Em maio deste ano, o Rascunho publicou a resenha escrita por
Miguel Sanches Neto do romance Bênção
do escritor estadunidense Kent Haruf (1943-2014). Fiquei intrigada: com a
percepção de Sanches Neto, de estar diante de algo muito diferente dos padrões
e modas hodiernas, e com o enredo do romance em si. Fui rápido ao Kindle para ver se estava disponível na
loja. Achei em inglês e tive preguiça, mas logo fui compensada por outra
tradução realizada por Sônia Moreira, do último romance do autor: Nossas noites. Li em três dias. Leria em
um, se não fossem as outras leituras de trabalho. Trata-se de um pequeno
romance.
Na resenha de Bênção, Sanches Neto escreveu: “O literário não advém daquilo que o
autor faz com a linguagem, mas do que a linguagem faz com o leitor. Este é o
caso de Bênção.” Depois de conviver
com Addie e Louis, em Nossas noites,
eu acrescentaria o poder de uma história bem contada. É verdade que os enredos
não são exatamente infinitos e que um bom número de histórias que amamos os tem
bem chinfrins, mas há uma encantatória sintonia entre nós – humanos – e as
histórias que nos são contadas por gerações que o fato de elas nos enredarem, a
despeito das firulas e modas literárias, é mais uma prova (não que
precisássemos...) de que necessitamos de narrativas e de que a nossa vida
parece mais rica quando mais uma passa a habitar as prateleiras da nossa
biblioteca íntima. A minha está mais rica depois dessa história simples: do
amor contrariado, de um casal que soma 140 anos de idade!
Um dia, Addie Moore visita Louis
Waters e lhe faz uma proposta inusitada. Os dois se conheciam há muitos anos,
não eram exatamente amigos, mas conhecidos, vizinhos de bairro. “O que você
acharia da ideia de ir à minha casa de vez em quando para dormir comigo?”.
Depois da surpresa dele, um adendo: “Não estou falando de sexo.”. Ora, do que
essa senhora estaria falando? “Estou falando de ter uma companhia para
atravessar a noite, para esquentar a cama. De nós nos deitarmos na cama juntos
e você ficar para passar a noite. As noites são a pior parte. Você não acha?”.
Ambos, viúvos, com filhos crescidos, fora de casa já há um tempo; filhos com
pouca agenda para visitá-los... Teoricamente, dois velhos livres.
O diálogo continua, ambos
compartilham a insônia e a necessidade de remédio para dormir. O que Addie
Moore propõe a Louis Waters é intimidade.
Louis interpõe um fraco pudor: “E se eu roncar?”; “Se roncar, roncou; ou vai
aprender a parar”. Para mim, tudo o que se passa a partir da proposta dessa
senhora e do confronto com o outro, a quem ela propõe uma partilha, é gigante.
O livro não entrega, mas pude vê-la pensar no assunto, escolher uma roupa, hesitar,
pentear os cabelos, andar pelo bairro, tocar a campainha... e sugerir, propor. Coragem
mora ali.
No dia seguinte, ele vai ao
barbeiro, prepara-se e telefona: “Eu gostaria de ir para a sua casa esta noite,
se a proposta ainda estiver de pé.”. É claro que está. Ele bate a porta dos
fundos, ela se admira! Ora, para quem tinha atravessado anos de convenções, a
porta dos fundos era inconcebível e ele promete que, da próxima vez, virá pela
porta da frente. Felizmente, para nós, haverá muitas próximas vezes!
Há descobertas: ele prefere
cerveja, ela vinho; ela mostra a casa, para que ele saiba onde está; ele vê
fotografias, veste o pijama... Depois da primeira noite, uma contrariedade, a
vida é feita de equívocos... Ele liga para dizer que não irá, ela pensa que ele
havia desistido, na verdade ele tinha ficado doente. Na retomada das noites, a
permissão para deixar o pijama e a escova de dentes.
Na verdade, Louis e os leitores têm
uma dúvida: por que Addie o escolheu? “Foi porque eu acho que você é um homem
bom. Um homem gentil (...). E sempre pensei em você como alguém de quem eu
poderia gostar e com quem poderia conversar”. Precisa de mais? A sinceridade nos arrebata; a simplicidade
enleva. Não há catacreses reinventadas, sujeitos entrecortados pela angústia
e violência das grandes cidades, a ginástica da focalização múltipla,
narradores céticos, cínicos... Addie e Louis são pessoas de papel do bem e o
narrador não quer brilhar mais que eles, quer simplesmente (e isso é muito!)
deixá-los viver. Por isso, o discurso direto prevalece.
