Quem ama os livros sabe que eles
são grandes companheiros. No ano em que a terra parou por causa da Convi-19,
quem ainda tinha dúvidas sobre essa amizade talvez tenha tido um reencontro para
sempre. Como muita gente que conheço, eu li muito: li para a pesquisa que
desenvolvi e para a qual obtive uma licença, uma bolsa de estudos e a
oportunidade de pesquisar em bibliotecas extraordinárias da Universidade de
Poitiers, na França[1], e
li para conservar a minha saúde mental, para viver as vidas alternativas de que
preciso. Descobri muitas coisas bonitas nas escolhas que fiz este ano, lendo
livros em papel e livros no meu kindle[2], nos livros que ganhei de
presente e nas sugestões de leitura que acolhi prontamente de amigos e amigas.
De repente, no fim de um ano tão duro, achei que poderia partilhar essa beleza
que me salvou um tanto.
Então, abaixo eu reúno
exclusivamente os livros que li sem relação com a minha pesquisa ou
com meu trabalho como pesquisadora universitária. São livros lidos por prazer.
Alguns ajudaram a minha pesquisa de modo surpreendente para mim (!) e até outros
projetos, mas quero deixar claro que eu não os procurei para esses fins mais utilitários.
Então, assim como excluí os estudos acadêmicos, eu excluí desse texto o meu eu acadêmico rsrsrs... Trata-se de uma
lista animada por descobertas, impressões, paixões, abandono, enfado, desafio e
relações que eu fui construindo de forma meio selvagem, livre. Uma mulher com
seu amante, o livro[3]
(Clarice, Clarice...). Espero que os títulos e a tagarelice convidem os amigos,
alunos, ex-alunos, família, visitantes ocasionais do blog a lerem e a
investirem nessa amizade que faz a gente viver uma vida mais rica, sem ter
necessariamente recebido um aumento de salário.
Então, senta que lá vem história!
O Sobretudo de Proust: história de
uma obsessão literária da jornalista da RAI Lorenza Foschini foi o
primeiro livro que li em 2020. Li no meu Kindle recém comprado então. Fiquei
fascinada! Todo mundo sabe que eu amo o Marcel Proust, então eu amo seu bigode
fino, suas luvas, seu pincenê, seu olhar triste e seu casaco, ora!! Mas esse
livro é um trabalho de investigação. Li como um romance policial. Ele documenta
a dispersão dos objetos do autor depois de sua morte, fala do ressentimento de
familiares, da paixão de um homem (Jacques Guérin) por encontrar e reunir esses
objetos e o casaco está no Museu Carnavalet! Planejei ir ao encontro de tudo
isso, mas a crise sanitária me tirou a chance.
Logo que comprei o kindle, fiz a
assinatura unlimited e fui explorando
novidades como criança em loja de brinquedo onde é possível brincar! Depois do
casaco do meu amado Marcel, li A menina da neve da americana Eowin
Ivey, autora da minha geração. Nunca tinha ouvido falar. Fui atraída pela
sinopse. Que livro marcante! Um casal perde um filho e foge do olhar de
comiseração da família. Muda-se para os quintos, quase sem vizinhos. De
repente, encontra uma criança na floresta (!), mas essa criança é uma criança
livre, não pode viver com um papai e uma mamãe numa casa aquecida, não vai à
escola, não corresponde ao sonho do filho perdido..., ela é só ela mesma.
Fiquei um bom pedaço do livro achando que era uma criança imaginária, mas não
era! Chorei horrores, é claro, com minha filha ao pé de mim. A criança cresce,
torna-se uma moça, uma mulher, casa... ai, meu coração.
Depois de me emocionar com a
narrativa de Eowin Ivey (que foi inclusive finalista do Pulitzer), voltei para um amor conhecido em texto ainda não lido: Anne Brontë e A moradora de Wildfell Hall. Um romance rocambolesco! Fiquei exausta de tanto ir pra lá e para cá.
Talvez Anne Brontë não tenha tido tempo de revisá-lo… Narrativa dentro de
narrativa, narradores… Mas se trata de um romance de paciência e eu sou
alucinada por isso! Quem ama Persuasão
de Jane Austen levanta a mão! Enquanto lia o romance, eu conheci o trabalho da socióloga
Eva Illouz e não pude deixar de notar (e de me entristecer)
com o quanto a gente tem sido barato no “mercado”, entretanto, aquecido, das
relações amorosas. Eu não falo de diamantes, colar de pérolas e carrão, você
entendeu, o mercado do amor nos reduziu demais, ficamos desinteressantes, e ler
romances de paciência me lembra que na literatura a gente já teve mais valor:
que valia a pena lutar por nós!
