segunda-feira, 1 de julho de 2019

Os homens que não amavam as mulheres e que convenceram outras a não amarem também


Era uma vez um homem muito poderoso que se descobre um dia traído. Cego de ódio, arquiteta um plano que o afastaria completamente da possibilidade de uma nova deslealdade: desposa mulheres e, no dia seguinte à consumação do intercurso, condena-as à morte. Em outro era uma vez, um homem inescrupuloso usa a própria mulher para cegar o seu patrão. Este, por sua vez, “envenenado” pelo criado, mata a esposa que era, afinal, inocente de toda a perfídia alegada. Muitos era uma vez depois, uma mulher esplendorosa – “ela é uma coisa extraordinária, ela é muito grande” – alucina um indivíduo medíocre que não podendo conter essa grandeza, mata a mulher, para “reduzi-la a nada”. Assim está escrito. São tantos era uma vez e tão fácil reconhecer o sultão Šahriyar de As mil e uma noites (cuja forma mais antiga e inteira é dos séculos XIII ou XIV), Iago personagem da peça Otelo, o mouro de Veneza (Shakespeare) e o Bexiguinha do romance Aparição (Vergílio Ferreira), que qualquer pessoa poderia acrescentar mais leituras, a partir das minhas sugestões, a um rico e sanguinário repertório literário, em cujo enredo está posto o assassinato de personagens femininas. É claro que isso é uma maneira de ver as coisas, afinal personagens masculinos também morrem. A literatura é bem diversificada em seus desejos de vingança.
As histórias que salpiquei tiveram grande impacto sobre mim em diferentes momentos da vida e há dias, enquanto observo acontecimentos por todo o lado, e em especial no Brasil, esses textos me vieram novamente ao coração. Šahriyar, Otelo e Bexiguinha não podem suportar a frustração de não terem sido amados como eles desejaram sê-lo. É como se, a partir do momento em que as mulheres entraram em suas vidas, em suas casas, palácios, em seus quartos... tivessem de abrir mão de toda a sua vontade para saciá-los exatamente como eles sonharam ser saciados. É óbvio que penso nas violências que atravessam a vida das mulheres que mudam de ideia, apesar de seus “sinais”...
Uma digressão rapidinha a propósito dos “sinais”: adoro ouvir rádio e dia desses ouvi de um locutor de uma rádio de sucesso que mulheres como essas “empoderadas” e que adoram dizer que “não é não” andam contrariando o que acontece “na real e na noite”, quando homens e mulheres se encontram. Segundo sua narrativa entrecortada de elipses maliciosas (creio que em razão do horário da emissão), as mulheres dão “sinais”, vão aos apartamentos dos homens e depois querem ir embora (!!!), sem consumar o que quer que esteja plantado na cabeça dos... homens! Ora essa! O machismo é uma doença de proliferação celular tão extraordinária que o locutor não questionou em nenhum momento as próprias palavras, em que jorravam litros de pus sobre o protagonismo masculino (exclusivo) nas decisões sobre o sexo. Mas havia outro homem lá, que disse uma coisa diferente: Sabe, cara, acho que não é não mesmo, vai que a garota não gosta da cara do meu [falo][1]?!
Agora, voltando aos frustrados, somos todos e todas em alguma medida insatisfeitos com a resposta real às nossas expectativas completamente irreais... A frustração não quer nem saber: é um sentimento grande, que vai tomando conta de bons hectares do nosso coração. Alguns de nós ficam na fossa (alguém ainda usa essa palavra?); outros, recorrem aos amigos e amigas e a seus ombros largos; outros precisam de ajuda profissional; outros machucam e matam.
O que tem me chamado muita atenção é um tipo de frustração bem específica, que nasce no sexo e vai tomando conta de outras áreas da vida dos pudicos ou dos ressentidos. Assim, porque alguém ousa uma escolha que só interessa aos implicados, outros que observam a escolha não suportam o gozo alheio (quase sempre, não têm fruição alguma); ou, porque alguém adentrou o quatro com outro alguém, tem de consumar o que só um continuou a querer, segundo a opinião do que insiste no ato e de quem não estava lá (!), mas quer gozar só de imaginar... O que isso tem a ver com as mulheres? Quase sempre, somos as que mudam de ideia ou estamos entre os que ousaram.
