21:30, no Teatro Positivo: uma
mulher envolvida em um brilho lilás (seguindo a letra de Gilberto Gil: quanto
mais purpurina melhor) adentra o palco para levar a plateia a um estado de
alegria coletiva muito raro, depois de 2 anos. Alcione cantou seus sucessos
mais conhecidos acompanhada de sua banda fiel. A maior parte do tempo, cantou
sentada. Explicou ao público que vai fazer uma cirurgia na lombar em julho e
que tem, em seguida, uma turnê pela Europa. Por isso, era preciso ficar
sentada. Primeira coisa que faz pensar: 2 anos longe dos palcos teve
repercussão na vida dos artistas. Na vida de artistas que orbitam muito
distante da órbita de Alcione, o jejum da plateia foi fatal. Os artistas longe
do sol viveram de subsídios, dos amigos, dos parentes, de doações de fãs
desconhecidos e de dar nó em pingo. Não raro passaram necessidade, não tinham
como pagar as contas básicas, passaram fome. Mas a órbita de Alcione também foi
afetada. Imaginamos a quantidade de profissionais que são suas luas e que
dependem que ela esteja no seu lugar, no palco. Isso talvez ajude a explicar a
necessidade de vir a Curitiba para 1 show e cantar sentada quase todo o tempo e
mal conseguir terminá-lo. Alcione sequer apresentou a banda...
A gente não sabe se Alcione sentia
dor. Se sentia, a necessidade de honrar contratos e garantir o sustento de
todas as suas luas fez com que ficasse lá, no seu trono branco de rainha, ao
lado de uma mesinha, onde jazia seu copo de água e onde era depositada a sua
xícara de café quentinho. Se não sentia, imaginamos talvez remédios para
aliviar a dor, remédios que talvez tenham consequências no seu ânimo e na
mobilidade. Na voz? Duvidamos. A voz era aquela nossa conhecida... e sentada,
gesticulava, ia um pouco para trás no trono branco, jogando a cabeça, em
algumas canções em que a entrega amorosa é protagonista. O corpo combalido
tentava extravasar no limite imposto.
Alcione encantou a gente. Escolheu
as músicas a dedo. Todo mundo sabia cantar tudo. Fomos o seu gigante backing vocal. Não dava para levantar e
sambar... Outro dia, a gente foi a um show de samba, muito petit comité, ao ar livre, em que era possível sambar e a gente
sambou! Mas no Teatro Positivo não era possível. Todo mundo sentadinho, um
atrás do outro. Mas... os braços podem dançar! E eles vingaram os pés e os
quadris rebolantes. Teve um momento, antecedendo “Ébano”, em que ela perguntou
se havia ébanos presentes. Ora, havia... Uma de nós pensou que, se fosse um
ébano, teria levantado ali no meio do corredor e teria dançado para ela! Será que eu caí na sua rede, ainda não
sei...
Alcione não apresentou nenhum
lançamento, nenhuma criação pandêmica (como vemos vários artistas tentando
criar numa tentativa também de sobrevivência ao isolamento). Alcione passou por
vários sucessos de sua carreira, que todo mundo sabia cantar. Mexeu com nossa
memória e fez todos entenderem porque estavam lá naquele show. Na entrada, o
brilho cintilante de sua roupa contrastava com os Retalhos de Cetim. Na
passagem pelos seus sucessos, Alcione acrescenta um comentário essencial na
música O Surdo, que traz a "pancada de amor não dói". "Dói,
sim", a cantora finaliza a música marcando sua posição, ao mesmo tempo em
que data e documenta a produção de letras machistas na música brasileira.
Adendo necessário haja vista o público que a acompanha há anos e os novos ouvintes
de uma geração em que a violência contra mulher não deveria mais existir. No
meio do show, o ponto de beleza exuberante e esperançosa: Juízo final! Ah...
esse sol que há de brilhar mais uma vez. Os raios luminosos irradiavam na
plateia enquanto misturávamos a esperança nesse (re)nascer com a memória da
saudosa Clara Nunes! Quando estávamos prontas para gritar o tão significativo
"Meu vício é você", o show foi encerrado. Não teve nem BIS... E, não
sabemos muito bem por quê, o público não se animou a pedir. Compreensão sobre o
estado da cantora, talvez, necessidade de sair rápido do teatro para não
aglomerar, tanto tempo sem ir a shows que se esqueceram até de como pedir
BIS... Não sabemos.
Sobre o público, uma de nós
escreveu em 2016, um texto sobre o comportamento do respeitável público em um
balé infantil[1].
Remetemos nossos leitores a essa memória edificante... Mas o que havia de novo?
Pouco, afinal, quase todo mundo ali estava sem máscara. Quê?! Sim, um público
diverso, pintado de idades diferentes, gente de 20, de 30, 40, que passou dos
70 há um tempo, dos 80... e sem máscara. Enquanto isso, os veículos de
comunicação noticiam o rebote da covid-19. A gente tirou a máscara 2 vezes para
fazer 2 fotinhos e foi isso. No uber da ida e no da volta, máscaras. Só a
gente, pois os 2 profissionais dispensaram. A gente aprendeu a sorrir de
felicidade com os olhos, enquanto há perigo. Mas foi mesmo impressionante a
despreocupação.
Os atrasos, o levanta e incomoda a
fila inteira 1, 2, 3 vezes para ir sei lá onde, quando o 2º sinal já tocou...
No texto de 2016, uma de nós falava da ausência da etiqueta de plateia. Se você tem implicância com a palavra etiqueta, pode trocar por respeito que vai servir. Serviu para
uns, umas e outros, outras, no show de Alcione. No balé de 2016, uma de nós
tocou no problema do salto na escada, e fica aqui prometido um texto sobre
escada... O fato é que a gente tem de ter clareza sobre os limites do nosso
corpo, para se sentir mais confortável, à vontade e se divertir.
Mas, então, por que ir ao show?
Alguém pode alegar o não ineditismo do repertório e a disposição de todas as
músicas nas plataformas digitais como justificativa para não ir. Respeitamos.
Entretanto, a ida ao show é um pedido de presença. Sim, a presença da artista,
a presença da música, cujos únicos intermediários do som até o público são os
microfones e a mesa de som. O som "limpo", sem paradas para empresas
mandando a gente comprar alguma coisa (parênteses apenas para uma reclamação
sobre as propagandas ensurdecedores que antecederam o show. Mas só
antecederam!) O show é a troca de presença entre artista e expectador; é a
busca pela sinestesia que só a arte consegue produzir! A sinestesia que é um
dos nossos trajetos para o sensível, a sensibilização, tão necessária e um dos
caminhos de esperança para o sol que há de brilhar mais uma vez. Nós cantamos
alto, dançamos, ficamos emocionadas. Um show revigorante para artista, a
retomada da presença pelo público mesmo com incerteza... E a companhia especial,
que realça a cintilância (Gil de novo) do sensível. Alcione, volte mais vezes
para Curitiba. Há duas pessoas aqui esperando os próximos shows!
(Respeitável público, use máscara!)
Denise Miotto Mazocco
Marcella Lopes Guimarães
Em 29 de maio de 2022
[1] “Procura-se o respeitável público”
<http://literistorias.blogspot.com/2016/12/procura-se-o-respeitavel-publico.html>