Em A moradora
de Wildfell Hall, há um homem que ama uma mulher
que se enganou um dia e foi duramente maltratada pelo traste com quem casou.
Ela foge desse traste (Graças!), mas não se sente livre, para tocar a vida
amorosa, compreende? O homem que a ama de verdade espera, espera, espera, está
louco de amor, é meio biruta rsrsrs e, quando ela fica livre, ele hesita: será
que ela ainda se lembra...? Ai, meu coração! É claro que ela lembra!!!!!
Conversando com
meu amigo Prof. Martin Aurell em Poitiers, ele me emprestou o seu exemplar de Le portefeuille toulousain, de Michel Zink. Já escrevi sobre a carreira do Prof.
Zink e sobre sua aposentadoria no Collège de France[4]; ele é um autor importante
para minha pesquisa. Mas eu não sabia que tinha se aventurado na literatura! Um
romance leve, gostoso de ler, tem uma ironia fina. Foi meu primeiro romance em
papel do ano. De uma tacada, devorei a Primavera de cão de Patrick
Modiano, no Kindle; Le roi disait que j’étais le diable, de Clara Dupont-Monod e Aliénor
d’Aquitaine, do amigo Prof. Martin Aurell. Papel e papel. Modiano foi
um pouco decepcionante... Falei e saí correndo, pois ele ganhou prêmios
importantes. O romance de Clara foi uma descoberta em que mais uma vez o amigo
Prof. Martin Aurell tem culpa, uma boa culpa. Ela é ótima! Comprei 2 exemplares
para dar de presente para dois amigos. Sei o que você vai dizer: mas, Marcella, trata-se de sua adorée...,
então seu coração vai pré-disposto. É verdade e eu adorei o livro também!!!
Depois, ganhei o livro do Prof. Martin Aurell, com dedicatória fofa. Até sonhei
com a minha rainha! Então, eu tinha um romance e uma pequena biografia escrita
por um grande historiador. O mundo já estava pegando fogo e eu descobri uma
nesga de céu azul.
Ao longo de todo o primeiro
semestre, estive envolvida com um projeto que não tinha relação com a pesquisa.
Eu fazia coisas concomitantes. Inspirada por esse projeto, quis ler livros que
eu tinha deixado pelo caminho e reencontrei um velho amigo. Eu tinha deixado H.
G. Wells pelo caminho da vida. Ano passado, lendo com meus alunos um texto de
Marc Bloch que o mencionava, me prometi mudar isso e consegui. Encarei A
máquina do tempo e O homem invisível. Acho que li os
dois em três dias. Simplesmente amei! São livros geniais! Depois eu descobri
uma bela tese de doutorado defendida no PPGHIS da UFPR, sobre Wells[5]. Li trechos e pude
enriquecer a minha leitura. Logo depois, reencontrei o velho amigo Joaquim Manuel
de Macedo e a sua Moreninha. Vivi em Poitiers sonhando visitar Paquetá! Aviso: é para
românticos incuráveis. Segura na minha mão e vem. Os três no kindle.
Até então, fora uma suave decepção
com Modiano, sempre falando baixinho..., eu tinha gostado de tudo, com destaque
para A
menina da neve da americana Eowin Ivey! Um dia, li a resenha escrita
por Miguel Sanches Neto do livro Benção
do americano Kent Haruf. Fiquei interessadíssima. Passei a mão no kindle e...
cadê??? Benção só em papel. Mas como,
com um oceano no meio?! Encontrei disponível do autor o romance Nossas
noites. Esta foi a primeira grande, grande mesmo, descoberta do ano! Fiquei
tão encantada que escrevi um texto sobre o romance e publiquei aqui no blog em
junho. Dá uma olhada. Não vou me repetir, mas é de uma doçura que eu nem sei se
a gente está preparando nesse mundo tão baratinho para o amor... Saber que
Haruf morreu em 2014 me corta o coração. Um dia vou ler tudo dele e me sentar meio
bêbada no meio fio para chorar não ter mais.
