segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Sobre o leitor libertado, divagações sobre o volume A prisioneira, 5º de Em busca do tempo perdido de Marcel Proust

O clube do livro começou a leitura de A Fugitiva, 6º volume de Em busca do tempo perdido de Marcel Proust. No final deste mês temos debate! Depois do 5º volume, resolvemos fazer um intervalo de valorização da compreensão da catedral proustiana, que também revelou alguns impasses e desconfortos da leitura de A prisioneira. Esse 5º volume não foi fácil. Nenhum de nós (do clube)curte relações abusivas, sequer no domínio do texto, e o volume encena esse tipo de vínculo com os mesmos requintes textuais que nos encantaram desde 2015..., o que piorou as coisas. Antes de prosseguir, preciso apontar que a sensação de desconforto proveniente da leitura do 5º volume não foi uma “fraqueza” de nossos espíritos sensíveis. Muita gente não gosta desse volume em participar. Anne Carson escreveu um breve livro, The Albertine Workout, sobre seu desconforto e esse opúsculo recebeu uma resenha muito atenta de Adalberto Costa, em que ele revela os engodos que vitimaram a própria Carson[1]. Vale muito a leitura dos dois textos.
O 6º volume, A Fugitiva, começou para mim com a sensação de que a libertação foi do leitor, ao mesmo tempo em que reconheci meu “velho” Proust, mais maduro nas relações, ou seja, mais definitivamente lançado à evidência do fracasso do protagonista. Mas será que de fato se pode pular o 5º volume[2]? Nada presta em A Prisioneira?
Para esse exercício de validação, voltei meus olhos aos grifos e comentários às margens da minha elegante (e algo decadente, do ponto de vista físico) edição de 1954, cuja imagem vai logo abaixo.
O narrador evoca o tempo em que coabitou com Albertine e a narrativa encena a complexificação disso, na apresentação de uma Albertine em camadas: de Balbec (em franca liberdade) a Paris (cativa do protagonista). O cativeiro dessa personagem é um aspecto muito curioso no volume, na medida em que Albertine vai aonde quer, enquanto o protagonista-algoz-guardião da cela, trancado em seu próprio quarto, está sempre a ponto de rebentar ante as suspeitas dos passeios da personagem feminina. Bizarre.
Superada (quase nunca...) a má vontade ou a revolta franca contra as relações abusivas que imperam no 5º volume, a questão do tempo merece toda a atenção do leitor. Esse é um volume visitado por fantasmas. A memória da avó volta em várias páginas. A mãe viva comparece como ectoplasma, entretanto, nas cartas, cheias de citações de Madame de Sevigné (p. 117)... É um volume carregado de lutos difíceis para os leitores da catedral: Bergote e Swann morrem! Como assim??? “A morte de Swann impressionara-me na ocasião profundamente. A morte de Swann! Swann não tem nesta frase o simples papel de um genitivo” (p. 168).
Meu segmento favorito do volume foi a apresentação de Morel em casa da Sra. Verdurin. Essa festa acaba mal..., mas seu “durante” é espetacular. Por quê? Porque a narrativa mergulha em uma simbiose estranha de música e palavra que fascina. Há a relação física, o amplexo do músico com seu instrumento musical; há o exercício materializado na mecha que cai no rosto de Morel, enquanto executa as notas..., coisas mal contadas por mim. A festa gira em torno da apresentação do Septeto de Vinteuil, personagem que conhecemos pelo talento musical e pelas preferências amorosas e eróticas da filha. Para não contar mal outra vez, transcrevo o texto, mas não resisto à tentação de entabular um diálogo entre colchetes:
