Em 2015, escrevi um conto que foi publicado em uma revista e será republicado este ano, em livro. Há 9 anos, eu não poderia imaginar o caminho que esse texto/eu percorreria. No dia 23/7/24, li um fragmento de Correio da roça (1913), de Júlia Lopes de Almeida, com minha orientanda Milena Chagas, fragmento que tem tudo a ver com o conto! Essas sintonias que encontro com Júlia me surpreendem e encantam desde que a sua obra entrou em minha vida, em 2020.
Correio
da roça é um romance epistolar. Um grupo de mulheres troca cartas, de
uma fazenda, chamada Remanso, para a cidade do Rio de Janeiro; da cidade para a
fazenda. Uma grande amizade mantém essa troca, de aprendizagem mútua, de
crescente cumplicidade.
Eis o fragmento da carta 13.
(...)
Como esta carta é toda
em resposta à tua última, aí te mando os óculos, os óculos dos fatídicos 40
anos, óculos de vista cansada, que bem se aplicou durante a mocidade!
Não forces a vista,
que mais depressa estragarás os teus ainda belos olhos castanhos. Não os
desprezes nas tuas leituras à noite, nem quando durante o dia cerzires na tua
sala de costura as meias da família e a tua roupa branca. É uma coisa a que nos
dedicamos pouco, essa de consertar roupa branca, e de interesse capital,
entretanto! Cordelia não deve esquecer essa ciência, na sua aula para as
meninas da colônia. Mas, voltando aos óculos, não sei se eles te servirão: têm
sido meus companheiros íntimos, digo íntimos porque também, como tu, ainda
tenho um resto de faceirice que me obriga a ocultar de olhos estranhos o
aparelho que ponho às vezes nos meus... e já que chegamos a esta parte
sentimental, deixa-me dizer-te tudo! Também, como tu, tenho as minhas
melancolias sem causa determinada, melancolias infantis, que me alvoroçam e me
fazem cismar! Como o teu, o meu coração é uma urna de saudades indefiníveis e
de ansiedades irrealizáveis.
Ainda tu podes abrir a
tua janela e mostrar o teu rosto sem máscara às estrelas piedosas. Eu não. Os
astros do nosso céu rir-se-iam dos meus devaneios dolorosos e das minhas
interrogações; e cada vez, a qualquer hora que numa expansão silenciosa eu
volvesse o meu olhar para o céu, não faltaria quem do fundo da treva, dentre as
pedras das calçadas ou da caliça das paredes vizinhas, escarnecesse do meu
idílio... Na cidade é preciso fingir, fingir a todos os momentos, dentro de
casa como na rua, de dia como de noite. E a exigência que faz de nós a
sociedade, que incorre em todas as faltas, mas não perdoa nenhuma... Tu ainda
tens a consolação das tuas filhas, que te engrinaldam de risos e carinhos a
existência. E eu? O meu único filho anda agora pelo Egito, consultando
esfinges, e o meu marido vive, como sabes, completamente desinteressado da
minha pessoa. E é por tudo isso que eu suspiro pela velhice, a velhice
absoluta, a doce velhice consoladora e profícua, porque para mim, como para ti,
que tens mais espíritodo que eu e maior coração, velhice não quer dizer
esterilidade nem abandono. A mulher sã de corpo e alma, chegada essa hora que
intimida os fracos, encontra na experiência adquirida nos seus anos de mocidade
e de idade madura, poder para executar grandes obras de piedade e de
regeneração. Há sempre muito que fazer na vida e a nossa última quadra não é
com certeza a menos produtora. Para isso, minha Maria, é preciso ter coragem e
não dissipar inutilmente as forças afetivas da nossa alma... Guardemos sempre
um pouco das nossas energias para o que há de vir. Confesso-te as minhas
esperanças, para dar-te ânimo, como te confessei as minhas desilusões, para te
demonstrar que me tens sempre por companheira fiel na jornada da vida.
Resta-nos a nós duas uma grande felicidade: temos sabido ser amigas uma da
outra através de toda a existência, sem a menor sombra de traição, e isto entre
mulheres é tanto mais raro, quanto mais lindo.