Há um tempo, eu ouvia falar de Carlos
Ruiz Zafón. Acho que minha grande amiga e irmã da vida Renata Nascimento leu a
obra completa dele e tinha me dado de presente há uns dois anos A
sombra do vento. Zafón faleceu este ano, em junho, então a tristeza de
seus fãs me despertou: eu tinha de honrar o presente. Fiquei com dois
exemplares: no kindle e em papel. Amei! Livro sobre amar os livros!!!!
Mistério, Barcelona, personagens para a gente amar, odiar, ter muito medo...
Não contente em ler, impus Zafón a uma de minhas irmãs, que está adorando. Mas
há outra coisa nesse livro, sobre a qual já falo.
O convite de uma pessoa querida
para escrever a orelha de um livro que ela organizou me revelou a obra de uma
historiadora que eu não visito na minha pesquisa. Trata-se de Maria Lúcia
Garcia Pallares-Burke. Fiquei muito impressionada com sua carreira e resolvi me
dar ao luxo de mergulhar no seu robusto e premiado Gilberto Freyre: um vitoriano dos
trópicos. Foi fácil, tem no kindle! Como não estava na minha assinatura, eu comprei com dois toquinhos. Li essa biografia intelectual do Freyre como
li os romances anteriores, sem grandes pretensões, mas com pré-admiração pela
autora. Que livro maravilhoso! Finíssimo, bem escrito, erudito, sem ser chato
ou arrogante, aliás, delicioso! E atenção: delicado... Uma coisa meio rara.
Surpresa para mim: ele me ajudou na pesquisa; ele me ajudou a pensar o meu
texto.
Outro presente que eu resolvi
honrar foi o Par les routes de Sylvain Prudhomme. Foi presente de minha
amiga Patrícia Gaspar quando me visitou em Poitiers, antes do pandemônio ou da
pandemia (ou antes que pressentíssemos...), o que você preferir. Ele ficou me
olhando uns meses. Trata-se da história de dois homens e uma mulher. Os homens
são grandes amigos e essa amizade se espraia para a mulher, esposa de um deles.
O personagem que motiva o título (tenho dificuldades de compreendê-lo como
protagonista) é um homem que deixa a sua casa, a mulher e o filho
periodicamente para fazer viagens de carona, pela França. Assim, do nada. Vai
sozinho. Não vai em busca de drogas, aventuras sexuais, ainda que... vai porque
gosta de estar na estrada. Com o passar do tempo, suas ausências prolongadas
fazem com que sua esposa, o amigo e o seu filho pequeno descubram na companhia
uns dos outros um milhão de sintonias, o amor compartilhado. Um dia, esse homem
que gosta de se evadir some. Agora o clique: eu tenho lido há algum tempo
histórias em que os personagens somem, eles se despersonalizam!... E isso desde
pelo menos a tetralogia de Elena Ferrante. O que aconteceu com Lila? Em Zafón,
a gente também encontra o tema e há outros romances mais abaixo que me fizeram
pensar sobre personagens que somem. Não se trata de personagens sequestrados ou
mortos, ok? São personagens que decidem sumir, escapar da vida que viveram.
É de Par les routes a epígrafe
que escolhi para o livro que compreende parte substancial da pesquisa acadêmica
que realizei este ano. Então, sem querer, esse livro me ajudou! Devo dizer,
entretanto, que não gostei de uma coisinha mínima (talvez não tão mínima...)
nesse romance e a razão vai ficar mais clara daqui a pouco, quando eu abordar a
maior decepção do ano.
A Amazon é meio engraçadinha. Além
de me oferecer meus próprios livros, de vez em quando planta ofertas, além da
assinatura... Na empolgação, comprei Carta a um refém de Antoine de
Saint-Exupéry. Amei! Livro sobre amizade. Fofo demais.
A maior decepção do ano foi o
romance A noiva jovem de
Alessandro Baricco. A sinopse do kindle me enganou. Lembra que eu disse no
início que esse texto é um conjunto de impressões não acadêmicas, pessoais etc
etc etc? Então, se você tem tese sobre Baricco, pule o parágrafo para não se
chatear comigo. Uma jovem, quando chega à idade acertada, vai para a casa do
noivo a fim de casar-se com ele. Ele não está. Ela espera. Na casa, acontecem
mil coisas. Rapidinho: livros são proibidos nessa casa. Eita... Mas ela consegue
clandestinamente um Dom Quixote, opa,
estou gostando... É seduzida pela futura sogra, uma mulher muito bonita e
misteriosa. A menina esquece o Quixote,
putz, era uma falsa pista (!), a sogra se enfada e aí ela vai esperar o noivo
em um prostíbulo, único lugar em que Baricco acha que ela é capaz de trabalhar!
