Tomé não tem uma fama bacana.
Individualista? Incrédulo? Antipático? Só acreditaria nos amigos se visse...
Todo mundo já ouviu falar nesse drama. Quando Jesus adentra a casa dos seus, alguém
já parou para pensar que os discípulos estavam trancados cheios de medo e Jesus
simplesmente “apresenta-se” na sala?! Por onde entrou? O evangelho do dia de
hoje – João: 20, 19-31 – lança Tomé no meio de uma história que mexe com a
gente. Achei engraçado que hoje justamente a carta escolhida tenha sido uma de
Pedro, o que negou, afinal... É uma gente cheia de arestas essa de que Jesus se
acercou.
Mas
voltemos à casa de portas trancadas. O evangelho é claro: os discípulos estavam
trancados porque estavam com medo. Quando Jesus chega (de onde?), fala “A paz
esteja convosco” e nada... O texto também é claro ao dizer que Jesus mostra as
mãos e o lado. Aí os amigos se enchem de alegria. Devo lembrar que, quando
Madalena confundiu Jesus com o jardineiro (rsrsrs), bastou que ela o ouvisse
chamar-lhe para reconhecê-lo... Mas bora retornar a casa. Jesus fala de novo:
“A paz esteja convosco...” e insufla-lhes o Espírito Santo.
Ora, por que esse conjunto de
versículos catapulta Tomé? Porque Tomé NÃO estava na casa de portas fechadas! Ué,
não é mais amigo dessas pessoas? Ou simplesmente não queria se trancar com
medo? Sei que a reposta à primeira pergunta é NÃO, pois esses amigos contam
para ele a novidade da visita de Jesus. Ora, se não fosse mais amigo deles, das
duas uma: ou os discípulos receosos não lhe contariam a nova pelo perigo ou nem
teriam tido a chance de fazê-lo pelo distanciamento. E a segunda questão? Dada
a ousadia da frase: «Se não vir
nas suas mãos o sinal dos cravos, se não meter o dedo no lugar dos cravos e a
mão no seu lado, não acreditarei» jogada na cara dos receosos, eu tenho dúvidas. Minha dúvida quase
se apaga quando penso que, alguns dias depois, Jesus reaparece lá naquela casa “de
portas fechadas” e sabe quem estava lá?! Tomé! Por onde Jesus entrou mesmo? Eu
adoro essas repetições e ao mesmo tempo a falta de explicação do texto
bíblico... Eu e Erich Auerbach! Metida.
Jesus
conhece bem esses amigos. Depois de saudar a todos com o seu costumeiro “A paz
esteja...”, ele vai diretinho para Tomé: “Põe o dedo..., vê..., aproxima a tua mão...”. Só no fim pede: “Não
sejas incrédulo...”. Jesus compreende que Tomé tem necessidade de fatos.
Compreende-se também que Jesus conclua “felizes os que acreditam sem terem
visto», afinal ele curte narrativas, parábola aqui, parábola acolá. Mas tanto
os medrosos da primeira cena quando os medrosos e Tomé da segunda precisaram
ver.
Jesus compreende. Ninguém ouviu
Jesus dizer:
- Ei, vem cá! É tu mermo. Pra começá: onde é que tu tava quando eu vim
aqui outro dia me arriscando e soprei o Espírito Santo na cara de todo mundo?
Por acaso, tu tava na casa de Marta passando pano na cozinha ou lavando os
tupperware? (imagino que na hora da exaltação, Jesus teria esquecido as flexões
verbais e concordâncias de número, como qualquer pessoa furibunda). Olha aqui, eu
morri, ressuscitei três dias depois, tu sabe o que é isso? Olha esses
machucados na minha mão, põe teu dedo medroso devagar porque num sarô de todo. Tu
entrô na máquina do tempo e foi parar em 2020? Tava de quarentena onde e com
quem? Firma esse corpo, homi, ou então vaza de vez.
Nada disso está nos evangelhos.
Tomé ouviu as parábolas, viu,
sofreu junto, dispersou-se com medo e depois precisou dar um tempo. Chamado
pelos amigos, teve necessidade de mais do que uma história para acreditar.
Imagino que Tomé sairia do grupo de whatsapp ou colocaria uns e outros crédulos
na soneca. Para mim, ele foi responsável, não descrente. Ora, por que Jesus
permitiria a ele o que não havia permitido ainda a ninguém? Certamente achava
que ele valia a pena, mesmo que tivesse um zelo muito particular pelos fatos. Aliás,
depois dos fatos, Tomé é o mais íntimo: “Meu
senhor e meu Deus”.
Esse conjunto de versículos é um
primor. Visão, audição, tato... imagino que havia ali naquela casa trancada qualquer
coisa para se comer e que cheirava bem. Cadeiras arrastadas, já são horas! Todos
querem ficar perto do senhor. Uma nova ceia. Talvez conversassem animados pelo
vinho, Jesus teria novo repertório de parábolas fresquinhas de sua experiência
excepcional! Ninguém as escreveu... Depois da janta imagino que a louça tenha
ficado para Tomé, por causa da má-criação. Todos riem. Ele, sério. Um homem
preso aos fatos, não ao blá-blá-clá dos amigos de pouca coragem. Homem que precisa
verificar os dados.
Enquanto todos cochilam na sala, Jesus
caminha em direção à cozinha. Pega um pano de prato e se põe ao lado de Tomé. Seus
braços se tocam na passagem dos pratos molhados.
- Mestre, cuidado para não molhar os machucados.
-
Bem que cê pudia tê trazido um merthiolate lá da máquina do tempo, né? Piscou.
Tomé abana a cabeça. Esse mestre adora uma parábola. Pensou.
A incredulidade de Tomé, de Caravaggio (pintado entre 1601 e 1603)
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