Prometo-te ser mais
prática na minha primeira carta. Teu afilhado Eduardo Jorge trouxe-me, de um
passeio qualquer que fez ao campo, sementes de cássia e de flamboyant, que aí
te remeto para o viveiro do Remanso. Nem só de pão vive o homem. Planta árvores
de flores e abraça Cecilia, que tão bem me compreendeu e a quem tanto quero.
Fernanda
ALMEIDA, Júlia Lopes. Correio da roça. Rio de Janeiro: Janela
Amarela Editora (Edição do Kindle), 2022. pp. 54 a 56.
Há um conjunto de delicadezas que
se espalham pela página. E eu fiquei profundamente tocada pela forma como a
Fernanda de Júlia enfrenta o tempo e ajuda sua amiga Maria a enfrentá-lo.
Antes, algumas confissões. Foi uma
glória quando precisei de óculos de leitura! Três anos antes, meu oftalmologista
me disse que já eram necessários, mas que ele queria “segurar”, para não me
deixar dependente. Respeitei sem saber bem por quê. Mas quando eu não conseguia
mais enxergar direito a comida no meu prato à mesa – vejam, nem foi a leitura!
–, eu pedi. Na verdade, eu acho que os braços já obedeciam aos olhos no quesito
distanciamento da página, mas o prato sobre a mesa ficava imóvel... Fiz óculos
de aros pretos, nada discretos, tirei um número infinito de fotos, fiz
palestras online ostentando, combinei
esses óculos com batons de todas as cores da minha pobre coleção. Um dia, achei
que um par era pouco, fiz um segundo e comprei na França um terceiro, que uso
enquanto escrevo, amarelos, redondos, lindos!
Eu e as personagens de Júlia
precisamos de óculos de leitura no mesmo momento, pelos 40. Quando fiz
sorridente meus óculos, eu ouvi amigas alegando algo como uma ribanceira abaixo... Rebati: – Que bom estar de óculos para enfrentar a ribanceira!
Voltando à Júlia e às suas
personagens, o trecho que copiei é todo sobre o envelhecimento e os óculos são
um sinal claro disso. No meu conto de 2015, a ideia também é essa, muito embora
eu tenha querido sobrepor temporalidades e fazer, não a portadora dos óculos,
mas a sua própria mãe experimentar vê-los no rosto da filha que passou a
precisar deles. A personagem Fernanda de Júlia devolve apoio e uma percepção
positiva do passar do tempo à Maria. Sem positividade tóxica, felizmente!
Afinal, ela faz confissões muito tristes. É uma mulher solitária: tem um filho
distante, um marido indiferente. Mas há uma grande ousadia aqui:
A
mulher sã de corpo e alma, chegada essa hora que intimida os fracos, encontra
na experiência adquirida nos seus anos de mocidade e de idade madura, poder
para executar grandes obras de piedade e de regeneração. Há sempre muito que
fazer na vida e a nossa última quadra não é com certeza a menos produtora.
Atenção à abertura do trecho:
Fernanda fala sobre mulheres que envelhecem com saúde. Em contexto em que
nossos velhos e velhas sopram mais velas sobre o bolo diet, mas nem sempre estão “sãos de corpo e alma”, o trecho de
Júlia pode parecer de mal gosto, mas volto a atenção à sua abertura. A
personagem não massacra ninguém. Hoje, é como se falasse para quem tem boa
genética, fez boas escolhas e escapou do imponderável (refiro-me a acidentes de
várias ordens que atravessam cuidados e genética impecável)... Ah, Júlia, saúde
para executar obras (nem falei em “grandes”), para continuar produtiva/produtivo...,
e em boa companhia!
Há uma proposta linda na sequência:
a amizade entre as mulheres. Na verdade, o livro é costurado pela amizade. Em
1913, Júlia escreveu o que tem sido repetido pelos “influenciadores da
menopausa”: é preciso cultivar amizades nessa época da vida. Imagino Júlia
sorrindo por cima dos óculos, desde antes de 1913! Quando não precisamos dos
amigos e das amigas?