Talvez esse livro pequeno deixe alguém excitado... Mas sinceramente a cena em
que a noiva senta no colo de certo personagem que não queria aquele peso é enfadonha.
Você me pergunta: nada presta? O noivo é um personagem de despersonalização
também. Ele fica o livro inteiro sumido, sua presença são os presentes obtusos
que ele envia. Mas seria ele mesmo? Só que Baricco frustra até nisso, pois o
noivo aparece afinal e vai buscar a noiva, coitada, no “escritório”... A
coisinha pequena de que não gostei em Par
les routes tem relação com esse meu desgosto com Baricco. Em ambos os
livros, A noiva jovem e Par les routes, as mulheres estão tão
disponíveis que me irritaram. Esses autores homens e suas fantasias...
Minha redenção veio com a segunda
maior descoberta do ano: Júlia Lopes de Almeida. Fuçando o kindle, dei-me conta
de que tinha à minha disposição vários livros dessa autora brasileira. Mas quem
era ela?! Contei parte da minha surpresa em outro texto que publiquei em
setembro aqui no blog. Li A Intrusa e fiquei aturdida, fascinada. Um romance que me fez lembrar da Confissão de Lúcio, de Mário de
Sá-Carneiro, romance perturbador e que eu adoro. Em A Intrusa, um homem viúvo
precisa de uma governanta, sabe que isso pode gerar fofoca..., então, para
manter-se fiel a uma promessa feita à mulher morta, nem quer olhar a
contratada. Trata-se de Alice Galba. Alice é uma sombra no livro, mas vai se
personalizando..., o contrário do fenômeno que mencionei antes!!! Argemiro não
a vê, mas sente seu perfume, acha um livro seu aberto na sala, deslumbra-se com
as flores em um móvel, com o jardim, escuta o farfalhar de sua saia (farfalhar
é lindo, não?), encanta-se com tudo em que ela toca na casa, encanta-se com o
efeito dela sobre a sua filha! Um dia o véu que cobria o rosto de Alice
revela... eu paro. Todo mundo tem de descobrir a Júlia!
Saudosa dos meus clubes do livro,
li dois livros em sequência sobre clubes do livro! Ambos viraram filmes e são
livros deliciosos. Boas opções para darmos de presente para uma pessoa que não
sabemos se é leitora: A sociedade literária e a torta de casca de
batata de Mary Ann Shaffer e Annie Barrows e O clube de leitura de Jane Austen de Karen Joy Fowler. Eu gostei mais do
primeiro. Ambos, no kindle.
Minha amiga Denise Mazocco tinha
lançado seu segundo livro, Peças e pensarias, em julho. Eu que tinha gostado e
prefaciado o seu Primeiro voo, logo
que pude comprei Peças para ler. Livro
bonito, bem escrito, sobre amizade, sobre brincar com as palavras (Denise é uma
linguista e para mim convida as pessoas a verem perspectivas menos óbvias na
sua formação), sobre fantasia de Carnaval, sobre famílias que se transformam e
aí uma delicadeza para abordar um assunto difícil na infância (só na
infância?)... Ótima dica de presente para os leitores autônomos. O livro é
prefaciado pela professora e pesquisadora Teresa Cristina Wachomicz, pessoa
querida da Denise e minha também.
Por falar em Literatura
infanto-juvenil, li O homem que não parava de crescer de Marina Colassanti com a Clarinha, a contragosto dela... Quando
era pequena, líamos muito para ela. Depois que ficou autônoma, demitiu a gente.
Agora, os livros estão meio de lado, eles concorrem com seus desenhos (em papel
ou digitais), com suas animações, com suas conversas com as amigas, de quem ela
está há tanto tempo longe... Eu continuo tagarelando sobre os livros, quase
derrubo-os sobre seu colo (de propósito). Clarinha tem azar: sou mãe
experiente, não desisto fácil! O livro de Marina é delicado e fala sobre pais e
filhos, fala sobre amadurecimento.
