sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Raquel presente


Para Maria Cristina e Michael
Para Aline

Maria e Michael, tô chegando aí. Levo 2 sacolas de compras que vou colocar no chão da cozinha. Tô abrindo os armários e a geladeira para guardar. É cedo para o almoço, então vou recolher a roupa do cesto, colocar na máquina, dar aquele jeito no banheiro, fazer a cama de vocês, varrer em silêncio a casa toda. Onde está o pano de chão? Achei. Vou pegar as toalhas e colocar na varanda. Há sol hoje depois de quase onze anos de chuva.
Vou dar uma espiada em vocês. Vejo-os no colo um do outro. Fecho a porta devagar. Além de o Amor me inspirar respeito reverente, temo que o ritmo do bater da máquina de lavar – tão cotidiano – atrapalhe a entrega dessa manhã. Vou deixar uma frestinha, entretanto, só para o caso de vocês precisarem. Basta me chamar. Tô ali na cozinha.
Então vai ter feijão preto e gordo de paio. Hoje vamos nos permitir. Tô lavando o arroz. Vou fazer uma carne moída como a minha amiga Fabiana me ensinou. Nunca me ocorreu colocar alho-poró na carne moída!! Então vai ser do jeito dela que agrada mais lá em casa, inclusive. Trouxe alface e tomate. Abro o armário da pia e encontro a mesma engenhoca do Avon que tenho em casa, para deixar as folhas da alface bem sequinhas. Nós compramos da mesma cor, verde! Resolvo esse cardápio por dois motivos: além de ser rapidinho, faço sem muito barulho. Bem, a não ser o da pressão... Eita, trabalhar ritmado e cozinhar na pressão. Eu sempre encontro verdades muito profundas nas minhas tarefas simples... e vocês?
Vou na ponta do pé até a frestinha e aviso do almoço. Não querem tomar um banho? Roubei da gaveta da minha mãe o sabonete que, na gaveta dela e nela, fica mais cheiroso. Sim, apesar das escolhas políticas, ela ainda é a mulher mais cheirosa do mundo. Seu perfume misterioso me apazigua. Trouxe para vocês. Deixo no box.
Corro na varanda a fim de sentir as toalhas. Estão quentes. Resolvo esperar deixar de ouvir o chuveiro para pendurar as toalhas na maçaneta da porta do banheiro. Dá certo. Corro à cozinha. Imagino o calor abraçando vocês. É por causa da cebola que choro.
Não há pó nos porta-retratos. Êee, lá em casa... Achei uma toalha linda na terceira gaveta da cômoda. Desculpa mexer nas coisas, mas foi só para não ficar perguntando. Não é porque não achamos a toalha na primeira gaveta que vamos desistir, né? Que bom que ninguém desistiu. Assim, eu posso colocar a mesa para a gente. Não se preocupem, hoje eu quero almoçar com vocês.
Escancaro as cortinas. Puxo a cadeira para a Maria, pouso a mão no ombro do Michael. Cheiram ao sabonete da minha mãe quando ela usa esse sabonete. Coloco o prato de cada um, afinal, vim fazer o serviço (!), e a gente come em silêncio. Maria fica intrigada com o alho-poró. Sabia. Sorrio sem medo do caroço de feijão. Acho que vou fazer um bolo para a tarde. Pode sim. A gente é formiga aqui. Em casa também, Maria. Quem não?
Termino a louça, o bolo e vou, tá? Tenho uma porção de coisas... A roupa limpa está no varal do quintal. Cuidem só para o caso de começar a chover. Mas eu acho que hoje não. Acho que a gente vai ter direito a esse sol todo. Da janela, a gente vê passar crianças na volta da escola. Sinto aperto, mas nem Maria nem Michael sentem. Vejo seus olhos limpos. De repente, Michael levanta, vai até cozinha, traz um pedaço de pão e limpa o prato. Maria lembra de uma laranja. Cada gomo é um portão aberto sem sobressalto. Hoje, todas elas estão em casa.
***
Hoje, acordei com a notícia do desvendamento do caso da menina Raquel, sequestrada dessa vida há quase 11 anos, em novembro de 2008. Agradeço aos agentes públicos que não desistiram e me maravilho com a tecnologia que descobriu a identidade da matéria orgânica que desperdiça o precioso oxigênio do planeta. Há 11 anos, uma mulher que trabalhava com afinco para a solução do caso perdeu a sua filha ainda no ventre. Eu soube hoje. Ela contou. A matéria orgânica já encarcerada pode acumular mais esse crime. Há quase 11 anos, em novembro de 2008, minha filha nasceu. Há 11 anos.
Eu não conheço Maria e Michael. Esse texto é só uma forma de acarinhá-los à distância, de forma respeitosa e reverente. Aline, é uma forma de abraçar você também.




2 comentários:

  1. Belo texto. Recebi com a beleza que sua poesia traz no acalanto de suas belas palavras. Fiquei com vontade de provar a estranha iguaria do feijão com alho poró. Forte abraço e todo nosso carinho.

    Michael Genofre

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  2. Michael, sua generosidade é uma honra para mim. Obrigada por ter compreendido esse texto como um carinho respeitoso em você e em Maria em dia de tanta emoção. Um abraço cheio de afeto.

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