Como afirmei acima, o livro é sobre
amizade e sobre como as mulheres podem apoiar umas as outras: “temos sabido ser
amigas uma da outra através de toda a existência, sem a menor sombra de
traição, e isto entre mulheres é tanto mais raro, quanto mais lindo”. Um trecho
que faz pensar. Nas primeiras cartas trocadas entre Maria e Fernanda, há um
pouco de ressentimento e desafio... A gente desconfia que essa amizade não vai
sobreviver. Maria ficara viúva e desprovida de mais recursos além de uma
fazenda decadente, vai com as filhas finamente educadas no Rio de Janeiro, para
um cenário inóspito. Está deprimida, desabafa a sua desesperança com Fernanda. Esta
vive no Rio, não foi forçada a abrir mão de nada, continua em dia com as
modistas e dá conselhos sobre como o campo é salutar! Sugere à Maria que as
filhas desta criem galinhas! Fernanda, tá de brincadeira?! Imaginem a reação de
Maria! Mas, aos poucos, Fernanda vai convencendo Maria de que ela na verdade
tem mesmo é uma crença inabalável na força das mulheres. Fernanda não recua
diante das ironias iniciais de Maria e também faz a sua parte: em vários
momentos das trocas, existem colaborações absolutamente práticas e materiais
para o sucesso de projetos que, aos poucos, nascem entre as meninas de Maria e
florescem entre elas para a transformação do Remanso. Fernanda envia mudas
numerosas para serem plantadas na fazenda, reúne material sobre agricultura,
conversa com pessoas, alonga-se em sugestões muito técnicas – que me fazem ter
certeza de que Júlia fez muita pesquisa para alimentar a troca entre as amigas[1] – e mobiliza pessoas para
ajudarem Maria e as filhas.
Tudo isso dá frutos e Maria
rejuvenesce, alegra-se. As suas filhas também trocam cartas com Fernanda, tiram
dúvidas, contam novidades, fazem encomendas. Júlia “planta” uma escola ao ar
livre no Remanso e eu fico pensando que essa ideia deve tê-la fascinado tanto
que ela voltaria ao tema três anos depois no seu livro A Árvore[2]. Imagino que Júlia leu sobre a árvore-escola em uma aldeia na
Ásia: primeiro incluiu a possibilidade no Remanso, depois informou no seu livro
miscelânea, escrito com o filho.
Tudo dá certo ao final nesse livro
e... qual é o problema? Outro dia, ouvindo um programa de entrevistas de que
gosto, em uma rádio local, ouvi um homem falando assim: é fácil ser feliz, por
isso não haveria mérito em escrever a respeito, em escrever sobre a felicidade.
Fiquei pensando que esse ser deve ter aterrissado de sua nave espacial para
surpreender os terráqueos pós-pandêmicos, que lotam os consultórios de
psiquiatras e terapeutas, com sua revelação bombástica... Que feliz! Na
verdade, as mulheres que moram no Remanso edificam a sua felicidade com
trabalho duro, depois do desespero inicial. É impressionante como
mobilizam/adaptam a sua formação para o ambiente em que foram obrigadas a
habitar. Destaco a forma como Júlia entrosa o útil e o utilitário dessa
formação.
Nas suas cartas e encomendas, Fernanda
oferece orientação, seu ombro amigo, ajuda material, logística e os seus
óculos! Fernanda acredita em Maria e em suas meninas. Maria poderia ter se
revoltado nas respostas, entretanto; poderia ter achado um absurdo as sugestões
da amiga rica que nunca sujou as mãos de terra, mas sabe palpitar. Poderia ter
achado de mau gosto sugestões e comentários. Mas soube aceitar a ajuda e os
óculos! Com eles, realizou uma revolução completa em seu modo de viver. Mas
nada foi fácil no caminho. Júlia não é boba. Aposta tudo na cumplicidade entre
as mulheres. Com um olho acompanha a palavra que escorre do papel, com o outro e
por cima dos óculos, parece sonhar um devir de aros e cores surpreendentes.
[1] Essa faceta de pesquisadora se revela em
outras obras de Júlia.
[2] Conferir: http://literistorias.blogspot.com/2020/09/158-anos-de-julia-lopes-de-almeida.html