Era
uma vez um homem muito poderoso que se descobre um dia traído. Cego de
ódio, arquiteta um plano que o afastaria completamente da possibilidade de uma
nova deslealdade: desposa mulheres e, no dia seguinte à consumação do intercurso,
condena-as à morte. Em outro era uma vez,
um homem inescrupuloso usa a própria mulher para cegar o seu patrão. Este, por
sua vez, “envenenado” pelo criado, mata a esposa que era, afinal, inocente de
toda a perfídia alegada. Muitos era uma
vez depois, uma mulher esplendorosa – “ela é uma coisa extraordinária, ela
é muito grande” – alucina um indivíduo medíocre que não podendo conter essa
grandeza, mata a mulher, para “reduzi-la a nada”. Assim está escrito. São
tantos era uma vez e tão fácil
reconhecer o sultão Šahriyar de As mil e
uma noites (cuja forma mais antiga e inteira é dos séculos XIII ou XIV),
Iago personagem da peça Otelo, o mouro de
Veneza (Shakespeare) e o Bexiguinha do romance Aparição (Vergílio Ferreira), que qualquer pessoa poderia
acrescentar mais leituras, a partir das minhas sugestões, a um rico e sanguinário
repertório literário, em cujo enredo está posto o assassinato de personagens
femininas. É claro que isso é uma maneira de ver as coisas, afinal personagens
masculinos também morrem. A literatura é bem diversificada em seus desejos de
vingança.
As histórias que salpiquei tiveram
grande impacto sobre mim em diferentes momentos da vida e há dias, enquanto
observo acontecimentos por todo o lado, e em especial no Brasil, esses textos
me vieram novamente ao coração. Šahriyar, Otelo e Bexiguinha não podem suportar
a frustração de não terem sido amados como eles desejaram sê-lo. É como se, a
partir do momento em que as mulheres entraram em suas vidas, em suas casas,
palácios, em seus quartos... tivessem de abrir mão de toda a sua vontade para
saciá-los exatamente como eles sonharam ser saciados. É óbvio que penso nas
violências que atravessam a vida das mulheres que mudam de ideia, apesar de
seus “sinais”...
Uma digressão rapidinha a propósito
dos “sinais”: adoro ouvir rádio e dia desses ouvi de um locutor de uma rádio de
sucesso que mulheres como essas “empoderadas” e que adoram dizer que “não é
não” andam contrariando o que acontece “na real e na noite”, quando homens e
mulheres se encontram. Segundo sua narrativa entrecortada de elipses maliciosas
(creio que em razão do horário da emissão), as mulheres dão “sinais”, vão aos
apartamentos dos homens e depois querem ir embora (!!!), sem consumar o que
quer que esteja plantado na cabeça dos... homens! Ora essa! O machismo é uma
doença de proliferação celular tão extraordinária que o locutor não questionou
em nenhum momento as próprias palavras, em que jorravam litros de pus sobre o protagonismo
masculino (exclusivo) nas decisões sobre o sexo. Mas havia outro homem lá, que
disse uma coisa diferente: Sabe, cara,
acho que não é não mesmo, vai que a garota não gosta da cara do meu [falo][1]?!
Agora, voltando aos frustrados,
somos todos e todas em alguma medida insatisfeitos com a resposta real às
nossas expectativas completamente irreais... A frustração não quer nem saber: é
um sentimento grande, que vai tomando conta de bons hectares do nosso coração. Alguns
de nós ficam na fossa (alguém ainda usa essa palavra?); outros, recorrem aos
amigos e amigas e a seus ombros largos; outros precisam de ajuda profissional;
outros machucam e matam.
O que tem me chamado muita atenção
é um tipo de frustração bem específica, que nasce no sexo e vai tomando conta
de outras áreas da vida dos pudicos ou dos ressentidos. Assim, porque alguém
ousa uma escolha que só interessa aos implicados, outros que observam a escolha
não suportam o gozo alheio (quase sempre, não têm fruição alguma); ou, porque
alguém adentrou o quatro com outro alguém, tem de consumar o que só um
continuou a querer, segundo a opinião do que insiste no ato e de quem não
estava lá (!), mas quer gozar só de imaginar... O que isso tem a ver com as
mulheres? Quase sempre, somos as que mudam de ideia ou estamos entre os que
ousaram.
Nem sempre a cama é evidente,
entretanto. Quando uma autoridade vem a público chamar um homem de “menina”
porque esse homem é homossexual, o que a autoridade busca? Uma das
possibilidades de resposta é o menosprezo do homem que recebeu a identificação,
o que significa que “menina” passa a ser um termo pejorativo, um xingamento.
