segunda-feira, 30 de abril de 2018

Três DESAFIOS propostos ao PROFESSOR: Conferência proferida no Instituto Internacional da Língua Portuguesa da Cidade da Praia em Cabo Verde (África), dia 26 de abril de 2018.

Obs.: As imagens indicadas no texto foram mostradas em PowerPoints, mas não serão trazidas para cá.

Três DESAFIOS propostos ao PROFESSOR

Em 2015, depois que a jovem Malala Yousafzai conclamou os países membros da ONU na própria sede da organização a firmarem uma promessa de que cada criança tenha direito à educação livre e de qualidade, fotógrafos da agência internacional de notícias Reuters reuniram imagens de salas de aula de várias partes do mundo em uma galeria. Esse conjunto de imagens difundiu-se de forma exitosa nas redes sociais e ratificou o que já sabemos há décadas: que há uma enorme disparidade de condições oferecidas pelos países e pelas instituições de ensino para que crianças pelo mundo afora realizem seus estudos.

Escolhi algumas imagens da galeria, quase sem critério. (Imagens). O que há nesse conjunto de fotos escolhidas por mim da galeria[1]?

·        Mobiliário (mas nem sempre...)

·        Materiais

·        Salas pequenas e lotadas; amplas e lotadas; amplas e esvaziadas

·        Paredes (mas nem sempre...)

·        Murais com trabalhos, recados

·        Atitudes/proximidade

·        Meninos e meninas, um professor, professoras

(Planisfério)

O que há em todas essas imagens? Meninas, meninos, um professor e professoras.

(Imagens da Antiguidade e da Idade Média)

O que há nessas imagens? Alunos e professores.

O tempo mudou a forma do livro, do rolo para o códice; do códice para o ipad..., mas alunos e professores estão em todas as fontes que trouxe aqui.

Entretanto, em 2016, o jornal da USP publicou uma matéria intitulada: “Robô professor ensina geometria a adolescentes”[2]. Segundo a matéria:

Entrar em uma sala de aula e ser recebido por um robô humanoide que ensina geometria. Como será que adolescentes reagem a esse novo professor e a suas diferentes formas de ensinar? Esse é o foco de diversas pesquisas que estão sendo realizadas no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos.
Entre os trabalhos relacionados ao tema está um projeto de mestrado que utilizou o Robô NAO para ensinar geometria a 62 adolescentes entre 13 e 14 anos de escolas públicas e particulares de São Carlos. Por meio de um sistema de visão computacional, o robô foi programado para reconhecer figuras geométricas planas.
(...)
No final das atividades, [o pesquisador Adam Moreira] aplicou um questionário sobre figuras geométricas aos jovens e os estudantes que participaram das aulas com o NAO tiveram um desempenho melhor (84.61% de acertos) em relação aos que não tiveram contato com o robô (60% de acertos). “Os pesquisadores da área da educação estão buscando novas ferramentas de ensino com a inserção de tecnologia em sala de aula. Hoje em dia, nota-se que a simples exposição de conteúdo na lousa não atrai toda a atenção dos alunos e a robótica pode tornar a aula mais atrativa”, afirma Roseli Romero, professora do ICMC e orientadora do trabalho. (...) Ela ressalta, ainda, que a inclusão do robô em sala de aula não visa a substituir o professor, e sim propor novas alternativas de trabalho.

 

Existem muitas outras matérias e artigos que já vaticinam a ausência do professor em sala de aula. Ora, ausência física do professor em muitas salas de aula já é realidade em cursos de educação à distância! Mesmo bancas de defesa de mestrado e doutorado já são feitas sem a presença física do avaliador, que está distante, em sua casa muitas vezes, e realiza a arguição por vídeo conferência, Skype, FB ou outros meios similares. No caso da matéria do jornal da USP, a frase: “[Roseli Romero] ressalta que a inclusão do robô em sala de aula não visa a substituir o professor, e sim propor novas alternativas de trabalho” é uma das últimas e no caput se lê: Robô professor ensina geometria a adolescentes”. Por um lado, parece que a ausência física do professor em sala não inviabiliza a aula ou os exames; no segundo caso, há uma confusão entre recurso pedagógico e o desaparecimento de uma carreira. Um professor que, distante 800 km, 1500 km... de uma turma, leciona e responde a questões com auxílio da tecnologia pode garantir a um bom número de alunos uma formação de qualidade, sem que esses alunos ou municípios/estados tenham de despender recursos em passagens e hospedagem. No caso do robe NAO, ele foi desenvolvido por uma equipe formada por alunos e professores humanos, para garantir a crianças humanas outras maneiras de aprender. O professor de matemática de uma sala em que NAO está presente deve, por sua vez, aprender a explorar o máximo de possibilidades que esse recurso pode oferecer aos seus alunos.

