O clube do livro começou a leitura de
A Fugitiva, 6º volume de Em busca do tempo perdido de Marcel
Proust. No final deste mês temos debate! Depois do 5º volume, resolvemos fazer
um intervalo de valorização da compreensão da catedral proustiana, que também
revelou alguns impasses e desconfortos da leitura de A prisioneira. Esse 5º volume não foi fácil. Nenhum de nós (do
clube)curte relações abusivas, sequer no domínio do texto, e o volume encena
esse tipo de vínculo com os mesmos requintes textuais que nos encantaram desde
2015..., o que piorou as coisas. Antes de prosseguir, preciso apontar que a
sensação de desconforto proveniente da leitura do 5º volume não foi uma “fraqueza”
de nossos espíritos sensíveis. Muita gente não gosta desse volume em
participar. Anne Carson escreveu um breve livro, The Albertine Workout, sobre seu desconforto e esse opúsculo
recebeu uma resenha muito atenta de Adalberto Costa, em que ele revela os
engodos que vitimaram a própria Carson[1]. Vale muito a leitura dos
dois textos.
O 6º volume, A Fugitiva, começou para mim com a sensação de que a libertação foi
do leitor, ao mesmo tempo em que reconheci meu “velho” Proust, mais maduro nas
relações, ou seja, mais definitivamente lançado à evidência do fracasso do
protagonista. Mas será que de fato se pode pular o 5º volume[2]? Nada presta em A Prisioneira?
Para esse exercício de validação,
voltei meus olhos aos grifos e comentários às margens da minha elegante (e algo
decadente, do ponto de vista físico) edição de 1954, cuja imagem vai logo
abaixo.
O narrador evoca o tempo em que
coabitou com Albertine e a narrativa encena a complexificação disso, na
apresentação de uma Albertine em camadas: de Balbec (em franca liberdade) a
Paris (cativa do protagonista). O cativeiro dessa personagem é um aspecto muito
curioso no volume, na medida em que Albertine vai aonde quer, enquanto o
protagonista-algoz-guardião da cela, trancado em seu próprio quarto, está
sempre a ponto de rebentar ante as suspeitas dos passeios da personagem
feminina. Bizarre.
Superada (quase nunca...) a má
vontade ou a revolta franca contra as relações abusivas que imperam no 5º
volume, a questão do tempo merece toda a atenção do leitor. Esse é um volume
visitado por fantasmas. A memória da avó volta em várias páginas. A mãe viva
comparece como ectoplasma, entretanto, nas cartas, cheias de citações de Madame
de Sevigné (p. 117)... É um volume carregado de lutos difíceis para os leitores
da catedral: Bergote e Swann morrem! Como assim??? “A morte de Swann
impressionara-me na ocasião profundamente. A morte de Swann! Swann não tem
nesta frase o simples papel de um genitivo” (p. 168).
Meu segmento favorito do volume foi
a apresentação de Morel em casa da Sra. Verdurin. Essa festa acaba mal..., mas seu
“durante” é espetacular. Por quê? Porque a narrativa mergulha em uma simbiose
estranha de música e palavra que fascina. Há a relação física, o amplexo do
músico com seu instrumento musical; há o exercício materializado na mecha que
cai no rosto de Morel, enquanto executa as notas..., coisas mal contadas por
mim. A festa gira em torno da apresentação do Septeto de Vinteuil, personagem que conhecemos pelo talento musical
e pelas preferências amorosas e eróticas da filha. Para não contar mal outra
vez, transcrevo o texto, mas não resisto à tentação de entabular um diálogo
entre colchetes:
“Mas no momento em que eu a
imaginava assim a esperar-me em casa [o narrador imagina Albertine, à sua
espera].... fui afagado de passagem por uma cariciosa frase familiar e
doméstica do septeto [agora, a frase musical vai transportar o narrador a
lugares imaginados]. É possível, de tal modo tudo se entrelaça e se superpõe em
nossa vida interior – que ela tivesse sido inspirada pelo sono de sua filha –
da filha, causa hoje de todas as minhas inquietações – quando esse sono
envolvia em doçura, nos tranquilos serões, o trabalho do músico [aqui, eu me encontro
também, na frase musical muda e na cena tão cotidiana, de alguém que escreve,
estuda, trabalha..., velada pelo sono tranquilo de uma filha que repousa logo
ao lado. Esse trecho me emociona], essa frase que me acalmou tanto, pelo mesmo
macio fundo de silêncio que enche de paz certas rêveries de Schumann, durante as quais, mesmo quando ‘o Poeta
fala’, adivinhamos que a ‘criança dorme’” (p. 214)
“A alegria de certas sonoridades”
(p. 215)... A palavra persegue o som, tenta traduções impossíveis. Eu não escuto
o Septeto, mas compreendo a língua dos sinais que Proust me apresenta.
