segunda-feira, 29 de junho de 2020

Nossas noites, de Kent Haruf: uma atrevida singeleza

Em maio deste ano, o Rascunho publicou a resenha escrita por Miguel Sanches Neto do romance Bênção do escritor estadunidense Kent Haruf (1943-2014). Fiquei intrigada: com a percepção de Sanches Neto, de estar diante de algo muito diferente dos padrões e modas hodiernas, e com o enredo do romance em si. Fui rápido ao Kindle para ver se estava disponível na loja. Achei em inglês e tive preguiça, mas logo fui compensada por outra tradução realizada por Sônia Moreira, do último romance do autor: Nossas noites. Li em três dias. Leria em um, se não fossem as outras leituras de trabalho. Trata-se de um pequeno romance.
Na resenha de Bênção, Sanches Neto escreveu: “O literário não advém daquilo que o autor faz com a linguagem, mas do que a linguagem faz com o leitor. Este é o caso de Bênção.” Depois de conviver com Addie e Louis, em Nossas noites, eu acrescentaria o poder de uma história bem contada. É verdade que os enredos não são exatamente infinitos e que um bom número de histórias que amamos os tem bem chinfrins, mas há uma encantatória sintonia entre nós – humanos – e as histórias que nos são contadas por gerações que o fato de elas nos enredarem, a despeito das firulas e modas literárias, é mais uma prova (não que precisássemos...) de que necessitamos de narrativas e de que a nossa vida parece mais rica quando mais uma passa a habitar as prateleiras da nossa biblioteca íntima. A minha está mais rica depois dessa história simples: do amor contrariado, de um casal que soma 140 anos de idade!
Um dia, Addie Moore visita Louis Waters e lhe faz uma proposta inusitada. Os dois se conheciam há muitos anos, não eram exatamente amigos, mas conhecidos, vizinhos de bairro. “O que você acharia da ideia de ir à minha casa de vez em quando para dormir comigo?”. Depois da surpresa dele, um adendo: “Não estou falando de sexo.”. Ora, do que essa senhora estaria falando? “Estou falando de ter uma companhia para atravessar a noite, para esquentar a cama. De nós nos deitarmos na cama juntos e você ficar para passar a noite. As noites são a pior parte. Você não acha?”. Ambos, viúvos, com filhos crescidos, fora de casa já há um tempo; filhos com pouca agenda para visitá-los... Teoricamente, dois velhos livres.
O diálogo continua, ambos compartilham a insônia e a necessidade de remédio para dormir. O que Addie Moore propõe a Louis Waters é intimidade. Louis interpõe um fraco pudor: “E se eu roncar?”; “Se roncar, roncou; ou vai aprender a parar”. Para mim, tudo o que se passa a partir da proposta dessa senhora e do confronto com o outro, a quem ela propõe uma partilha, é gigante. O livro não entrega, mas pude vê-la pensar no assunto, escolher uma roupa, hesitar, pentear os cabelos, andar pelo bairro, tocar a campainha... e sugerir, propor. Coragem mora ali.
No dia seguinte, ele vai ao barbeiro, prepara-se e telefona: “Eu gostaria de ir para a sua casa esta noite, se a proposta ainda estiver de pé.”. É claro que está. Ele bate a porta dos fundos, ela se admira! Ora, para quem tinha atravessado anos de convenções, a porta dos fundos era inconcebível e ele promete que, da próxima vez, virá pela porta da frente. Felizmente, para nós, haverá muitas próximas vezes!
Há descobertas: ele prefere cerveja, ela vinho; ela mostra a casa, para que ele saiba onde está; ele vê fotografias, veste o pijama... Depois da primeira noite, uma contrariedade, a vida é feita de equívocos... Ele liga para dizer que não irá, ela pensa que ele havia desistido, na verdade ele tinha ficado doente. Na retomada das noites, a permissão para deixar o pijama e a escova de dentes.
Na verdade, Louis e os leitores têm uma dúvida: por que Addie o escolheu? “Foi porque eu acho que você é um homem bom. Um homem gentil (...). E sempre pensei em você como alguém de quem eu poderia gostar e com quem poderia conversar”. Precisa de mais? A sinceridade nos arrebata; a simplicidade enleva. Não há catacreses reinventadas, sujeitos entrecortados pela angústia e violência das grandes cidades, a ginástica da focalização múltipla, narradores céticos, cínicos... Addie e Louis são pessoas de papel do bem e o narrador não quer brilhar mais que eles, quer simplesmente (e isso é muito!) deixá-los viver. Por isso, o discurso direto prevalece.