No mundo em que se questiona, propõe-se ou se antevê mudanças radicais na carreira de professor, eu também gostaria de apresentar algumas respostas, decerto provisórias, como todas as respostas, mas necessárias, segundo minha perspectiva. Para mim, são três os desafios propostos a nós professores pelo contexto em que vivemos: 1) educação para a pesquisa; 2) educação para a salvaguarda do planeta e 3) educação para a paz.

 

1)      Educação para a pesquisa

(Página de livro[3])

Há duas demandas nessas páginas: origem e função dos objetos. Ao final, pede-se que a criança registre sua fonte de pesquisa. Compreender esses objetos como recursos técnicos desenvolvidos por civilizações antigas e melhorados por outras, compreender sua aplicação para ajudar homens e mulheres a resolver problemas, a lidar com limitações em suas vidas são aprendizagens preciosas, colaboram para a consciência história, no sentido apontado por Jörn Rüsen, ou seja: “como a atividade mental da memória histórica, que tem sua representação em uma interpretação da experiência do passado encaminhada de maneira a compreender as atuais condições de vida e a desenvolver perspectivas de futuro na vida prática conforme a experiência”[4]. Ao final, é importante que a criança registre na página onde encontrou as informações solicitadas.

Sobre esse registro final, as primeiras perguntas que a criança pode fazer são por que e para quê. Se ela encontrou as respostas, para que deve revelar quem lhes segredou? O professor vai responder que registrar onde encontramos o que fomos buscar é prova de honestidade intelectual, ou seja, não devemos simplesmente nos apropriar do que foi pensado pelo outro antes de nós, respondido, escrito, sem identificar a fonte. Portanto, preencher o espaço do livro com a referência da pesquisa obedece a um princípio ético, que também é tema de ensino. Compreender a responsabilidade desse gesto reverbera em outras áreas da vida.

Registrar as respostas e as fontes não são, porém, a totalidade do que chamo de educação para pesquisa. Entre essas operações, há o essencial: pesquisar efetivamente. Como o livro didático não refere procedimentos, não indica modos de fazer..., é preciso voltar-se a quem consolida e extrapola a relação da obra com os estudantes, ou seja, o professor. Como ele, começa a educação para a pesquisa.

A educação para a pesquisa precisa levar em conta três aspectos: o conhecimento do pesquisador em formação (no caso, as crianças, os adolescentes, os jovens e os adultos), os recursos à disposição dos pesquisadores e o conhecimento das fontes, pois não basta dizer aos alunos: pesquisem quem inventou o astrolábio e para que ele serve. O verbo pesquisar não está investido de uma magia que garante a quem o conjuga a ciência de como fazer... A ação de pesquisar contém procedimentos.

Antes, uma breve e necessária digressão. No mundo do fácil acesso a inúmeras e diversas fontes de pesquisa impressas ou digitais, faz sentido preocupar-se com a elaboração de tutoriais ou com a explicação de procedimentos? A digitação de um tema no google não abre imediatamente possibilidades que muito ultrapassam as nossas mais presunçosas capacidades de leitura?! Abre possibilidades decerto, mas a infinidade não tem gerado amplitude, tem mesmo encurtado nosso campo de visão, pela comodidade. Uma criança que é convidada a fazer uma “pesquisa” sobre o astrolábio e que digita a palavra no google, vai encontrar aproximadamente 339.000 resultados. Ela precisa de um mapa.

Voltando aos aspectos, pesquisar começa muito cedo, antes da escola. Mas na escola a ação é elaborada e deve sê-lo em etapas, foi o que chamei de “conhecer o pesquisador em formação”. Uma criança muito pequena que ainda não foi alfabetizada ou que não o foi completamente pode pesquisar, ela deve começar! Como professor pode guiá-la? Reunindo questões sobre um tema e conversando com meninos e meninas sobre fontes possíveis. Se ela não domina a escrita, pode se voltar ao testemunho: pode inquirir seus pais e avós; pode recorrer a imagens e à cultura material. Se houver recursos, essa inquirição pode ser gravada e compartilhada em sala de aula; se não houver, a descoberta mais significativa pode ser registrada na forma de um desenho ou de uma série de desenhos.

