sábado, 26 de dezembro de 2020

Um homem morreu no Natal

 Para Vilelma Pereira Passos Homem

 

 

Em todo Natal morre gente. Em 2013, meu sobrinho João Paulo morreu na madrugada de 22 e 23 de dezembro, na estrada, e o Natal daquele ano foi o mais triste de minha vida. A gente está muito acostumado a falar de nascimento, a celebrar o nascimento de um menino em condições tão adversas, mas todo dia vão embora da nossa companhia em situações/condições que poderiam ter sido evitadas pessoas que amamos e vão embora ainda outras em circunstâncias que ultrapassam (e muito) o poder que julgamos ter.

Uma pessoa muito importante na minha vida morreu no dia 24 de dezembro. Foi a primeira pessoa a escancarar o peito para eu habitar nessa cidade, quando cheguei há quase 23 anos. E eu habitei! Montei casa com piscina, instalei sofá confortável, andei descalça, de túnica leve, não penteei o cabelo, espalhei meus livros amados, minhas conversas, deitei minha cabeça no seu colo, no ombro amigo... Eu vivi em paz. Éramos diferentes... a começar pela geração! Mas como sou menina velha, eu gostava de conversar com aquele velho menino. Eram conversas muito engraçadas. Eu gostava de ouvir suas histórias aventurosas. Ele as colecionava! Dia 24, enquanto jantávamos, a memória dessas histórias foi o meu alimento verdadeiro. Cheio de sabor!

Esse homem amou muito: seus filhos, seus amigos, as mulheres, a minha família, a sua igreja, a vida. Mas, um dia, ele perdeu um grande amor e não quis mais viver. Aí todas as divindades dos céus mais diferentes entraram em acordo só para lhe dar um amor para sempre. Essa mulher também abriu seu peito para eu habitar. Tornamo-nos amigas por causa dele, mas depois não, por nossa causa!, e o que eu mais lamentei ontem, quando o corpo físico do seu homem foi encomendado, foi não ter podido abraçá-la longamente, cantar os hinos que aprenderia na hora, enxugar-lhe as lágrimas e dizer-lhe eu estou aqui para sempre e para você.

Esse homem que morreu foi meu padrinho de casamento; fiador da primeira casa que comprei na vida sem me conhecer bem – aquela casa que dá à gente de origem pobre como eu a ilusão de ter finalmente segurança...-; em sua casa escrevi praticamente minha dissertação de mestrado – afinal ou pagava a casa, ou comprava computadores... -; me diverti em festas; debati política – sem querer sair no pau -; dei tanta risada que eu acho que ele conhecia todos os centímetros do meu sorriso! Esse homem foi meu amigo sincero, o amigo que nunca me pediu nada em troca – nem visitas(!) porque compreendia a mulher ocupada -, uma pessoa em quem eu podia confiar, confiar-me.

Depois do jantar e da troca de presentes no dia 24, já havia falado com a família pelas plataformas digitais que nos permitiram ao menos trocar sorrisos (não reclamo delas por isso!), estava sentada e quase desmaiei no meio da sala. Não sei o que me deu. Assustei a minha filha... Senti uma tristeza infinita que me exigiu ficar na cama praticamente todo o dia 25. Na cama. Os mais próximos sabem que isso ou é estar dilacerada de enxaqueca ou à beira da morte. Sabe quem me tirou de lá? O amor para sempre do meu amigo! Ela me lembrou que ele talvez tivesse decidido assim para aproveitar a ceia de Natal junto às pessoas de quem ele sentia tanta saudade nos últimos tempos... Nos últimos tempos, o velho menino estava de fato mais maduro.

Mas meu amigo morreu de Covid-19. Isso não é uma informação vã. Em todo Natal morre gente, é claro. Todo dia vão embora da nossa companhia em situações/condições que poderiam ter sido evitadas pessoas que amamos, eu escrevi acima. Quando a imprudência matou meu sobrinho, ele não tinha vivido o suficiente para querer reencontrar os seus, os seus estão aqui!!, ele foi morto antes de acumular experiência para sentir saudades.

Não estou mais na cama e estou estarrecida com as imagens do despudor universal. Por todo o lado, o desprezo corrompe a nossa humanidade – não provoco quem despreza essa palavra por relacioná-la à parte de uma história, ou seja, a lê-la da mesma maneira seletiva com que já sua cultura foi lida. Eu provoco os que a usam! O desprezo nos palácios, na praia, nas festas clandestinas... o desprezo nosso à mesa, olhando na cara e bem no olho das pessoas que afirmamos amar. Palavras em banho Maria, para seres de consistência de pudim.

A vacina chegou atrasada, meu amigo. O ano fica mais pobre sem um dos meus feriados: seu aniversário! Meu sorriso perde muitos centímetros. Mas obrigada por esses anos em que morei no seu peito, em casa com piscina, sofá confortável, descalça, túnica...  minha cabeça no seu colo. Obrigada.



Para um homem que adorava cruzeiros (quantas histórias!), um barco da Clarinha. Vai com Deus, tio Heres. Tenho certeza de que até Caronte é capaz de rir na sua companhia.


3 comentários:

  1. Apesar da perda e de toda tristeza que vem com ela, que amizade linda, Marcella. Um abraço apertado em você e muito carinho nesse momento. Te aguardo em casa no pós-pandemia <3

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  2. Querida, muito obrigada por sua visita. No pós-pandemia, eu chegou aí para o café!

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  3. Essa vacina chega atrasada para todos os que já se foram. A negligência é constante, pq as pessoas ainda querem a companhia um do outro. Faz parte da gente. Ficar sem ver meus netos é desafiador. Não quero morrer e não vê-los, abraçá-los, enchê-los de carinho. E se eu não puder mais? E se mesmo sem a negligência, nos contaminarmos? Ah, essa pandemia, que nos deixa assim, tão maleáveis, tão cheios de amor. O que fazemos com esses sentimentos? Seu amigo se foi, mas deixa em vc esses questionamentos, deixou em mim. Ainda quero sentir o cheiro dos cabelos dos meus netos. Quero ouvir de perto, "amo você, vovó!".

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