O bairro descobre, o casal se
descobre: “Cresci em Lincoln, Nebraska...”; “Ela era casada (...). Seu nome era
Tamara...”; “Dezessete de agosto. Um dia quente de verão, de céu azul e
límpido”. Origem dela; paixão dele, por quem deixara a própria casa, para
voltar, entretanto, 2 semanas depois; a morte da filha dela. A morte de Connie
entroniza no romance o personagem de Gene, o filho mais novo de Addie.
Amargurado pela culpa que não teve na morte da irmã e pelo desprezo do pai,
Gene é o antagonista de tudo de bonito que esse romance entrega, de forma tão
singela.
Na verdade, a filha de Louis,
Holly, também ensaia oposição, ele é sincero com Addie: “Acho que rumores sobre
nós dois chegaram aos ouvidos dela. Imagino que ela queira que eu me comporte”.
A conversa com a filha é quase dura, mas Louis consegue se impor ao
“constrangimento” dela. Todavia, o episódio com Holly é a antessala para o
confronto com Gene.
O que torna o confronto com Gene
mais delicado e sofrido é o personagem Jamie, neto de Addie. Falido e com o
casamento em ruínas, Gene apela à mãe para ficar alguns dias com o neto. Ela
aceita imediatamente. Louis teme o fim do arranjo entre eles, mas Addie joga
com a sua experiência e pede paciência para os ajustes. A cena de despedida, do
carro que se vai, com a criança que chora enquanto a avó tenta segurá-la, para
que ele não fosse atrás do automóvel, é uma daquelas que a gente espera não
viver em nenhum dos papeis...
A presença de Jamie, entretanto, é
mais uma delicadeza para essa história. Louis e Addie redescobrem a convivência
com uma criança em uma altura de suas vidas em que seu papel como educadores e
criadores já havia cessado, para o bem e para o mal. A criança fica com a avó,
com o avô emprestado, viaja com o casal, acampa, ganha uma cadela para amar e
cuidar, enquanto seus pais tentam recompor a vida que estragaram sozinhos.
Gene haverá de tentar estragar mais
a vida em torno... Suas razões são da óptica do desamor: “Se você se casar com
ele, ele vai ficar com metade de tudo, não vai? Eu não vou poder fazer nada.”
Esquece o filho páginas a fio até que um dia para o carro e o leva embora, para
seu arremedo de concórdia conjugal. Obviamente que recuperar o filho é abrir
uma janela a uma intimidade incompreensível: a de sua mãe com outro homem, que
não o pai. As crianças falam... e as suas narrativas inocentes serão relidas por ele
segundo os parâmetros possíveis a um homem com limitadas capacidades de ousar,
de perdoar e de amar.
E esse homem execrável – sim, eu
odiei o personagem -, falhado na capacidade de mobilizar afeição – tem
dificuldade de acariciar a cadelinha do filho! –, pede à mãe que renuncie e,
não satisfeito, transfere-a a um lar de idosos. Eu odeio, tu odeias, ele odeia,
nós... Já sei o que vão me perguntar os três leitores de minha resenha: Ué, Marcella, cadê a coragem da Addie?
Para, gente, Jamie e Gene eram a única família que tinha restado a essa senhora
de 70 anos... Ter convivido com o neto mobilizou sentimentos de outro tipo de
esperança em um coração cheio de amor como o de Addie! Mas, calma, o amor
sempre vai encontrar uma saída...
Antevejo uma última questão (a de
natureza maliciosa): Marcella, tudo bem,
mas a cama de Nossas Noites é
visitada por um Eros maduro? Ora, é visitada desde a primeira noite! Mas se
você está se referindo a desempenho sexual, terá de ter paciência com esse
casal de 70 anos e aguardar sem pressa o reencontro com um jovem Eros. Eros é
sempre juvenil, ainda que velhíssimo...
Leitura para fazer bem ao coração e
para convidar a olhar nossos velhos de forma diferente.
HARUF, Kent. Nossas noites (Tradução de Sônia Moreira). São Paulo: Editora Schwarcz, 2017.
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