Se as crianças são maiores, se dominam a escrita, é preciso construir um tutorial. Quando dominei a escrita, voltei-me às bibliotecas para realizar as minhas pesquisas. Com a internet, não esqueci a frequentação às bibliotecas físicas, eu ampliei as minhas possibilidades. As crianças de hoje muitas vezes começam pela internet e ignoram que os livros de casa (se há livros em casa...); os livros que estão na biblioteca da escola, do bairro ou do município são também fontes de pesquisa. Em minhas conversas com crianças, descobri que quando elas não ignoram o fato de que os livros são fontes de pesquisa, muitas delas imaginam que eles trazem informações ultrapassadas e que por isso o que está na internet é melhor, pela novidade. É preciso educá-las para uma apreciação mais plural do que pode ser encontrado na biblioteca. Essa educação começa com a visita à biblioteca (!); com o passeio pelos seus corredores; com uma conversa sobre as formas de catalogação das obras; com a exploração dos formatos de livros disponíveis; com esquecer-se nesses espaços; com o convite a um escritor; com aprender a buscar o que se deseja; com perder-se e se surpreender. Se hoje as bibliotecas estão muito diferentes e têm a ambição de se tonarem espaços de convivência e cultura; em certos lugares, elas são ainda o único refúgio de um patrimônio cultural e científico dos quais homens e mulheres têm direito em uma comunidade.

Bibliotecas sempre foram um lugar de atividade pública. Em Alexandria, supomos que estudiosos iam e vinham, reuniam-se para discutir os mais variados assuntos, certamente havia recitais e conferências, quem sabe até um lugar para consultas práticas do dia a dia. Em Viagem ao centro da Terra, de Júlio Verne, quando os exploradores observam que há poucos livros nas estantes de uma biblioteca pública de Reykjavik, o bibliotecário diz:

“Ah, senhor Lidenbrock! Estes livros percorrem constantemente o país. Em nossa pobre ilha de gelo há um grande entusiasmo pelos estudos! Não há pescador ou agricultor que não saiba ler, e todos leem. Acreditamos que os livros, em vez de ficarem embolorando em uma estante, longe dos olhares dos curiosos, foram escritos e impressos para que todo mundo os leia. Por isso os de vossa biblioteca passam de mão em mão, são lidos uma e cem vezes, e demoram com frequência um ou dois anos para retornar às suas respectivas estantes”. Este é um verdadeiro “espaço de convivência”. [5]

Educar para a pesquisa é também valorizar as bibliotecas. Um professor deve ser um frequentador desses espaços e deve saber o que há nelas sobre a sua área. Mas o ideal é que transcenda a sua área...

No caso da internet, levando em conta crianças que dominam a escrita e são capazes de ler de forma autônoma, é preciso fornecer-lhes indicações de sites fiáveis, para que aprendam a ler e a selecionar as informações relevantes nesses sítios. Se a escola tiver condições, o professor pode fazer um ensaio em sala de aula. As crianças podem selecionar frases, construir fichamentos (com a indicação sempre de onde as informações saíram) e o professor pode com esses dados construir com toda a classe um texto coletivo em que cada criança reconheça a sua busca. Assim, ela será capaz de perceber, de um lado, o que constitui o rol de elementos encontrados na rede e, de outro, como eles podem virar outra coisa: a formulação de uma resposta autoral das suas perguntas.

A educação para a pesquisa é um dos maiores empreendimentos da escola e da universidade. No ambiente universitário, não é possível imaginar que os alunos chegaram prontos... Se assim o estivessem, para que a universidade? E ela é fundamental para os alunos e para a sociedade. Neste caso, o professor também deve construir um mapa. Eu compartilho elementos do tutorial que elaborei este ano para meus alunos recém ingressos no curso de História, Memória e Imagem da UFPR, disciplina de História Medieval. Elementos extraídos do tutorial:

ü  O que são atas de congressos e seu potencial para a pesquisa;

ü  Como sites e blogs podem ser úteis; que cuidados devem ser tomados na navegação por esses ambientes;

ü  Lista de revistas, consagradas ao medievo especificamente;

ü  O que é o qualis periódicos da Capes;

ü  Qual a importância das bases dos Programas de Pós-Graduação, que contêm dissertações e teses defendidas.