O bairro descobre, o casal se descobre: “Cresci em Lincoln, Nebraska...”; “Ela era casada (...). Seu nome era Tamara...”; “Dezessete de agosto. Um dia quente de verão, de céu azul e límpido”. Origem dela; paixão dele, por quem deixara a própria casa, para voltar, entretanto, 2 semanas depois; a morte da filha dela. A morte de Connie entroniza no romance o personagem de Gene, o filho mais novo de Addie. Amargurado pela culpa que não teve na morte da irmã e pelo desprezo do pai, Gene é o antagonista de tudo de bonito que esse romance entrega, de forma tão singela.
Na verdade, a filha de Louis, Holly, também ensaia oposição, ele é sincero com Addie: “Acho que rumores sobre nós dois chegaram aos ouvidos dela. Imagino que ela queira que eu me comporte”. A conversa com a filha é quase dura, mas Louis consegue se impor ao “constrangimento” dela. Todavia, o episódio com Holly é a antessala para o confronto com Gene.
O que torna o confronto com Gene mais delicado e sofrido é o personagem Jamie, neto de Addie. Falido e com o casamento em ruínas, Gene apela à mãe para ficar alguns dias com o neto. Ela aceita imediatamente. Louis teme o fim do arranjo entre eles, mas Addie joga com a sua experiência e pede paciência para os ajustes. A cena de despedida, do carro que se vai, com a criança que chora enquanto a avó tenta segurá-la, para que ele não fosse atrás do automóvel, é uma daquelas que a gente espera não viver em nenhum dos papeis...
A presença de Jamie, entretanto, é mais uma delicadeza para essa história. Louis e Addie redescobrem a convivência com uma criança em uma altura de suas vidas em que seu papel como educadores e criadores já havia cessado, para o bem e para o mal. A criança fica com a avó, com o avô emprestado, viaja com o casal, acampa, ganha uma cadela para amar e cuidar, enquanto seus pais tentam recompor a vida que estragaram sozinhos.
Gene haverá de tentar estragar mais a vida em torno... Suas razões são da óptica do desamor: “Se você se casar com ele, ele vai ficar com metade de tudo, não vai? Eu não vou poder fazer nada.” Esquece o filho páginas a fio até que um dia para o carro e o leva embora, para seu arremedo de concórdia conjugal. Obviamente que recuperar o filho é abrir uma janela a uma intimidade incompreensível: a de sua mãe com outro homem, que não o pai. As crianças falam... e as suas  narrativas inocentes serão relidas por ele segundo os parâmetros possíveis a um homem com limitadas capacidades de ousar, de perdoar e de amar.
E esse homem execrável – sim, eu odiei o personagem -, falhado na capacidade de mobilizar afeição – tem dificuldade de acariciar a cadelinha do filho! –, pede à mãe que renuncie e, não satisfeito, transfere-a a um lar de idosos. Eu odeio, tu odeias, ele odeia, nós... Já sei o que vão me perguntar os três leitores de minha resenha: Ué, Marcella, cadê a coragem da Addie? Para, gente, Jamie e Gene eram a única família que tinha restado a essa senhora de 70 anos... Ter convivido com o neto mobilizou sentimentos de outro tipo de esperança em um coração cheio de amor como o de Addie! Mas, calma, o amor sempre vai encontrar uma saída...
Antevejo uma última questão (a de natureza maliciosa): Marcella, tudo bem, mas a cama de Nossas Noites é visitada por um Eros maduro? Ora, é visitada desde a primeira noite! Mas se você está se referindo a desempenho sexual, terá de ter paciência com esse casal de 70 anos e aguardar sem pressa o reencontro com um jovem Eros. Eros é sempre juvenil, ainda que velhíssimo... 
Leitura para fazer bem ao coração e para convidar a olhar nossos velhos de forma diferente.    
  




HARUF, Kent. Nossas noites (Tradução de Sônia Moreira). São Paulo: Editora Schwarcz, 2017.

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