Nem sempre a cama é evidente, entretanto. Quando uma autoridade vem a público chamar um homem de “menina” porque esse homem é homossexual, o que a autoridade busca? Uma das possibilidades de resposta é o menosprezo do homem que recebeu a identificação, o que significa que “menina” passa a ser um termo pejorativo, um xingamento. Novamente (porque professora adora explicar tudo explicadinho...): o substantivo menina passa a ser um xingamento na boca de um homem, que usa a palavra como adjetivo para ferir um outro. Eu vejo Iago. Quando um homem, ou um grupo deles, se rejubila ante a morte de uma mulher poderosa, ou obtém fruição com a notícia da violência perpetrada contra mulheres que ousaram ter escolha, quem eu vejo? Eu vejo o medíocre e perigoso Bexiguinha. Quando leio a defesa da subserviência feminina entre ícones da moda diante do desejo exclusivo do outro e/ou o apagamento do nosso desejo, eu temo ver o poderoso Šahriyar.
Entre os homens reais que executam projetos semelhantes aos personagens literários e os que “não fazem nada”, mas calam, riem, trocam um gracejo ou outro no whatsapp com os amigos, aceitam a piada “inofensiva”, mostram enfado diante dos “exageros” das suas mulheres e ousam um like em postagens duvidosas protegidos pela tela, há uma distância que pode ser bem desconfortável, monstruosa... É como se o reino dos ogros tivesse se instalado definitivamente entre nós! Já escrevi sobre isso[2]: não aplaudo o “inofensivo” Shrek, aliás temo que ele convença as meninas a se tornarem ogras por amor. Ora, eu conheço mulheres casadas com ogros e que não se tornaram ogras! Obrigada, queridas, continuo a reconhecê-las!
Os homens vivem entre nós e está claro que boa parte de sua mudança ou do sutil deslocamento das ideias dos mais cabeças duras vêm muitas vezes da convivência conosco. Eita, responsabilidade! Mas não estou dizendo que devemos insistir com aquele namorado possessivo (e/ou violento...), aliás, sugiro escapar dele!! Não foi isso que Jane fez quando descobriu o segredo de Mr. Rochester em pleno altar[3]?! Gente, esse personagem insistente precisou ficar cego para reencontrar Jane nas bases em que ela estava disposta a construir o futuro: um futuro amoroso em que ele inclusive seria cuidado e amado por ela, em pena liberdade! Jane, Jane... Quem de nós não soluçou com a morte de Helen não tem coração!! Lembro: elas eram só meninas...  Meninas que apoiam meninas. Isso me emociona.
Desdêmona e Sofia foram surpreendidas e mortas; Šahrazad conhecia o destino das suas antecessoras e ousou uma alternativa. Seu risco, entretanto, era imenso! Essas mulheres tiveram famílias, amigas, criadas, irmãs... Apenas Šahrazad conseguiu mobilizar apoio de sua irmã Dinarzad a tempo de viver. Sua irmãzinha, escondida debaixo da cama... Lembra quem rouba o lenço de Desdêmona? Emília..., esposa de Iago, move-se por ele! Ela se arrependerá de ter feito o que fez, mas extemporaneamente e perderá a vida também. Dinarzad correu todos os riscos com sua irmã para salvá-la. Estavam do mesmo lado, o lado da vida e da esperança.
Sabe, os ogros podem seduzir as princesas com a sua aparente rebeldia ou não conformidade com a etiqueta da corte; podem convencê-las temporariamente de que o comprimento da saia das suas amigas é sinal da anulação do seu desejo em prol da vontade dos seus pares ogros; podem ser eleitos; não ter escrúpulos; podem dar voz às mulheres para elas dizerem, sem desconfiar, o que eles querem na verdade; podem convidá-las a seus hotéis, convencê-las de que bastou entrar no pântano para chafurdar com eles, mas... podemos lembrar da força das meninas tanto para tentar salvar as Sofias que conhecemos, quanto para virar ofensa em elogio e, assim, reinvestir as palavras do seu sentido e do seu poder.



Illustration des Mille et une nuits, par Léon Carré (1929).

Bibliothèque nationale de France.





[1] Ele empregou outra palavra. Eu uso um sinônimo mais bonitinho e meigo.
[2] Em “Sobre a gente que vive em palácios, pântanos e em uma casa azul de papel”, conferir aqui no blog: http://literistorias.blogspot.com/2016/06/em-tempos-de-lancamento-de-menina-com.html
[3] Romance Jane Eyre de Charlotte Brontë.

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