segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Correr e ler sobre corrida!


Às mulheres com que corro toda semana e aos professores que me orientam e impulsionam,
o meu amor e a minha gratidão.
Com vocês, eu vou mais longe!

Prólogo:

Há alguns meses, eu me juntei a um grupo de mulheres[1] que correm juntas em parques, em ciclovias, pela rua e que recebe orientação de professores de educação física especializados em corrida. Foi uma revolução na minha vida.

Eu já tinha visto do que a corrida era capaz. Vi o que ela havia feito na vida de uma de minhas melhores amigas, a minha prima Andréia. Mas a beleza não me bastou, infelizmente a decisão ficou com a tragédia mesmo. Quando descobri que no peito do meu pai, homem gigante e apaixonado pela vida, batia um coração reduzido a 16% de sua capacidade, eu resolvi. O escritor e corredor Haruki Murakami afirmou que “A maioria dos corredores corre não porque queira viver mais, mas porque quer viver a vida ao máximo”. Vou dar-lhe metade da razão. Eu quero um coração forte.

Como é da minha natureza pesquisar sobre tudo aquilo que me dá prazer e buscar nos livros respostas, a corrida me levou à leitura de duas obras (sugestões de minha prima): Correr. O exercício, a cidade e o desafio da maratona do médico Drauzio Varella e Do que eu falo quando eu falo de corrida: um relato pessoal do romancista Haruki Murakami. Reuni apontamentos e publico hoje, no dia seguinte à minha segunda prova. Recomendo a leitura e... a corrida!

·        VARELLA, Drauzio. Correr. O exercício, a cidade e o desafio da maratona. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
·        MURAKAMI, Haruki. Do que eu falo quando eu falo de corrida: um relato pessoal. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

***

Acho que o Dr. Drauzio Varella é o nosso Oliver Sacks (ambos médicos), pela forma como ciência e escrita se harmonizam para chegar aos não especialistas, sem sacrifício de nenhuma das duas, nem do leitor, aliás.
O que é Correr? Um livro sobre uma decisão: “provar que a decadência não começaria aos cinquenta” (p. 16 e 17). Aos 50, Dr. Drauzio, que não fumava havia 13 anos, decidiu preparar-se para correr a Maratona de Nova York. Dali em diante, são mais de 20 anos de maratonas!
Engana-se quem pensa que, porque o autor é médico, só se encontre na obra a palavra douta (embora haja). O que se lê é a narrativa de um médico narrador, que não tem vergonha de mostrar que o corredor comete erros. Mas esses erros não acendem as vinganças do sedentário, porque a narrativa dos ganhos, do prazer e das vitórias do corpo em movimento[2] é emocionante!
Sobre a experiência do médico, o livro está cheio de dicas excelentes para o corredor observar seu próprio corpo antes e depois das maratonas. O livro também segreda o investimento do autor em compreender essa prática. Realiza uma contextualização recente do fenômeno das corridas e, mais recuada, até a Grécia. Nesse momento, eu me senti muito comparsa do Dr. Drauzio, porque cheguei a seu livro também para compreender uma decisão.
O capítulo “Chigaco, 2009” me emocionou particularmente, afinal trata-se da maratona realizada entre o pai e a filha:
“Na história da humanidade, a quantos pais de 66 anos foi concedido o privilégio de correr 42 quilômetros com a filha 32 anos mais nova?” (p. 84). É, Dr. Dráuzio, eu estou na luta como mãe, mas foi como filha que eu me emocionei. O pai olha a paisagem, mas a filha cansa. Nesse momento, o pai se veste inteiro de guerreiro: “você vai conseguir”. Alguém tem de pesquisar o milagre dessa frase!
“Fomos assim, diminuindo gradativamente a velocidade, até a reta final, quando emparelhamos com uma senhora de cabelos brancos e rosto vincado que aparentava mais de oitenta anos, correndo em passos miúdos porém decididos. Nessa hora, sugeri que fôssemos mais depressa para não aparecer na foto da linha de chegada ao lado de uma corredora de tanta idade. Mais tarde ficaria difícil aguentar a gozação dos amigos sedentários” (p. 85).
Ri muito.
“Nos últimos metros, Letícia segurou minha mão esquerda. Cruzamos a linha de mãos dadas, erguidas para o alto. Completamos a prova em cinco horas exatas; eu nunca havia corrido tantas horas consecutivas. Demos mais alguns passos e nos abraçamos. Se um pai disser que não chorou numa hora dessas, é desalmado ou mentiroso” (p. 86)
Dr. Drauzio, eu chorei daqui.

