Para Deise, Raquel e
Roberta.
Para a minha mãe.
Nesse dezembro, eu já fiz rabanadas
três vezes: duas vezes na minha casa (em um pré-Natal e no dia 24 mesmo) e em
uma casa amiga (em outro pré-Natal). No dia 24, eu fiz uma parte das rabanadas
com eritritol[1]. O
Natal para mim começa com rabanadas. Quando criança, eu via a minha mãe fazê-las
logo na manhã do dia 24. Eu via a minha mãe encher uma ou duas travessas
bonitas – aquelas de casamento – com as fatias douradas e açucaradas. Quando eu
me casei e me tornei senhora dos meus próprios Natais e travessas, descobri por
que minha mãe fazia questão de prepará-las cedo: as rabanadas sujam louça,
fogão e chão de cozinha. Então, é melhor fazer logo, para as louças não se
misturarem. A gente lava tudo depois de prepará-las e pode recomeçar os
trabalhos do Natal na cozinha limpa. O Natal para mim começa com o cheiro do açúcar
e da canela, que envolve esse pão largo sem muita casca, mergulhado em leite,
abraçado em ovo e que não tem medo de óleo quente.
Nos pré-Natais desse ano, eu servi
minhas rabanadas para pessoas que nunca
tinham preparado ou comido esse doce em casa. Segundo apurei, as rabanadas
foram aprovadas. Eu fotografo minhas rabanadas, mando para amigos e amigas e,
esse ano, uma pessoa queridíssima escreveu em uma foto minha: “as famosas
rabanadas da Profa. Marcella”. Fiquei prosa.
Mas esse nunca me devolveu o pensamento sobre diferenças culturais que
passam pela mesa e pela boca. Em um dos pré-Natais, eu comi peru assado. O
conto do Mário de Andrade bem na minha frente! Estava divino. Foi a segunda vez
na minha vida, porque a tradição da minha casa de menina e moça sempre foi o
bacalhau; na minha casa de mulher adulta, o bacalhau continuou a reinar
absoluto em várias receitas.
Eu encomendo pão de rabanada em uma
padaria específica. No pré-Natal vivido na casa amiga, eu improvisei rabanadas
com o pão mais parecido (com o de minhas encomendas) que encontrei. Mas já comi
rabanada em Portugal feita com pão de forma. Achei bom, mas gostei mais das
minhas.
Existem pequenas variações no
preparo das rabanadas, isso significa que elas são um bom exemplo de tradições
moventes. Algum defensor empedernido e equivocado das “tradições” pode franzir
a boca amarga para a colher de leite condensado misturada no leite, para o pão,
para o eritritol..., mas é preciso lembrar que não raro quem se arvora em
guardião defende um momento específico a que teve acesso de uma tradição. Se
conseguir andar um pouco mais para trás na pesquisa pode cair do cavalo
segurando a bandeira do imobilismo. Tradições se mantêm porque se adaptam,
porque se transformam. Minha experiência tem me mostrado que quem se veste de defensor
de tradições, não conhece a dinâmica própria dessa reunião aerada de modos de
viver, saberes e técnicas.
Uma amiga minha carioca, ao saber
que eu já ia para o preparo da terceira pratada de rabanadas me disse que tinha
descoberto uma receita vegana! Minha primeira reação foi bancar o emogi dos
olhos arregalados. Depois, encontrada de chofre com a poeira de jumentice dos
defensores do imobilismo que sobrou em mim, pensei: deve ser uma coisa tão
diferente que só mesmo a importância do batismo para uma busca tão afetiva! As
rabanadas reúnem histórias e, quer a gente varie o pão ou o açúcar, elas têm
identidade pelo conjunto material e imaterial.
No dia 8 de julho, eu publiquei um
texto aqui no blog que intitulei “O gosto das coisas em uma 5ª feira”. Nesse
texto eu mencionei os mantecados da D. Francisca, esposa do meu amigo, o
saudoso Prof. Jayme Bueno. Pois no dia 24 à tarde minha querida Raquel Bueno,
filha do Prof. Jayme, veio aqui em casa para me dar uma caixa de mantecados.
Quando me deu, disse acanhada que esperava que estivessem bons, mas duvidava.
Senti aquele aperto tão conhecido no peito: a saudade da filha que teve de se
despedir de um pai recentemente e de uma mãe mestra dos mantecados...
Entrei com a pequena caixa e coloquei ao lado das rabanadas. Fiz café e sentei.
Abri a caixa. Cada mantecado estava envolvido no papel vegetal recortado com
esmero. Abri aquela delicadeza e lembrei. Lembrei do casal e das visitas na
casa que nem é mais minha! Lembrei. Estavam perfeitos, Raquel.
Em 2020, na França eu me apropriei
de algumas tradições. Este ano encomendei uma para sentar à mesa com as
rabanadas: a Bûche de Noël. Alguém pode perguntar por quê? Eu tenho a resposta
na ponta da língua: memória. Na verdade, para mim, é "só" disso que se trata.
Ficar quatro horas em pé fazendo uma carne assada que ficaria pronta em meia
hora – se eu cometesse a heresia de colocar a panela de pressão na história – é
lembrar do meu pai ali, com o pé apoiado na altura do joelho da outra perna,
que nem um quatro de 1,80 m, dizendo que aquela carne não era para
preguiçosos...
Eu adoro rabanadas e posso fazê-las
a hora em que eu quiser, mas não faço. Eu faço duas vezes no ano e no mesmo
mês. Eu como e espero. Espero em respeito reverente ao calendário. Ninguém
cobra essa reverência, esse respeito... Quando faço, ela acende em mim a memória
de anos, de gerações até.
Também respeito a rabanada vegana
da minha amiga. Suas escolhas e sua saúde exigem coerência, mas a memória...
mesmo que eu ache o gosto diferente, esse batismo me emociona porque imagino
que, na casa carioca dela, o dia 24 também começava com açúcar e canela,
travessa e panos... e essa memória é tão forte que batizou o clone vegano. O
peru de Natal, os mantecados, a Bûche... tradições que se sentam juntas para
alimentar o corpo, os afetos e fomentar mais curiosidades. Gosto.
Daqui a pouquinho, eu vou preparar
um doce que coloca um sorriso na boca de quem escuta o nome pela primeira vez:
aletria. Fazer aletria é esvaziar a caixa de ovos[2] em pura evocação da minha
infância. Não deu tempo de fazer para o Natal, mas quando eu cheguei a Cutitiba,
alguém me contou que se continua a comemorar o Natal no dia 26! Boa tradição
essa que me dá mais tempo...
Ainda tenho uma pratada de
rabanadas para fazer nessa casa antes que o ano acabe. Manhã de açúcar, canela,
saudade que antevê a espera por um novo dezembro.