A maior parte dos estudantes que eu tenho diante de mim nunca participou de um congresso sobre História Medieval; nunca leu uma das revistas listadas no tutorial; desconhecia o qualis; ignorava que teses e dissertações estão disponíveis na rede... É tarefa do professor que deseja dar continuidade ao empreendimento da pesquisa fornecer subsídios para a formação dos seus alunos. Explicar o potencial de cada elemento sintetizado acima.

Antes de passar para o próximo desafio, é preciso lembrar que bibliotecas e a rede por mais amplos que sejam não são os ambientes exclusivos das pesquisas. Os testemunhos, as histórias contadas pelas pessoas, as rodas de conversa, o universo surpreendente da cultura material em casa e nos museus são fontes de pesquisa! O mais importante é avaliar o potencial de cada fonte para responder às questões que orientam a pesquisa. O professor deve ser agente dessa avaliação.

 

2) Educação para a salvaguarda do planeta

Não tenho dúvida de que os mais diversos livros de ciências trabalham (com maior ou menor qualidade) para a conscientização dos alunos a respeito dos problemas ambientais criados por gerações de habitantes do planeta. Há vasta bibliografia que deve ser pesquisada e que deve ser tema de debate em sala de aula. A educação para a pesquisa é aliada da educação para a salvaguarda do planeta. Mas nesse segmento do meu texto, gostaria de abordar questões talvez “pequenas”, mas que são tão importantes quanto as mais eruditas rodas de conversa sobre o meio ambiente.

Não há texto didático, por mais completo que seja, capaz de combater sozinho os danos causados pela inexistência de um programa de gerenciamento de resíduos sólidos em uma escola. Se a escola não discute coletivamente o que fazer com seu lixo, ou seja, se não reúne quem a anima – alunos, professores e funcionários – em um projeto exequível, realista e ambicioso ao mesmo tempo, vamos dizer às crianças que os extraordinários textos que elas leem em seus livros lindamente editados são letra morta no dia-a-dia. Vamos dizer que a ciência está apartada da vida. Seremos mais uma geração a falhar.

Os planos de gerenciamento de resíduos sólidos são uma exigência institucional em muitos países, estados e municípios. Caso determinadas empresas não construam esse plano, podem ser punidas. Mas a realidade é muito diversa nesse campo e eu não falo de uma exigência que, se não cumprida, pode implicar uma multa. Minha experiência tem me mostrado que quando se reúnem as pessoas que vão participar de um projeto para que elas compartilhem suas dúvidas e propostas, e para que elas compreendam a importância de uma iniciativa, temos mais chance de fazer o projeto dar certo. Falar sobre lixo não é elegante, mas é estratégico.

Não é preciso um grande investimento para construir um programa dessa natureza em uma escola. As crianças geram uma imensa quantidade de resíduos e os profissionais que limpam e reúnem esse material precisam compreender muito bem o que fazer com ele e precisam ser empoderados em seu papel de agentes do processo. Se a escola não se preocupa com a formação desses funcionários, se consente que eles estejam alijados do que constitui a identidade de uma instituição educacional, ela precisa rever seus princípios... A escola tem a ciência para animar ações transformadoras.

Alguém pode redarguir: mais uma tarefa para os assoberbados professores? Na verdade, construir um programa dessa natureza na escola não pode ser encarado como mais uma “coisa”, um trabalho a mais; deve ser compreendido como oportunidade de aprendizado coletivo. A salvaguarda do planeta tem muitos personagens, papeis, atribuições, responsabilidades e, como a educação para a pesquisa, é trabalho contínuo. As crianças devem se envolver gradativamente, no mesma proporção de seu crescimento e maturidade.

Um programa de gerenciamento de resíduos sólidos em uma escola pode começar mesmo ao final de um recreio, no estudo do descarte. Quando as crianças são muito pequenas, geralmente lancham em sala de aula, o lixo gerado pode ser estudado em pequena escala. No caso de crianças maiores ou adolescentes, é possível propor a ampliação da escala também de forma paulatina; é possível criar grupos por ambientes na escola; ações políticas, como o convite a autoridades para um debate; a adoção de uma praça próxima à escola; o estudo da qualidade da água em um rio próximo... Estou convencida de que um bom programa dessa natureza ultrapassa a escola e vai para casa e estou convencida de que o engajamento nesse programa promove a saudável reflexão sobre outro aspecto essencial para a educação para a salvaguarda do planeta: o consumo. O estudo do descarte certamente vai revelar desperdício, escolhas equivocadas na alimentação das crianças e desdém pelo ambiente...

