segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Ler os pares: uma reflexão sobre o diálogo que acontece nas referências bibliográficas

Há algumas semanas, estive envolvida com a leitura do livro Os dois lados do balcão: armazéns e cotidiano em Irati/PR (1907-1970) de Neli Maria Teleginski. Eu incluí o livro de Neli na minha disciplina de História e Cultura da Alimentação e programei com os alunos do CAN (Centro Acadêmico de Nutrição) uma tarde consagrada à reflexão sobre a obra e sobre a História da Alimentação no Paraná, com a presença de Neli! Ela veio de Guarapuava e compartilhou conosco suas pesquisas e sua paixão pelo tema. O primeiro slide que mostrou emocionou-me particularmente, pois lá estava o grande mestre Prof. Dr. Carlos Antunes, que se consagrou ao campo da História da Alimentação no Brasil e que formou tantos quadros no PPGHIS-UFPR: colegas que têm se destacado na área. Neli foi orientanda de Carlos Antunes no Mestrado e de Karina Belloti no Doutorado. Ler o livro de Neli me fez pensar no universo que ela abraçou obviamente, mas me levou a outros lugares.
Os dois lados do balcão: armazéns e cotidiano em Irati/PR (1907-1970) foi prefaciado pelo querido colega Euclides Marchi e é resultado da dissertação de mestrado de Neli. A pesquisadora partiu da emancipação política de Irati (1907) e terminou seu exame com a chegada dos supermercados no município (anos 70), que segundo ela, mudaram as relações com os ambientes plurais com quem trabalhou: as bodegas. A obra de Neli compartilha com os leitores documentos fotográficos ricos, que não comparecem ao texto como ilustrações, mas como fontes; testemunhos; peças de publicidade e quadros muito elucidativos. Há um universo diverso (adoro essa rima, desculpem...), entre os quais ela se agita sem fazer esvoaçar a diversidade na bagunça, é justo o contrário: Neli areja a documentação, espanta o mofo e “se senta” para escutar as respostas com abertura, com acolhimento. Por que ressalto isso? Porque não há nada mais chato para mim que ler uma “pesquisa” que vai aos documentos apenas para confirmar as respostas que o pesquisador já possuía antes de ter ido lá. Se não tem surpresa; se não somos obrigados a refazer trajetórias e a repensar caminhos... qual é a graça?! Qual é a relevância? Isso não significa que a gente não tenha as nossas hipóteses! Claro que temos e elas podem ser confirmadas obviamente, mas e o tanto que se descortina a nossos olhos? Se não temos disposição para a surpresa, a pesquisa não deslumbra, não vislumbra. Os três leitores fieis do blog vão dizer que sou romântica. Terão acertado, mas também posso escrever de forma mais impessoal: se vamos aos documentos apenas para confirmar as hipóteses, a pesquisa não agregará elementos novos ao estudo do tema. Ficou bom?
O primeiro desafio de Neli foi verificar que o tal termo bodega não aparecia na documentação. Ela se inibiu? Buscou outras palavras? Não, foi em busca de entender por que a palavra que designava a realidade em questão era preterida. Descobriu associações que inibiam os comerciantes. Bodega é coisa suspeita, negócio de vender bebida... Então, bora preferir armazéns e secos e molhados, na hora de pedir alvarás!
“Com relação ao abastecimento, até o início do século XIX não havia se estabelecido no Paraná uma estrutura voltada para suprir as necessidades alimentares da população” (pág. 107). É aí que entram em cena as bodegas! Ainda que Neli se identifique como pesquisadora da História da Alimentação, sua obra trata muito de economia e de abastecimento, que obviamente completam o seu campo de eleição. Neli aborda ciclos econômicos e está todo tempo entre o geral (Paraná e Brasil) e o particular, Irati. O que quero dizer é que Neli não isola Irati, o município é parte de um conjunto de relações políticas, sociais e econômicas em movimento no Paraná desde o século XIX. Nisso, sentimos a inspiração da obra História da Alimentação no Paraná[1] de seu mestre Antunes. Mas Neli tem uma relação saudável com seu orientador e em alguns momentos vai além das conclusões dele. Tenho certeza de que Carlos apreciou isso.
As bodegas haveriam de ser o abastecimento possível em um Paraná que teve de lidar com ondas de crise nesse campo, resultantes do protagonismo da cultura do mate e da pecuária. Mas esses ambientes favoreceram outras experiências além do provimento necessário à manutenção da vida das famílias. As bodegas disseminavam informações; eram palco de uma convivência mais amena, regada a “líquidos espirituosos” (gente, que expressão!); oportunizavam escoamento de produção local; viabilizavam as condições para melhorias dos núcleos urbanos e até trabalho (trabalhadores engajados em melhorias trocavam seu suor por produtos nas bodegas). Neli nos fala ainda dos imigrantes e da logística do abastecimento e da construção da ferrovia.
