Há algumas semanas, estive
envolvida com a leitura do livro Os dois
lados do balcão: armazéns e cotidiano em Irati/PR (1907-1970) de Neli Maria
Teleginski. Eu incluí o livro de Neli na minha disciplina de História e Cultura
da Alimentação e programei com os alunos do CAN (Centro Acadêmico de Nutrição)
uma tarde consagrada à reflexão sobre a obra e sobre a História da Alimentação
no Paraná, com a presença de Neli! Ela veio de Guarapuava e compartilhou
conosco suas pesquisas e sua paixão pelo tema. O primeiro slide que mostrou
emocionou-me particularmente, pois lá estava o grande mestre Prof. Dr. Carlos
Antunes, que se consagrou ao campo da História da Alimentação no Brasil e que
formou tantos quadros no PPGHIS-UFPR: colegas que têm se destacado na área.
Neli foi orientanda de Carlos Antunes no Mestrado e de Karina Belloti no Doutorado.
Ler o livro de Neli me fez pensar no
universo que ela abraçou obviamente, mas me levou a outros lugares.
Os
dois lados do balcão: armazéns e cotidiano em Irati/PR (1907-1970) foi
prefaciado pelo querido colega Euclides Marchi e é resultado da dissertação de
mestrado de Neli. A pesquisadora partiu da emancipação política de Irati (1907)
e terminou seu exame com a chegada dos supermercados no município (anos 70),
que segundo ela, mudaram as relações com os ambientes plurais com quem
trabalhou: as bodegas. A obra de Neli compartilha com os leitores documentos
fotográficos ricos, que não comparecem ao texto como ilustrações, mas como
fontes; testemunhos; peças de publicidade e quadros muito elucidativos. Há um
universo diverso (adoro essa rima, desculpem...), entre os quais ela se agita
sem fazer esvoaçar a diversidade na bagunça, é justo o contrário: Neli areja a
documentação, espanta o mofo e “se senta” para escutar as respostas com
abertura, com acolhimento. Por que ressalto isso? Porque não há nada mais chato
para mim que ler uma “pesquisa” que vai aos documentos apenas para confirmar as
respostas que o pesquisador já possuía antes de ter ido lá. Se não tem
surpresa; se não somos obrigados a refazer trajetórias e a repensar caminhos...
qual é a graça?! Qual é a relevância? Isso não significa que a gente não tenha
as nossas hipóteses! Claro que temos e elas podem ser confirmadas obviamente,
mas e o tanto que se descortina a nossos olhos? Se não temos disposição para a
surpresa, a pesquisa não deslumbra, não vislumbra. Os três leitores fieis do
blog vão dizer que sou romântica. Terão acertado, mas também posso escrever de
forma mais impessoal: se vamos aos
documentos apenas para confirmar as hipóteses, a pesquisa não agregará
elementos novos ao estudo do tema. Ficou bom?
O primeiro desafio de Neli foi
verificar que o tal termo bodega não
aparecia na documentação. Ela se inibiu? Buscou outras palavras? Não, foi em
busca de entender por que a palavra que designava a realidade em questão era
preterida. Descobriu associações que inibiam os comerciantes. Bodega é coisa
suspeita, negócio de vender bebida... Então, bora preferir armazéns e secos e molhados,
na hora de pedir alvarás!
“Com relação ao abastecimento, até
o início do século XIX não havia se estabelecido no Paraná uma estrutura
voltada para suprir as necessidades alimentares da população” (pág. 107). É aí
que entram em cena as bodegas! Ainda que Neli se identifique como pesquisadora
da História da Alimentação, sua obra trata muito de economia e de
abastecimento, que obviamente completam o seu campo de eleição. Neli aborda
ciclos econômicos e está todo tempo entre o geral (Paraná e Brasil) e o particular,
Irati. O que quero dizer é que Neli não isola Irati, o município é parte de um
conjunto de relações políticas, sociais e econômicas em movimento no Paraná
desde o século XIX. Nisso, sentimos a inspiração da obra História da Alimentação no Paraná[1]
de seu mestre Antunes. Mas Neli tem uma relação saudável com seu orientador e
em alguns momentos vai além das conclusões dele. Tenho certeza de que Carlos
apreciou isso.
As bodegas haveriam de ser o
abastecimento possível em um Paraná que teve de lidar com ondas de crise nesse
campo, resultantes do protagonismo da cultura do mate e da pecuária. Mas esses
ambientes favoreceram outras experiências além do provimento necessário à
manutenção da vida das famílias. As bodegas disseminavam informações; eram
palco de uma convivência mais amena, regada a “líquidos espirituosos” (gente,
que expressão!); oportunizavam escoamento de produção local; viabilizavam as
condições para melhorias dos núcleos urbanos e até trabalho (trabalhadores
engajados em melhorias trocavam seu suor por produtos nas bodegas). Neli nos
fala ainda dos imigrantes e da logística do abastecimento e da construção da
ferrovia.