Ao longo de minha experiência como professora de crianças e adolescentes[6], participei de iniciativas exitosas de reflexão sobre o consumo; dentre elas, destaco uma das mais lúdicas: a feira da troca[7]. Sou uma entusiasta das feiras da troca e das tardes do desapego. Já frequentei e já organizei esses eventos.

(página do meu livro[8])

Uma feira da troca é um momento em que adultos e crianças se reúnem com objetos que não lhes são mais úteis para trocá-los por outros. Um conjunto de xícaras por um livro; gibis por uma almofada; um CD por óculos de sol e por aí vai. Não há dinheiro em uma feira da troca; sequer para lanchar, pois eu posso trocar pedaços do bolo que preparei para o evento por sucos, ou por um sanduíche. Quase todo mundo sai feliz de uma feira da troca, com seus novos presentes! As feiras da troca são inciativas facilmente realizáveis fora da escola: em condomínios, em bairros e nas famílias.

No ambiente escolar, é possível refinar a experiência com uma preparação para o evento. Os professores podem promover diferentes ações de preparação, tais como: debates sobre necessidade, vontade, desejo; a elaboração de listas prévias afixadas nos murais; simulados a partir de seus próprios objetos; reflexão sobre equivalência, valor etc. Novamente os professores são chamados a construir a experiência e a investi-la de oportunidade interdisciplinar de aprendizado. As feiras da troca devem ser calendarizadas, a comunidade escolar deve se preparar para vivenciá-la.

Todavia, refletir sobre o consumo não cabe inteiro na feira da troca. Essa iniciativa é um capítulo, que pode ser muito bem sucedido, mas é um evento. Mesmo a preparação não dá conta de reunir tudo o que podemos pensar e fazer a respeito no ambiente escolar. O consumo está por toda a parte: desde a lista de materiais que a escola pede aos pais, até o que as crianças pedem e julgam essencial: como canetas, mochilas, lápis de cor... Um exemplo: por que a cada ano é preciso pedir uma caixa de 12 lápis de cor a todas as crianças? Algumas cores favoritas efetivamente acabam ao final de um ano..., mas sobram outras, a maior parte! Então, ao invés de pedir, a escola deveria consignar na sua lista de exigências a reposição de materiais e estimular o reaproveitamento. Folhas que sobram em cadernos em um ano devem virar outros cadernos no ano seguinte.

A internet tem favorecido, à revelia da escola, trocas e reaproveitamentos organizados pelos pais. À revelia da escola, decerto, pois muitas vezes escolas particulares se beneficiam financeiramente das taxas de materiais... Há diversos grupos de desapegos de livros e uniformes escolares no FB. O maior estímulo para isso no Brasil tem sido as crises que vivemos e o desemprego. Essa motivação não pode ser escamoteada e é legítima. Mas podemos trazer mais significados para a iniciativa. A escola não precisa fingir que não vê, só porque a iniciativa não a beneficia financeiramente. As instituições de ensino podem repensar a sua gestão e seu próprio consumo para promover aquilo que propalam, ou que propalam no ambiente protegido dos livros didáticos que adotam... Tenho visto que a escola pode ser um espaço eivado de contradições, mas podemos mudar isso promovendo esse ambiente de aprendizagem em ambiente colaborativo. Experiências nesse sentido já são realidade, porém podem ser mais plurais que simplesmente chamar os pais a fazer reparos ou a pintar os muros da escola[9]...

No centro desse 2º desafio está a palavra “salvaguarda”, que contém duas ações óbvias: salvar e guardar. Outras palavras poderiam ter sido trazidas a esse desafio, mas creio que as que se unem para a criação desta unicidade levam consigo ações contundentes que começam em nós. Não é possível esperar pelas autoridades, é necessário movê-las; não é possível imaginar que as crianças só possam ter uma compreensão “acadêmica” dos problemas ambientais, ou seja, uma preocupação que se limita à leitura de textos e a debates dentro de sala de aula; é preciso dar sentido prático aos conteúdos dos livros e das pesquisas realizadas; é preciso construir coletivamente formas de potenciar a comunidade escolar. Os professores são os fomentadores naturais desse processo, como pesquisadores e propositores.

 

3) Educação para a paz

Gostaria de começar esse segmento enfrentando a possibilidade de ironia.