Haruki Murakami é um escritor. No final do seu Do que eu falo quando eu falo de corrida: um relato pessoal – todo mundo sabe que eu dou spoiler!!!! – ele propõe um baita epitáfio para si mesmo: “pelo menos ele nunca caminhou” (p. 145). Até agora, eu também não!
Murakami não tem uma relação sempre harmoniosa com a corrida. Sofre nas maratonas. Sente o corpo fraco, quase desfalecer: “Nada no mundo real é tão belo quanto as ilusões de uma pessoa prestes a perder a consciência.” (pág. 61). Bom narrador, a alma do leitor dói junto. Murakami deixou de correr em uma época. Voltou.
No prefácio da obra, “Sofrer é opcional”, encontramos essa declaração: “este é um livro sobre correr, não um tratado sobre como ser uma pessoa saudável” (p. 7), ou seja, mesmo que o livro do Dr. Dráuzio não seja também um tratado, o médico comparece lá. Aqui, obviamente não. O livro de Murakami é uma coleção de “pensamentos sobre o que correr significou para [ele] como pessoa” (p. 7). Ora, trata-se de um romancista, então é a relação com a escrita que comparece o tempo todo: “Paro todo dia bem no momento em que sinto que posso escrever mais. Feito isso, o dia de trabalho seguinte transcorre surpreendentemente” (pág. 12). Os amigos sabem que eu faço a mesma coisa...
Mesmo que Murakami afirme: “ocasionalmente, muito difícil, sério, tenho uma ideia para usar em um romance. Mas na verdade quando corro não penso em quase nada que seja digno de mencionar” (pág. 21), as relações são por demais indisfarçáveis. Com 33 anos, o autor tornou-se um corredor e um romancista! Começou a correr em 1982, e, em agosto de 2007, marco do encerramento da obra, já contava 23 anos de corrida.
A trajetória de Murakami como ficcionista me interessou muito. Eu ainda sou uma escritora que “rouba” tempo para escrever. Murakami teve um bar, viveu do negócio. Um dia, resolveu escrever. Conheceu reconhecimento por essa obra nascida na clandestinidade do tempo surrupiado. Mas não bastou... Comunicou à mulher que queria mais. A família julgou-o louco. Deu-se uma chance e acertou em cheio. Mas ele não faz a apologia generalizada da sua audácia. Cada atrevimento é do tamanho que a gente se permite e a consequência, única e imprevista, desde origem...    
A primeira corrida de rua de Murakami foi em 1983. Como eu, completou no début 5 km. A primeira maratona foi percorrida em 2005. Eu marquei a minha para daqui a 6 anos. Nos meus 50. Se eu conseguir, estarei adiantada em relação ao Dr. Drauzio e a ele!
Tomei nota das qualidades para um romancista: talento, concentração e perseverança (p. 68 e 69). As duas últimas se parecem com treinamento muscular, segundo Murakami (p. 70). Isso me lembra uma coisa que sempre falo a meus alunos, que escrever bem é como fazer abdominais:
“Escrever romances, para mim, é basicamente um tipo de trabalho braçal. Escrever, em si mesmo, é um trabalho mental, mas terminar um livro está mais próximo do trabalho braçal” (p. 70).
Murakami me deu uma esperança danada, afinal “A maior parte do que sei sobre escrever, aprendi correndo todos os dias” (p. 72). Ora, estou em busca de tantas coisas que passam por esse coração forte a que aspiro: narrativas, personagens, parágrafos inteiros teimosos de terminar, saúde e prazer.
Do que eu falo quando eu falo de corrida: um relato pessoal demorou 10 anos para ficar pronto. Maratona verbal. A obra é dedicada a todos os corredores que ele encontrou, “sem todos vocês, eu nunca teria continuado a correr” (p. 150).

***

Epílogo:
Há um poder imenso quando a gente corre. Há um poder imenso quando a gente corre com alguém que nos esforça, que acredita na nossa capacidade, que não tem medo do abraço e que não se importa com o suor. É lindo o concerto da nossa respiração ofegante. Mas paradoxalmente, correr é meditar. Ao meu lado, vão iogues, sufis!, eu sou dervixe também. Eu vou mais longe em variadas distâncias. Fora, já corri 8 km; dentro, perdi a conta...




[1] Trata-se do grupo The running moms: https://pt-br.facebook.com/pages/category/Coach/The-Running-Moms-1427712367475449/
[2] Remeto o meu leitor à resenha que publiquei no blog da autobiografia de Oliver Sacks, intitulada Sempre em movimento. Role a barra!


Em 25/11/2018, depois de minha 2a prova. Já em casa, cheirosa e feliz!

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