Uma das coisas mais interessantes
da obra é a vida que pulsa nela: com a identificação das gentes, das bodegas e
das querelas municipais! Os caderninhos de fiado, o prego, as padarias que se
aborreciam com as bodegas que vendiam pão, a câmara que queria taxar os
estabelecimentos segundo a diversidade dos produtos comercializados (a “fome”
do município...), o esforço para garantir um matadouro com regras mais “modernas”,
quando todas as pessoas matavam os bichos no fundo do quintal para fazer os
cobiçados embutidos! Ai que vontade de conhecer Irati! Mas “a Irati de Neli”
não é a Irati que eu vou conhecer se dirigir até lá... Na Irati que vou ver há
supermercados. O livro de Neli chega ao fim.
A obra Os dois lados do balcão dialoga com um monte de gente. Eu descobri
uma série de pesquisadores brasileiros que trabalham com bodegas em diferentes
recortes históricos, espaços... Neli também buscou referências internacionais e
as encontrou. Sua dissertação (lembra que eu falei no início que Os dois lados do balcão é resultado de
sua dissertação?) é quase uma tese e, ainda que se diga na área que isso não é
elogio que se faça, eu acho que é. Será que ignoro que dissertação e tese são
gêneros acadêmicos diferentes? Eu não ignoro. Mas confio no potencial dos
alunos e sei que eles nos chegam diversos na experiência de vida e repertório
de leitura. Daí que o pesquisador discente pode estar maduro para vislumbrar
muito mais do que apontou quando escreveu o projeto! E mais: pode dar conta
disso! Ora, temos institucionalmente casos de pesquisadores que do Mestrado são
alçados ao Doutorado direto, não?
Essa realidade me leva a outra. Eu
fui testemunha de um entendimento muito significativo do que tem sido chamado
de internacionalização entre nós. Parece que a área se volta à consideração da
capacidade dos pesquisadores dos Programas de Pós de entabularem um diálogo com
referências internacionais e atuais sobre os temas pesquisados. Isso se
revelaria em produtos, como dissertações e teses. Eu acho esse entendimento
muito bom. Não sei se as pesquisas de antiquistas e medievalistas brasileiros
foram a inspiração para isso (!!), mas de fato desde que “nascemos” somos
criados no diálogo com os le goffs, os dubys dessa nossa vida...; somos criados
a aprender o francês, o alemão, o espanhol, o italiano, o latim, o grego...
Na verdade, muito por causa dessa agenda
que nos leva, como medievalistas consagrados a Portugal medieval, por exemplo,
a ler todos os portugueses que ainda nos ignoram (desculpem-me, colegas
portugueses que não nos ignoram, nós sabemos que vocês existem também!!), todos
mesmo!, temos feito no Brasil um movimento muito significativo de nos conhecer
melhor. Esse movimento tem animado o diálogo entre os grupos e tem nos dado a
convicção de que construímos um campo que não é um apêndice da área de História
no nosso país. Quando afirmo que tenho orgulho de fazer História Medieval no
Brasil, não estou gritando uma bravata, mas reconhecendo que trabalho em/com
campo maduro que me permite citar especialistas em bom português do Brasil. Foi
o que fiz muito simplesmente quando fui professora visitante na Universidade de
Poitiers (França) em 2014.
Eu já critiquei (e elogiei, preciso
ressaltar) um belíssimo livro de medievalista brasileira por quem tenho grande
respeito (que felizmente não guardou mágoa acadêmica de mim), em cuja
bibliografia quase não havia os pares brasileiros, e hoje fico a pensar que o
entendimento da área, mesmo sem ler o livro (que eu li inteirinho e cito!), mas
só por folhear a bibliografia, haveria de considerá-lo extraordinário pela sua
internacionalização!
O diálogo com a mais completa e
diversa bibliografia que pudermos ter acesso nos permite ir mais longe, porque
pesquisa que se preze é feita no encontro. Mais uma vez, repiso minha tristeza
com a desvalorização dos resultados dos eventos propiciadores de tantas trocas,
o assassinato dos anais[2]... Mas o entendimento equivocado
da internacionalização (conceito sumamente valorizado hoje) pode nos fazer
perder o que conquistamos, em termos de valorização do conhecimento produzido
entre nós. Essa é uma questão política séria. Que tenhamos equilíbrio!
Neli Maria Teleginski estudou
armazéns de secos e molhados franceses e argentinos, a partir de bibliografia
internacional; leu especialistas da História da Alimentação brasileiros e
estrangeiros; a bibliografia da sua dissertação de Mestrado é vastíssima! Se eu
tivesse tido o prazer de integrar a sua banca, teria feito o elogio “torto” de
que sua dissertação é quase uma tese, ela teria sorrido; eu teria ressaltado o
equilíbrio entre as partes e uma dezena de outras coisas que não escrevi aqui;
teria elogiado o fato de ela conhecer seu campo, os seus e lhe teria dito que
se tornou também minha referência bibliográfica.
De onde saíram esses pares para posar para a foto, há mais, nas áreas de História, Literatura e Filosofia. (Colega, se vc não está na foto, é só porque não caberia todo mundo, vc está no coração e nas referências!!!)
[1] SANTOS, Carlos R. Antunes
dos. História da Alimentação no Paraná.
Curitiba: Fundação Cultural, 1995. (Há uma nova edição da Ed. Juruá, de 2010).
[2] Procure aqui no blog: http://literistorias.blogspot.com.br/2017/09/pequeno-tutorial-para-os-congressistas.html
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