(fotografias do massacre de 29 de abril de 2015, promovido pelo governo do Paraná contra professores e estudantes e da professora Márcia Friggi, agredida por um aluno de 15 anos, depois de tê-lo expulsado de sala por comportamento inadequado, em Santa Catarina)

É possível falar de paz? É possível falar em capacidade de educar para a paz, nesse cenário?

Não é só possível como urgente.

Escrevi esse texto impactada pela execução da vereadora carioca Marielle Franco no dia 14 de março de 2018, emboscada junto ao seu motorista Anderson Pedro Gomes, também vítima da execução, no centro da cidade Rio de Janeiro, quando retornavam ambos de um evento. Logo depois da divulgação do crime, uma autoridade do poder judiciário e um membro da câmara federal do Brasil espalharam por suas redes sociais informações falsas sobre a vereadora. Essas informações foram compartilhadas por seguidores e deram origem a uma onda de comentários violentos, em meio aos quais se “celebrava” a execução de uma socióloga que foi eleita com expressiva votação para o cargo de vereadora e em cuja pauta estava a defesa do direito das mulheres em específico e dos direitos humanos em geral. São muitos os aspectos a serem destacados nesse caso, mas escolho dois: o fenômeno do “fake news” e a violência que se dissemina nas redes.

O fenômeno da geração de notícias falsas se relaciona ao primeiro desafio que trouxe aqui: a educação para a pesquisa. Se meus exemplos no segmento foram acadêmicos, a ambição do desafio é mais ampla, ou seja, instrumentalizar crianças, adolescentes, jovens e adultos a perseguirem respostas às suas questões através de fontes fiáveis.

No post do deputado, há uma sucessão de mentiras que logo depois foram facilmente refutadas[10]. De forma quase absurda, a refutação caminhou paralelamente à continuidade do compartilhamento da mentira. Ao ser confrontado pela imprensa, entretanto, o político afirmou que não verificou as informações divulgadas por ele, mas que não se arrependeu de tê-las difundido...

Ora, o que aconteceu com as milhares de pessoas que compartilharam o post do deputado, alavancado, por sua vez, pela rede de um movimento de extrema direita no  Brasil e de grandes ambições dentro da escola[11]? Esses milhares de pessoas – mães, pais, profissionais liberais, pessoas de todos os níveis de escolaridade – abriram mão de realizar uma simples averiguação, ou seja, tomaram as afirmações de um deputado, de uma desembargadora e o que um movimento agressivo, na esteira desses dois primeiros, repisou, como verdades absolutas. Uma criança que não foi iniciada na educação para a pesquisa e que copia em seu livro o primeiro dos 339.000 resultados sobre o que é um astrolábio, só porque é o primeiro e porque está publicado na rede (!), pode se tornar (nunca necessariamente, devo ressalvar) um desses adultos compartilhadores de “fake news”, orgulhosos de sua ignorância, como o deputado, promotores e comentadores da violência em ambiente virtual contra pessoas reais.

Professores são vítimas de violência, como vimos nas imagens e haveria muitas outras infelizmente a serem trazidas aqui. Somos agredidos nas redes sociais por nossas convicções políticas, por nossas propostas pedagógicas, pela nossa necessidade de planos de carreira, pela duração de nossas férias, pelos locais que escolhemos para gozá-las (!)...; vitimados também pela disseminação de mentiras. Do outro lado, protegidos pelas telas, muitas vezes, estão nossos alunos, suas famílias, ou pessoas que desconhecemos. O cerco desanima, desespera e é causa de adoecimento e de afastamento de sala de aula. Ninguém disse para nós ao longo dos nossos cursos que seria tão difícil; ninguém nos preveniu de que, porque amamos ler; realizar cálculos, pensar sobre o universo, questionar sobre como viveram homens e mulheres antes de nós, refletir sobre nossa saúde, doenças, sobre o planeta..., nossas paixões e desejos de saber nos arrastariam a enfrentamentos tais!... Mas corajosamente vou enfrentar a ironia, afirmando o contrário do que nos choca.