“Mas no momento em que eu a imaginava assim a esperar-me em casa [o narrador imagina Albertine, à sua espera].... fui afagado de passagem por uma cariciosa frase familiar e doméstica do septeto [agora, a frase musical vai transportar o narrador a lugares imaginados]. É possível, de tal modo tudo se entrelaça e se superpõe em nossa vida interior – que ela tivesse sido inspirada pelo sono de sua filha – da filha, causa hoje de todas as minhas inquietações – quando esse sono envolvia em doçura, nos tranquilos serões, o trabalho do músico [aqui, eu me encontro também, na frase musical muda e na cena tão cotidiana, de alguém que escreve, estuda, trabalha..., velada pelo sono tranquilo de uma filha que repousa logo ao lado. Esse trecho me emociona], essa frase que me acalmou tanto, pelo mesmo macio fundo de silêncio que enche de paz certas rêveries de Schumann, durante as quais, mesmo quando ‘o Poeta fala’, adivinhamos que a ‘criança dorme’” (p. 214)
“A alegria de certas sonoridades” (p. 215)... A palavra persegue o som, tenta traduções impossíveis. Eu não escuto o Septeto, mas compreendo a língua dos sinais que Proust me apresenta.
Há certas ironias nesse volume como quando o narrador recebe uma carta da mãe, “esta carta de minha mãe fez-me cair na realidade” (p. 311), e não posso deixar de sorrir do fato de a realidade ser apresentada por meio da ficção do texto! Mas a ironia mais fina do volume para mim é a autorreferência ao 2º volume da Busca, refiro-me ao “lado Dostoievski de Madame de Sevigné” (citado em À sombra das raparigas em flor, p. 205) sobre o qual já escrevi[3]. Como o narrador retoma o tema? “Confesso que o que eu disse naquela ocasião era uma sandice” (p. 324). Mas ele continua a brincadeira, contradizendo a “sandice” afirmada, com diálogo entre colchetes:
 “Acontece que a Sra. de Sévigné, como Elstir, como Dostoievski [vejam a mistura entre fictícios e reais!], em vez de apresentar as coisas na ordem lógica, isto é, começando pela causa, nos mostra primeiro o efeito, a ilusão que nos impressiona. [depois de falar da “obsessão” de Dostoievski por assassinatos, o narrador prossegue na ironia] Eu não sou romancista; é possível que os criadores sejam tentados por certas formas de vida que não experimentaram pessoalmente.” (p. 325)
É espetacular! Ironia em camadas também: ridiculariza a associação que construíra, mas prova logo em seguida que ela é pertinente e se identifica como um não romancista, enquanto o romance se escreve. Onde essa análise tão sofisticada é realizada? No quarto, com Albertine nos joelhos do narrador.
Sobre as interdisciplinaridades, o historiador que lê a Busca encontra motivos sobejos de animação. Além do caso Dreyfus que atravessa a obra nas considerações do narrador e dos mais diversos personagens, é possível ver em detalhes as mudanças da sociedade parisiense na época, e mesmo o avião vemos sobrevoar a cidade luz, pelo olhar admirado do casal Marcel e Albertine, justamente no 5º volume! Esse volume também vai agradar aos amantes da boa gastronomia, leitores de À mesa com Proust (como eu[4]), pela sinestesia que propõe: “O que eu gosto nesses alimentos apregoados, é que uma coisa ouvida como uma rapsódia muda de natureza às refeições e se dirige ao paladar” (p. 107). Mas atenção, são superficialidades de enredo, menos no caso da sinestesia.
Para terminar, tem mais abuso nesse volume..., o que são as relações entre Morel, a sobrinha de Jupien e o Barão de Charlus?!? A verdade é que não sou imediatista e com esse texto confirmo mais uma vez que, se o leitor tem o direito de abandonar o livro que está a ler (tem sim!!!)a qualquer momento que desejar, uma história da leitura também deve incluir perseverança. Eu já espalhei aos quatro ventos minhas obtusas preferências de ler os finais dos livros. A ansiedade pelo fim não constitui a minha biografia (eu tenho outras...). Saber tranquiliza e garante uma entrega maior ao texto. Opinião pessoal. Eu sabia que depois d’A Prisioneira viria um’A Fugitiva e isso me animou, deu-me esperança.

A minha elegante edição de 1954!



[1] http://rascunho.com.br/tese-banal/ (acesso em 14 de outubro de 2017)
[2] Sugestão que aparece apontada no livro de Anne Carson.
[4] Procure aqui no blog minhas considerações sobre esse livro de fazer a gente comer com os olhos. 

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