Uma das coisas mais interessantes da obra é a vida que pulsa nela: com a identificação das gentes, das bodegas e das querelas municipais! Os caderninhos de fiado, o prego, as padarias que se aborreciam com as bodegas que vendiam pão, a câmara que queria taxar os estabelecimentos segundo a diversidade dos produtos comercializados (a “fome” do município...), o esforço para garantir um matadouro com regras mais “modernas”, quando todas as pessoas matavam os bichos no fundo do quintal para fazer os cobiçados embutidos! Ai que vontade de conhecer Irati! Mas “a Irati de Neli” não é a Irati que eu vou conhecer se dirigir até lá... Na Irati que vou ver há supermercados. O livro de Neli chega ao fim.
A obra Os dois lados do balcão dialoga com um monte de gente. Eu descobri uma série de pesquisadores brasileiros que trabalham com bodegas em diferentes recortes históricos, espaços... Neli também buscou referências internacionais e as encontrou. Sua dissertação (lembra que eu falei no início que Os dois lados do balcão é resultado de sua dissertação?) é quase uma tese e, ainda que se diga na área que isso não é elogio que se faça, eu acho que é. Será que ignoro que dissertação e tese são gêneros acadêmicos diferentes? Eu não ignoro. Mas confio no potencial dos alunos e sei que eles nos chegam diversos na experiência de vida e repertório de leitura. Daí que o pesquisador discente pode estar maduro para vislumbrar muito mais do que apontou quando escreveu o projeto! E mais: pode dar conta disso! Ora, temos institucionalmente casos de pesquisadores que do Mestrado são alçados ao Doutorado direto, não?
Essa realidade me leva a outra. Eu fui testemunha de um entendimento muito significativo do que tem sido chamado de internacionalização entre nós. Parece que a área se volta à consideração da capacidade dos pesquisadores dos Programas de Pós de entabularem um diálogo com referências internacionais e atuais sobre os temas pesquisados. Isso se revelaria em produtos, como dissertações e teses. Eu acho esse entendimento muito bom. Não sei se as pesquisas de antiquistas e medievalistas brasileiros foram a inspiração para isso (!!), mas de fato desde que “nascemos” somos criados no diálogo com os le goffs, os dubys dessa nossa vida...; somos criados a aprender o francês, o alemão, o espanhol, o italiano, o latim, o grego...  
Na verdade, muito por causa dessa agenda que nos leva, como medievalistas consagrados a Portugal medieval, por exemplo, a ler todos os portugueses que ainda nos ignoram (desculpem-me, colegas portugueses que não nos ignoram, nós sabemos que vocês existem também!!), todos mesmo!, temos feito no Brasil um movimento muito significativo de nos conhecer melhor. Esse movimento tem animado o diálogo entre os grupos e tem nos dado a convicção de que construímos um campo que não é um apêndice da área de História no nosso país. Quando afirmo que tenho orgulho de fazer História Medieval no Brasil, não estou gritando uma bravata, mas reconhecendo que trabalho em/com campo maduro que me permite citar especialistas em bom português do Brasil. Foi o que fiz muito simplesmente quando fui professora visitante na Universidade de Poitiers (França) em 2014.
Eu já critiquei (e elogiei, preciso ressaltar) um belíssimo livro de medievalista brasileira por quem tenho grande respeito (que felizmente não guardou mágoa acadêmica de mim), em cuja bibliografia quase não havia os pares brasileiros, e hoje fico a pensar que o entendimento da área, mesmo sem ler o livro (que eu li inteirinho e cito!), mas só por folhear a bibliografia, haveria de considerá-lo extraordinário pela sua internacionalização!
O diálogo com a mais completa e diversa bibliografia que pudermos ter acesso nos permite ir mais longe, porque pesquisa que se preze é feita no encontro. Mais uma vez, repiso minha tristeza com a desvalorização dos resultados dos eventos propiciadores de tantas trocas, o assassinato dos anais[2]... Mas o entendimento equivocado da internacionalização (conceito sumamente valorizado hoje) pode nos fazer perder o que conquistamos, em termos de valorização do conhecimento produzido entre nós. Essa é uma questão política séria. Que tenhamos equilíbrio!
Neli Maria Teleginski estudou armazéns de secos e molhados franceses e argentinos, a partir de bibliografia internacional; leu especialistas da História da Alimentação brasileiros e estrangeiros; a bibliografia da sua dissertação de Mestrado é vastíssima! Se eu tivesse tido o prazer de integrar a sua banca, teria feito o elogio “torto” de que sua dissertação é quase uma tese, ela teria sorrido; eu teria ressaltado o equilíbrio entre as partes e uma dezena de outras coisas que não escrevi aqui; teria elogiado o fato de ela conhecer seu campo, os seus e lhe teria dito que se tornou também minha referência bibliográfica.
De onde saíram esses pares para posar para a foto, há mais, nas áreas de História, Literatura e Filosofia. (Colega, se vc não está na foto, é só porque não caberia todo mundo, vc está no coração e nas referências!!!)



[1] SANTOS, Carlos R. Antunes dos.  História da Alimentação no Paraná. Curitiba: Fundação Cultural, 1995. (Há uma nova edição da Ed. Juruá, de 2010).

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