E não é que a minha Júlia Lopes de
Almeida escreveu um livro com um de seus filhos?! Ah, Júlia, senta aqui ao meu
lado... Trata-se de A Árvore. O texto do blog que referi acima é sobre esse lindo
livro! Kindle, kindle... Depois desse, li ainda da Júlia Ânsia eterna, livro de
contos que me lembraram demais o Maupassant! Veja o desacerto: conheci o Guy de
Maupassant antes da Júlia! Na Ânsia
de Júlia, descobri contos fantásticos, contos de terror, histórias
mirabolantes, cruéis e tive até medinho... Sinceridade. A Júlia me levou ao
livro A alma encantadora das ruas
de João do Rio. Eu fui aluna de Luiz Edmundo Bouças Coutinho na UFRJ e acho
que ele ficaria feliz em saber dessa minha redescoberta.
Mas, sabe, em uma etapa cabeluda da
minha pesquisa, necessitada demais, fui buscar apoio nos braços de Marcel
Proust. Na verdade, não foi “do nada”... Ele apareceu em uma curiosa nota de pé
de página de um autor que foi se tornando importante para minha compreensão dos
trovadores: Charles Baladier. Encarei a miscelânea Contre Saint-Beuve de
Proust. O livro foi parar no meu livro sobre trovadores medievais! Há lá uma
nota imensa em que eu discuto uma coisa que foi o amado Marcel que me suscitou
(e ao Baladier também). Match!
Um dia, minha professora de francês
propôs que os trabalhos do clube do livro de francês voltassem. Lemos o badaladíssimo
Boujour
tristesse de Françoise Sagan.
Achei interessante não pelos motivos que eu li por aí, mas por um aspecto da
narradora protagonista que já vi em outros livros e na vida: ela me fala sobre
o perigo das pessoas superficiais... Eu me lembrei na hora de Elena Ferrante e do
personagem Nino Sarratore, um dos personagens que mais odiei nos últimos anos.
Escrevi sobre isso aqui no blog, em 2017. Com minha professora, li também o
breve e lindo Monsieur
Ibrahim et les fleurs du Coran de Eric-Emmanuel Schmitt. Livro de encontros.
Os três próximos livros foram sugestões de uma amiga para um projeto
novo, mas eu não li constrangida por isso. Li porque eu quis. Na ordem de
leitura: Meus desacontecimentos de
Eliane Brum, Ideias
para adiar o fim do mundo de Ailton Krenak e O
olho da rua de Eliane Brum. Adorei saber mais sobre Elaine Brum e esses
dois livros me emocionaram muito: o primeiro uma autobiografia da relação dela com
a escrita e o segundo uma reunião de suas reportagens favoritas seguida da
autocrítica favorecida pelo tempo. Corajoso. Eu ri e chorei, lendo. O livro de Ailton
Krenak me mostrou que eu ainda preciso saber mais sobre ele, estudar. Um
convite. Ano que vem, pretendo ler mais esse autor.
O romance L’absence de Jean-Denis
Bredin caiu na minha cabeça no escritório desarrumado pela minha ausência.
Achei que ele me pedia então. Uma descoberta. Novamente eu me vi com a
despersonalização..., com o apagamento do eu como escolha. O livro é dos anos
80, então não dá (ou dá?) para dizer que é uma coisa de agora: Ferrante, Zafón,
Baricco, Sylvain Prudhomme... Eu preciso pensar mais. O enigma literário que
vou levar para 2021.
Há um tempinho ganhei de uma das
muitas pessoas queridas da minha vida O filho de mil homens de Valter Hugo
Mãe. Eu conhecia Mãe de textos breves, aqui e ali, e por dois livros que
comprei para a Clarinha e para mim: A
História do homem calado e As mais
belas coisas do mundo. Livros encantadores! Em O filho de mil homens, Isaura
e Antonino me fizeram sofrer demais, porém infinitamente menos do que os dois
penaram no romance..., mas o Crisóstomo é um desses personagens que nascem de
uma esperança imprevista, que escapou do peito do escritor e que o escritor
permitiu que vingasse! O livro é dedicado às crianças... Ele me “ensinou” que
se a gente se sente inteiro ainda pode ser o dobro! Eu flutuei. No final, ele também
me fez pensar em História, em tempo longo e em reconexão com uma história maior
que nossa vida pequenina... Temas candentes para mim e que estão em vários textos
que escrevi e publiquei. Tenho uma amiga que vai amar esse parágrafo sobre seu
deus particular...