Há certas ironias nesse volume como
quando o narrador recebe uma carta da mãe, “esta carta de minha mãe fez-me cair
na realidade” (p. 311), e não posso deixar de sorrir do fato de a realidade ser
apresentada por meio da ficção do texto! Mas a ironia mais fina do volume para
mim é a autorreferência ao 2º volume da Busca,
refiro-me ao “lado Dostoievski de Madame de Sevigné” (citado em À sombra das raparigas em flor, p. 205)
sobre o qual já escrevi[3]. Como o narrador retoma o
tema? “Confesso que o que eu disse naquela ocasião era uma sandice” (p. 324).
Mas ele continua a brincadeira, contradizendo a “sandice” afirmada, com diálogo
entre colchetes:
“Acontece que a Sra. de Sévigné, como Elstir,
como Dostoievski [vejam a mistura entre fictícios e reais!], em vez de
apresentar as coisas na ordem lógica, isto é, começando pela causa, nos mostra
primeiro o efeito, a ilusão que nos impressiona. [depois de falar da “obsessão”
de Dostoievski por assassinatos, o narrador prossegue na ironia] Eu não sou
romancista; é possível que os criadores sejam tentados por certas formas de
vida que não experimentaram pessoalmente.” (p. 325)
É espetacular! Ironia em camadas
também: ridiculariza a associação que construíra, mas prova logo em seguida que
ela é pertinente e se identifica como um não romancista, enquanto o romance se
escreve. Onde essa análise tão sofisticada é realizada? No quarto, com
Albertine nos joelhos do narrador.
Sobre as interdisciplinaridades, o
historiador que lê a Busca encontra
motivos sobejos de animação. Além do caso Dreyfus que atravessa a obra nas
considerações do narrador e dos mais diversos personagens, é possível ver em
detalhes as mudanças da sociedade parisiense na época, e mesmo o avião vemos
sobrevoar a cidade luz, pelo olhar admirado do casal Marcel e Albertine,
justamente no 5º volume! Esse volume também vai agradar aos amantes da boa
gastronomia, leitores de À mesa com
Proust (como eu[4]),
pela sinestesia que propõe: “O que eu gosto nesses alimentos apregoados, é que
uma coisa ouvida como uma rapsódia muda de natureza às refeições e se dirige ao
paladar” (p. 107). Mas atenção, são superficialidades de enredo, menos no caso
da sinestesia.
Para terminar, tem
mais abuso nesse volume..., o que são as relações entre Morel, a sobrinha de
Jupien e o Barão de Charlus?!? A verdade é que não sou imediatista e com esse
texto confirmo mais uma vez que, se o leitor tem o direito de abandonar o livro
que está a ler (tem sim!!!)a qualquer momento que desejar, uma história da
leitura também deve incluir perseverança. Eu já espalhei aos quatro ventos
minhas obtusas preferências de ler os finais dos livros. A ansiedade pelo fim
não constitui a minha biografia (eu tenho outras...). Saber tranquiliza e
garante uma entrega maior ao texto. Opinião pessoal. Eu sabia que depois d’A Prisioneira viria um’A Fugitiva e isso me animou, deu-me
esperança.
A minha elegante edição de 1954!
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