Novamente (porque professora adora explicar tudo explicadinho...): o
substantivo menina passa a ser um
xingamento na boca de um homem, que usa a palavra como adjetivo para ferir um
outro. Eu vejo Iago. Quando um homem, ou um grupo deles, se rejubila ante a
morte de uma mulher poderosa, ou obtém fruição com a notícia da violência
perpetrada contra mulheres que ousaram ter escolha, quem eu vejo? Eu vejo o
medíocre e perigoso Bexiguinha. Quando leio a defesa da subserviência feminina
entre ícones da moda diante do desejo exclusivo do outro e/ou o apagamento do
nosso desejo, eu temo ver o poderoso Šahriyar.
Entre os homens reais que executam
projetos semelhantes aos personagens literários e os que “não fazem nada”, mas
calam, riem, trocam um gracejo ou outro no whatsapp com os amigos, aceitam a
piada “inofensiva”, mostram enfado diante dos “exageros” das suas mulheres e
ousam um like em postagens duvidosas protegidos pela tela, há uma distância que
pode ser bem desconfortável, monstruosa... É como se o reino dos ogros tivesse
se instalado definitivamente entre nós! Já escrevi sobre isso[2]: não aplaudo o
“inofensivo” Shrek, aliás temo que
ele convença as meninas a se
tornarem ogras por amor. Ora, eu conheço
mulheres casadas com ogros e que não se tornaram ogras! Obrigada, queridas,
continuo a reconhecê-las!
Os homens vivem entre nós e está
claro que boa parte de sua mudança ou do sutil deslocamento das ideias dos mais
cabeças duras vêm muitas vezes da convivência conosco. Eita, responsabilidade!
Mas não estou dizendo que devemos insistir com aquele namorado possessivo (e/ou
violento...), aliás, sugiro escapar dele!! Não foi isso que Jane fez quando
descobriu o segredo de Mr. Rochester em pleno altar[3]?! Gente, esse personagem insistente
precisou ficar cego para reencontrar Jane nas bases em que ela estava disposta
a construir o futuro: um futuro amoroso em que ele inclusive seria cuidado e
amado por ela, em pena liberdade! Jane,
Jane... Quem de nós não soluçou com a morte de Helen não tem coração!! Lembro:
elas eram só meninas... Meninas que apoiam meninas. Isso me emociona.
Desdêmona e Sofia foram
surpreendidas e mortas; Šahrazad conhecia o destino das suas antecessoras e
ousou uma alternativa. Seu risco, entretanto, era imenso! Essas mulheres
tiveram famílias, amigas, criadas, irmãs... Apenas Šahrazad conseguiu mobilizar
apoio de sua irmã Dinarzad a tempo de viver. Sua irmãzinha, escondida debaixo
da cama... Lembra quem rouba o lenço de Desdêmona? Emília..., esposa de Iago, move-se
por ele! Ela se arrependerá de ter feito o que fez, mas extemporaneamente e
perderá a vida também. Dinarzad correu todos os riscos com sua irmã para
salvá-la. Estavam do mesmo lado, o lado da vida e da esperança.
Sabe, os ogros podem seduzir as
princesas com a sua aparente rebeldia ou não conformidade com a etiqueta da
corte; podem convencê-las temporariamente de que o comprimento da saia das suas
amigas é sinal da anulação do seu desejo em prol da vontade dos seus pares
ogros; podem ser eleitos; não ter escrúpulos; podem dar voz às mulheres para elas
dizerem, sem desconfiar, o que eles querem na verdade; podem convidá-las a seus
hotéis, convencê-las de que bastou entrar no pântano para chafurdar com eles,
mas... podemos lembrar da força das meninas tanto para tentar salvar as Sofias
que conhecemos, quanto para virar ofensa em elogio e, assim, reinvestir as
palavras do seu sentido e do seu poder.
Illustration des Mille et une nuits, par Léon Carré (1929).
Bibliothèque nationale de France.
Disponível em: https://orientxxi.info/lu-vu-entendu/raconte-nous-une-histoire-sheherazade,0911 (acesso em 1 de julho de 2019)
[1] Ele empregou outra palavra. Eu uso um
sinônimo mais bonitinho e meigo.
[2] Em “Sobre a gente que vive em palácios, pântanos e em uma casa azul de
papel”, conferir aqui no blog: http://literistorias.blogspot.com/2016/06/em-tempos-de-lancamento-de-menina-com.html
[3] Romance Jane
Eyre de Charlotte Brontë.
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