sábado, 19 de dezembro de 2020

Que apego é esse? Sobre a morte dos mestres

 Para Daniel Osiecki

 

No início do mês[1], acordei com a notícia da morte de Eduardo Lourenço. Morreu velhinho, “viveu”, disse uma amiga. “Viveu”, é claro, amou, foi amado, reconhecido, convidado, bajulado, LIDO... e eu, triste (?!).  Por que tristeza, então, para uma vida que se cumpriu rica, plena? O fato é que, mesmo sem ter tido tempo para pensar a tristeza, assoberbada como sempre, eu a senti... e voltei ao sentimento no convite de meu amigo Daniel Osiecki para conversar sobre sua obra. Fui olhar os meus Lourenços e me lembrar da pessoa que fui quando eu conheci cada um deles. Felizmente, as margens dos livros me ajudaram a resgatar a “nossa relação”. Não, eu nunca apertei a mão do mestre, mas o Georges Duby já nos salvou da imprescindibilidade dessas necessidades físicas, ao dizer que se sentia discípulo de Marc Bloch porque o tinha lido. Se ele disse... Então, porque discípula, eu podia sentir tristeza e até um sentimento de injustiça, afinal, nenhum de meus mestres recebeu autorização para morrer, já aviso.

Quando a gente admira alguém, saber que essa pessoa – mesmo debilitada – vive e vive até a despeito do seu desejo de morrer em alguns casos... dá a nós uma calma egoísta de participamos à distância do milagre da existência dela. A gente abre um livro, lê um parágrafo e imagina-se respondendo a uma coisa que essa pessoa perguntou em 1978, em 1999, em 2013... e vai acumulando desejos, expectativas de encontros, porque participamos do milagre de a nossa existência nesse mundo coincidir com a presença da pessoa admirada!

Quando o Saramago morreu, já estava muito debilitado, eu fiquei arrasada e apavorada, pensando na minha Mestra e Amiga Teresa Cerdeira, amiga de Saramago. Temi que ela adoecesse; temi que adoecêssemos sem ele, sem sua presença já em cadeira de rodas...

O fato é que a morte de pessoas como José Saramago (em 2010) e Eduardo Lourenço (em 2020) – bem vividos na sua vida plena, decerto – planta em nós uma tristeza de perder a possibilidade de ler a novidade e de se atrever a continuar a respondê-los, naquele diálogo imaginado que preenche o coração dos leitores/discípulos fieis.

Acabo de reler o 1º texto de Lourenço que li em minha vida, sobre o Antero de Quental, que adoro. Eu devia ter 19 anos quando li esse texto. Trata-se de umas fotocópias tiradas de livro que pertence à minha Teresa Cerdeira, em que é nítido (por causa de sua letra linda) o comentário final: “belíssimo”. Minhas anotações se misturam às dela, conversamos nessas páginas e a Marcella que sou hoje ainda achou espaço para interpor um grifo, de repente mudo... Uma tristeza me invade nessa injustiça de não sabê-lo imortal para as dúvidas de todas as Marcellas que eu espero ser, na companhia de sua obra! Essa companhia é hoje todo o meu atrevimento.


Confira o bate-apo sobre Eduardo Lourenço em: LUSOFONIA E POLÍTICA - Marcos Pamplona conversa com Marcella Lopes Guimarães e Daniel Osiecki 

 

Do site: https://www.eduardolourenco.com/index.html



[1] 1º de dezembro de 2020.


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