Este ano uma pessoa amiga lançou
seu primeiro romance por uma editora que me é cara: Adriana Martins lançou Berenice
da capadócia: jornada do não herói. Amanhecer, pela editora Máquina de
Escrever. Trata-se de um romance histórico e de aventuras, ambientado no século
IV de nossa Era. Esse é só o primeiro volume da saga. Eu gostei de como as
camadas de tempo se entrelaçam no texto: a pesquisa da autora, seu esforço de
ambientação (finíssimo em Adriana, que é historiadora. O livro tem ricas notas)
e o tempo que se insinua pela estratégia – no autor modelo. Trata-se de um
romance sobre uma moça simples que começa a vida e a narrativa como pastora na
Capadócia. A personalidade de Berenice é
em grande parte moldada pelo contador de histórias Matathias, a quem ela salva
e que se torna seu melhor amigo. As suas aventuras/agruras são de fato
emocionantes. As violências sofridas no palácio da “perfumista” Lewellyn, a
amizade com a doce Licínia, o “crime”, a vida junto aos Charmosos Maltrapilhos
e depois encontrar o amor junto a Ezana... A vida de Berenice não é fácil e
acho que os leitores interessados lerão um capítulo da história das mulheres no
tempo, por meio de um romance bem escrito e informado. Já estou à espera dos
próximos volumes, Adriana!
Li um romance inédito de uma amiga.
Não posso avançar, ela ainda não publicou. Agradeço a confiança da partilha. Espero
que ela possa publicá-lo em 21. Sei que é trabalho de anos, em que juntou
experiências estéticas e coração.
A Bênção de Kent Harut chegou no Natal. É o último livro desse ano de
leituras e peço perdão ao leitor cansado para... um pouco mais. Ainda que
tenhamos trocado presentes e celebrado um nascimento à mesa em casa, estávamos
machucados pela morte de um amigo bem no dia 24 (role a barra e leia aqui no
blog). A leitura foi dura... Bênção é
a narrativa do último mês de vida de um homem: Pai Lewis, dono de uma loja de
ferragens no condado de Holt (Nebrasca), casado e pai de Lorraine e Frank. Simples,
Harut vai devagar. Pai Lewis não via o filho há anos. Filho gay; filha sobrevivente
de uma filha morta aos 16 anos. Pai Lewis sobreviveu também: ao antigo
funcionário ladrão e depois suicida, casado com uma mulher que ofereceu a Lewis
compensação do furto com um sobretudo aberto. Hã?! É isso mesmo. Vizinho de uma
senhora que perdeu a filha jovem demais (também) e herdou uma neta criança
demais... Amigo de duas mulheres valentes, sozinhas (Willa e Alene)... Vai
devagar, Haruf. Ele sabe do ofício. Eu já tinha visto isso em Nossas Noites. Como ele nos arrebata? Vou
dizer. Ele descobriu uma saída, ao retirar toda a vaidade do narrador. É como
se ele deixasse os personagens na nossa frente e dissesse: conheçam-se,
descubram-se, eu já volto. Mas ele está ali, atrás da cortina.
Bênção
me
emocionou. Talvez não tenha sido o
melhor momento... Mas 3 cenas me tiraram da sarjeta literária. 3 banhos! O
primeiro, tão bonito quanto o banho que Lenu deu em Lila antes do casamento de
Lila (Amiga genial, de Elena
Ferrante). Lorraine, Willa, Alene e a pequena Alice fazem piquenique, tomam sol
e sentem calor. Há um reservatório logo ali, que bom para refrescar! É Lorraine
quem se desnuda primeiro: seu corpo aos 50 anos é bonito, natural. Depois, cada
uma, desde a pequena Alice até Willa. Corpos disciplinados, de repente em
liberdade. Elas riem surpresas da descoberta da sua nudez. Etapas da vida de
uma mulher. Quando Willa mergulha, a água desmancha seu coque de velha em um
longo e farto cabelo branco! Choro. Há uma profunda comunhão ali. Não, não há
nada erótico. Esquece o Baricco! Lorraine segura a mão pequena de Alice. A água
está fria, a menina sente – “Meu Jesus!”. Lorraine diz: “Você tem de gritar”.