Parte dessa violência pode ser combatida por nós, com os instrumentos que temos: nossas paixões e vontades de saber. Os desafios que proponho nesse texto perpassam todas as áreas em que nossas curiosidades foram historicamente compartimentadas: línguas, matemática, geografia, história, ciências... É com a nossa formação, que deve ser continuamente elaborada (desafio de acréscimo, não acessório), que podemos trabalhar pela educação para a paz. A pesquisa pode revelar que não é de hoje que confrontamos os desafios da natureza, a difamação e o consumo: “quem obedece à natureza e não às vãs opiniões a si próprio se basta em todos os casos. Com efeito, para o que é suficiente por natureza, toda a aquisição é riqueza, mas, por comparação com o infinito dos desejos, até a maior riqueza é pobreza” (Epicuro, séc. IV e III a.C.). Isso significa que temos sido os mesmos? De jeito nenhum. Se continuamos a temer a morte, aqueles que desconhecemos, a violência[12]... ao longo de séculos, nossas maneiras de reagir têm sido diversas e estudá-las anima a descoberta de novas soluções.

Estudá-las... Não se contentar com afirmações que ninguém verificou, destituir mentiras com a verdade e interromper a reprodução de hábitos que ferem o planeta, ou seja, a nós mesmos, são essenciais para a paz. Nós, professores, devemos instrumentalizar nossos alunos para esse enfrentamento. E eles correspondem ao apelo pela paz, mesmo e inclusive, lutando pelo que acreditam! No Brasil, estudantes secundaristas ocuparam suas escolas em 2016, cuidaram delas, para em paz manifestarem sua oposição às reformas do Ensino Médio; nos Estados Unidos, estudantes secundaristas marcharam em paz neste ano de 2018, contra a facilidade de adquirir armas de fogo.

 

Conclusão ou outros desafios?

Ninguém disse para nós ao longo dos nossos cursos que seria tão difícil... Talvez porque em diversos lugares do mundo e notadamente no Brasil não tenhamos conseguido combater uma surdez deliberada ante o concerto de nossas reflexões sobre as consequências de escolhas equivocadas das políticas educacionais, orquestradas pelos Estados que se transformaram em testas de ferro de interesses transnacionais, interessados, por sua vez, no enfraquecimento dos próprios Estados, por mais paradoxal que isso seja (!)...

Em seu livro Sem fins lucrativos. Por que a democracia precisa das humanidades[13], Martha Nussbaum afirmou que ainda não enfrentamos a crise mundial da educação, mas creio (e essa é minha única discordância da autora) que temo-la enfrentado. O problema é o fazemos contra ouvidos moucos. A autora aborda “mudanças radicais” no que tem sido proposto às crianças e jovens na escola e eu subscrevo:

Que mudanças são essas? Tanto no ensino fundamental e médio como no ensino superior, as humanidades e as artes estão sendo eliminadas em quase todos os países do mundo. Consideradas pelos administradores públicos como enfeites inúteis, num momento em que as nações precisam eliminar todos os elementos inúteis para se manterem competitivas no mercado global, elas estão perdendo rapidamente seu lugar nos currículos e, além, disso nas mentes e nos corações dos pais e dos filhos[14].

 

A denúncia feita pela autora aponta para escolhas que têm desfavorecido um conhecimento formador de seres humanos para o raciocínio crítico e para a imaginação criativa. Falo das humanidades e das artes. Os desafios que propus ao longo dessas páginas têm por objetivo promover o desenvolvimento humano para o respeito pelo patrimônio cultural, ambiental e para a salvaguarda da vida. Na educação para a pesquisa, falamos que o testemunho é fonte: o conjunto de histórias que as gerações contam umas para as outras fortalecem os laços em uma comunidade; ler essas histórias também promove os vínculos. Buscar a verdade e reconhecer o esforço de pesquisa do outro, na sua identificação, promovem o desenvolvimento cientifico e a ética. Proteger o meio, questionar o consumo e apreciar as diversas formas com que homens e mulheres se relacionaram com o ambiente mobilizam a consciência histórica e potencializam a capacidade de crianças e jovens de criarem propostas e soluções. Na educação para a paz não consigo ver maior tributo à importância das artes! Até que nos provem ao contrário, só temos esta vida para viver, entretanto, a Literatura nos oferece a oportunidade de sermos muitos outros, de vivermos em países desconhecidos, em épocas inacessíveis, oferece-nos a oportunidade de experimentarmos emoções e sentimentos vários: amor, ciúme, amizade, empatia... e de enxergar o direito dos outros a tudo isso.

A supressão de um repertório de conhecimento e experiência é lida por Martha Nussbaum como resposta às pressões da competitividade do mercado. Mas não estamos diante de uma engrenagem que se move sozinha. Quem insufla e engendra as políticas de empobrecimento da formação das crianças e jovens em nome da dieta lucrativa é gente – homens e mulheres que “esqueceram” a sua própria formação... Talvez esse seja um dos aspectos mais duros a serem evocados no fenômeno que Martha Nussbaum refere: o fato de os poderosos deliberadamente “esquecidos” de si decidirem o apequenamento do futuro.

