terça-feira, 3 de julho de 2018

O arroz doce da minha tia Graça


O blog LITERISTÓRIAS está muito perto de completar 3 anos. Nesse tempo, fui constante, bissexta, militante da educação, contista e cronista. Neste 2018, desaparecida é uma boa definição... Tenho uma surpresa preparada para o aniversário, mas enquanto ele não chega, achei que contar uma história de família seria uma boa oportunidade de voltar. Uma história passada em grande parte à mesa.
Na 6ª feira passada, arranquei da minha tia a sua receita de arroz doce. Na verdade, não é justo dizer arrancar..., afinal a receita me foi oferecida logo que perguntei, com meu caderno em punho. E minha tia me foi narrando, sem lista de ingredientes e modos de fazer bem delimitados. Enquanto escrevia, eu me lembrava do Livro de cozinha da infanta Maria, que está em meus Capítulos de história: o trabalho com fontes (Curitiba: Aymará, 2012). Tudo se apresentava em sua narrativa misturado, como quem está na cozinha, em ação. Anotei do jeito dela:

1 medida de arroz afogado[1] por água na panela. O arroz tem de ficar bem mole, Mar. Depois, cobre com leite. Isso, quando estiver quase seco...

O arroz doce de minha tia Graça não é o arroz doce que ela aprendeu com a mãe dela, a minha avó Nair de Jesus Cardoso Lopes. É o arroz doce que ela inventou, a partir daquele aprendizado, na vida. Uma vida às vezes com poucos ingredientes, em que era preciso improvisar muito. Sua neta não gosta de coco, então nada de leite de coco na canjica!
O arroz doce da minha tia é muito simples e é feito com elementos que costumamos ter em casa. Na sua simplicidade, agrada gregos, troianos e a Maria Clara, meu muito objetivo interesse pela receita. Desde 6ª passada, fui assediada para preparar o prato.
Preparei a receita hoje. Enquanto cozinhava, entretanto, percebi uma coisa importante. A receita de minha tia requer uma presença. Requer inteireza. Isso me fez pensar nas leituras que tenho feito sobre o “Mindful eating”, ou seja, “comer com atenção plena”[2]. Para avaliar se o arroz está secando, é preciso olhar, experimentar e comparar (com o cozimento do arroz de minha tia, meu parâmetro). A cada passo, eu precisava ter atenção. Não podia estar naquela receita corrigindo prova... Eu queimaria tudo. Mas é preciso dizer que muitas vezes faço o meu arroz e feijão diários com o notebook na cozinha, respondendo a e-mails e marcando reuniões. Descasco o alho com que vou refogar o feijão, amasso, lavo as mãos, confundo os panos de prato e olho a tela do computador. Onde estou de verdade?
Minha mãe e minha tia são gêmeas, é por isso que Maria Clara chama a tia-avó de Vovó G (Vó Graça). Para ela, é muito simples e óbvio ter 3 avós. O rosto de minha tia me remete à minha própria mãe, mas também à sua singularidade. É ser quase igual, em tudo semelhante, mas não a mesma... Seu arroz doce é seu, sendo parecido com o de sua própria mãe e ofertado a mim, sua sobrinha quase filha. Um mundo de quases perfeitos!
Enquanto escrevo, vejo o arroz doce sobre a mesa, pronto e coroado de canela, a esfriar. Está cheiroso. O arroz doce de minha tia chega aqui em casa em tupperwares, organizado por ela para mim. Em dias de festa, chega nas travessas mais bonitas disponíveis na casa dela. Travessas de enxoval! O arroz doce da minha tia Graça tem um monte da inteireza dela, seu tempo passado e seu tempo presente. Ela. 
Enquanto escrevo, ele ainda está quente. Um bom exercício de paciência para minha filha! Será que comemos ainda hoje? O arroz doce será nosso quando ele quiser, no futuro. Mas quando amanhã esse futuro for passado eu poderei fechar esse texto com a avaliação da crítica gastronômica de 9 anos. Ela dirá se o arroz doce da Vovó G é realizável fora de seus domínios.
Teria minha tia escondido algum segredo? Não é de seu feitio, mas é do feitiço das cozinheiras... Fazer esse arroz doce em plena 2ª feira foi para mim uma chance de estar comigo mesma, sob a supervisão imaginária dela na cozinha. Será que ela aprovará? Espero que a gente consiga guardar uma parte para devolver o seu tupperware.

Em 2 de julho, às 19:40.

Epílogo:
Em 3 de julho, às 7:18. A verdade? Ficou um pouco seco. O arroz doce de minha tia é mais úmido. Acho que ele me enganou... Quando deitei o conteúdo da panela na travessa, ele estava muito úmido, mas a comida tem seus caprichos. Isso eu já aprendi há muito tempo! O pai e a filha comeram e repetiram. Acho que foi para me animar. Mentiras sinceras me interessam... Bom dia!




[1] “Afogado” no Livro de Cozinha da Infanta Maria é refogado. No sentido de minha tia, é cheio de água ou leite.
[2] Há alguns anos minha mãe me deu de presente uma assinatura (que ela renova sempre) da revista Saúde e este ano a revista deu aos assinantes o livro Mindful eating. Comer com atenção plena de Cynthia Antonacchio e Manoela Figueiredo (São Paulo: Abril, 2018). Leitura que vale a pena!

5 comentários:

  1. Abriu o apetite, para arroz doce, outras comidas, comer (e cozinhar) com atenção plena...e, sobretudo, por conhecer mais sobre Marcella e literistorias.

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  2. Minha querida Mônica, que honra receber a sua visita aqui! Nesse blog experimento e compartilho a minha natureza anfíbia, entre a História e a Literatura. Acho que há muita coisa que presta um serviço objetivo a nossos alunos, como os numerosos materiais sobre resenha e as entrevistas (com grandes pesquisadores e com um poeta do Pará, que admiro muito). Fique à vontade para vir quando quiser e divulgue, se considerar que pode ajudar ou proporcionar aos alunos e amigos uma leitura bacana! Beijão!

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Prezada cozinheira, permita-me este comentário: simplesmente perfeito! Amei o trecho: "É ser quase igual, em tudo semelhante, mas não a mesma..." Matematicamente, o semelhante não é um igual, pois não é o mesmo, mãe e tia, arroz doce e embebição. Colheradas do mesmo prato podem ser semelhantes, talvez nunca iguais. Aliás, embevecido tem origem etimológica em embebido. Molhado pode ser, no português brasileiro, o estado do ébrio, como querer dizer "encharcado", nunca recomendável se pensamos em nos mantermos nós mesmos. Afinal, nesta linda crônica, podemos repetir as leituras, com as colheradas de mais sabor nos detalhes da nobreza de um texto que emanou da vida ao rés do chão da cozinha. Obrigado pelo momento consigo mesma em plena 2ª feira! Que sabor sem igual!

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  5. Prezado Pedro, obrigada por sua leitura e por esse rico e saboroso comentário! Um bom julho!

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