Eu quero também. A pequena responde: “Filho da puta!”. Todas elas riem. Chorei
outra vez. São poucas falas, o que significa que o narrador está ali o tempo
todo, mas Kent é tão respeitoso que a gente nem sente o seu voyeurismo. Os outros banhos são os da
despedida de Pai Lewis. O primeiro, seu corpo ainda vivo, entregue aos cuidados
da mulher amada; o segundo, a filha e a mãe preparam o corpo morto do
personagem. Miguel Sanches Neto também ressaltou o banho das mulheres na sua
resenha.
Na manhã em que terminei Bênção, eu recebi a notícia da morte de
uma outra pessoa: o marido de uma das mulheres mais importantes de minha vida.
Eu pedi Bênção como presente de Natal
e você pode ler essa frase de outro jeito, tirando o itálico. A leitura ficou
entre perdas reais e eu não sei bem se as páginas me fizeram sofrer mais ou se Kent
Harut me deu aquilo que Paul Ricoeur anteviu em Soi-même comme un autre sem “resolver” a questão, com aquela
delicadeza que era a sua marca intelectual: “Quanto à morte, as narrativas que
a literatura faz dela acaso não têm a virtude de embotar o aguilhão da angústia
em face do nada desconhecido, dando-lhe imaginariamente o contorno desta ou
daquela morte, exemplar por uma razão ou outra?”[6].
Eu abandonei uma dica de leitura de
amigo: San-Antonio renvoie la balle...
Isso me corta o coração. Li 1/3 da obra e não gostei. É direito do leitor
abandonar, eu sei, mas é direito abandonar a dica de um amigo?! Ano que vem, eu
tento pagar a dívida do coração.
São 35 livros lidos exclusivamente
pelo meu prazer, sem relação com meu projeto de pesquisa. Não é uma lista
descomunal. Não dá 3 por mês. Em dois meses, março e agosto, eu quase não li “outras
coisas”, ocupadíssima com a pesquisa, com o acesso às bibliotecas, com as
reviravoltas do mundo, com meus temores, minha saúde, minha filha – menina
demais. Mas 35 livros acompanharam os meus estudos acadêmicos, a tradução que
encampei, minha escrita ensaística e a escrita de uma nova história. São livros
parceiros de outros, meus parceiros. Livros fuga, livros salvação... Para o
próximo ano: meu enigma literário, dois livros começados em 2020 nos dois
clubes do livro de que faço parte e para os quais voltei – o Romance da pedra do reino de Ariano
Suassuna e La vie devant soi de
Romanin Gary – e um terceiro, começado mesmo ontem, sugestão da minha querida
Sofia Silva: Torto arado de Itamar
Vieira Júnior. Mas esse, vou bem devagar, pois quero esperar uma pessoa. É
gostoso isso: romances começados e companheiros para desbravar 2021; juntos:
eu, eles e as pessoas queridas com quem os leio ou de quem me lembro em cada
página, com quem converso. Livros e gentes. Acho que 2021 pode começar assim
logo mais.
[1] A lista desses livros em particular estará
na bibliografia do livro que pretendo lançar no próximo ano
[2] Há alguns anos meu ex-orientando Victor
Alvim me falou do Kindle: Profe, você
precisa de um! Eu, preguiçosa e burra para as tecnologias, deixei para lá.
Ano passado, meu orientando Renato Toledo e minha amiga e ex-aluna Daniele
Shorne me convenceram afirmando que minha burrice contumaz não me impediria de
dar conta do kindle, além disso eu não podia incluir livros na minha única mala
permitida para tantos meses de França... Renato me falou da assinatura e ele
tinha razão. Fiz e ela se pagou desde sempre.
[3] Aludo aqui ao conto de Clarice Lispector:
“Felicidade clandestina”.
[4] Em 2016: <
http://literistorias.blogspot.com/search/label/Michel%20Zink>
[5] < https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/40904/R%20-%20T%20-%20FABIO%20LUCIANO%20IACHTECHEN.pdf?sequence=1&isAllowed=y> acesso em 21 de dezembro de 2020.
[6] RICOEUR, Paul. O si-mesmo como outro (1ª ed.). São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2014. P. 173. Levei essa mesma questão para meu livro sobre os
trovadores...