As “mudanças radicais” estão situadas no tempo presente, a 1ª edição do livro de Martha é de 2010, ou seja, estamos falando de um fenômeno que certamente já dera passos importantes em um passado recente, a supressão do ensino das línguas clássicas é exemplo das “novas” escolhas realizadas nesse passado tão acessível. Agora, entretanto, o conjunto de propostas é apresentado de forma muito clara, sem qualquer acanhamento ou mesmo embaraço diante da oposição sistemática que os educadores têm feito. No Brasil, a reforma do Ensino Médico e a publicação da Base Nacional Comum Curricular são dois exemplos de mudanças impostas a alunos e professores, que por sua vez têm denunciado as perdas que vão se abater sobre as gerações futuras e os interesses de fundações particulares famintas de recursos públicos.

Como homens e mulheres que tiveram em sua formação um repertório de comparecimento das humanidades e das artes passaram a considerar esse conjunto como dispêndio? A primeira resposta pode apontar para o fracasso dos seus mestres... Mas ninguém pode ser eternamente responsabilizado pelas decisões das crianças sob sua responsabilidade que já se tornaram adultas há muito tempo... É muita arrogância a nossa – dos professores – considerar que tudo pode ser controlado por nós. Nós devemos nos esforçar para educar crianças e jovens para serem adultos responsáveis: averiguadores de informações, salvadores e guardiões dos recursos naturais e incansáveis defensores da paz. Porém, homens e mulheres crescidos e que já estiveram diante de nós nas salas de aula da vida podem fazer (já o fizeram!) escolhas diferentes das que nos esforçamos por lhes apresentar. É por isso que nossa tarefa se renova a cada geração, como obstinação e como atenção às mudanças.

Podemos reagir à decepção pelo que não conseguimos realizar com desânimo, abandono, com delírio, esperança ou revolução. Podemos também imaginar que os adultos esquecidos do que nós lhes ensinamos podem ser lembrados pelos filhos, ou seja, pelas crianças que temos agora, sob nossa responsabilidade. Podemos reagir, impondo a nós mesmos novos desafios, o que tentei fazer ao longo dessas páginas. Eu também sou adulta esquecida de muita coisa importante..., mas gosto de achar que meus alunos me educam para a responsabilidade que me cabe e que cabe a tantos de nós, na NOSSA formação humana. 

Obrigada.

 

Escrito em Curitiba, entre março e abril de 2018.

Lido em Praia, em 26 de abril de 2018

 




[3] RIBEIRO, Diavan Adelino. História do 5º ano do ensino fundamental: livro do estudante. Curitiba: Editora Bom Jesus, 2014. p. 41 e 42.
[4] RÜSEN, Jörn. Jörn Rüsen e o ensino de História. Organizadores: Maria Auxiliadora Schmidt, Isabel Barca, Estevão de Rezende Martins. Curitiba: Ed. UFPR, 2010. p. 112.

[5] Entrevista com Alberto Manguel: http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=172 acesso em 16 de março de 2018.
[6] Na escola Palmares, hoje Projeto 21: http://www.escolaprojeto21.com.br/ (acesso em 18 de março de 2018).
[7] Foi com Yara Amaral, fundadora da escola Projeto 21, que aprendi como uma feira da troca é uma experiência formidável!
[8] GUIMARÃES, Marcella Lopes. O Livro das coisas para guardar. Desejos de criança. Curitiba: Ed. Positivo, 2013. p. 48.
[9] Uma das iniciativas plurais foi realizada pelo Colégio Bom Pastor em Curitiba: http://www.gazetadopovo.com.br/curitiba/alunos-e-familiares-se-unem-para-revitalizar-e-evitar-fechamento-de-escola-em-curitiba-ekxju32ec39tskv61mfjmivpk (acesso em 18 de março de 2018). A escola sofreu com o desvio de verbas e quase teve suas portas fechadas.
[11] Refiro-me ao MBL.
[12] Como o historiador Georges Duby reconheceu em Ano 1000 ano 2000 na pista de nossos medos.
[13] NUSSBAUM, Martha. Sem fins lucrativos. Porque a democracia precisa das humanidades. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
[14] Idem, p. 4.

Nenhum comentário:

Postar um comentário