
acompanhado de sua assistente e amiga Kate Edgar; sorridente depois de um
mergulho em Curaçau; com seu último amor... Enquanto fazia tudo isso, Sacks
achou tempo para escrever inúmeros artigos, resenhas, 13 livros e, sobretudo,
amar seus pacientes. Lendo a autobiografia, senti aquela inveja temporal que sinto sempre dos que conviveram com quem
admiro... Adoraria ter sido amiga de escola de Oliver Sacks!
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