O Professor de História e Geografia,
Samuel Paty, 47 anos, foi alvo de integristas muçulmanos por ter levado caricaturas
à sala de aula, para um debate sobre a liberdade de expressão. O Professor
Samuel Paty foi assassinado. As caricaturas em específico foram as caricaturas
publicadas no jornal Charlie Hebdo e
que já inflamaram outros assassinos. O Professor Paty foi ameaçado em redes
sociais, foi ameaçado por famílias na escola em que trabalhava e foi vítima de
um crime pensado por manipuladores, criminosos conhecidos na França, e realizado finalmente por um adolescente descartável por esses manipuladores e vazio de qualquer
força moral interior. Alguém pode dizer condescendente: mais uma vítima dos
manipuladores, Marcella... Eu vou responder: reconheço o velho debate entre os
que depositam todas as fichas nos fatores contextuais/coletivos e aqueles que colocam
todas as fichas na vontade (interior) do humano. Há muito tempo acho que esse é
um dilema que esvazia o debate nas ciências humanas. Minha posição de forma
muito sintética: a mão pode ser armada por uma arma comprada/ofertada por
outro, as idéias que animam a empunhá-la podem ser uma mistura confusa de
equívocos e necessidades que abrasam na hora do embate, mas quem atira, e no
caso de Paty quem cortou a carne, foi a mão individual que, três segundos antes
de realizar o crime, teve alternativa e mobilizou a sua vontade para o crime.
Desculpem, creio demais na juventude para acreditá-la, por sua vez, formada por
bonecos infláveis de posto. Não vou prosseguir nesse debate, pois tenho outras
coisas a considerar.
As lideranças muçulmanas que pregam
a paz e a fé na palavra que segundo a sua crença foi revelada por Deus ao
Profeta Maomé vieram a público apontar os manipuladores contra quem essas
lideranças já prestaram inúmeras queixas. Fizeram declarações fortes na
imprensa. Estão na rua hoje inclusive, correndo o país e dizendo que o Islã não
pode ser confundido com a malignidade dos manipuladores em falsas associações e
nas redes sociais. Um deles afirmou: professores,
vocês são profetas; perdão; Paty é um mártir. É fundamental que as
lideranças de fato religiosas e os fieis se posicionem publicamente contra os integristas
falsamente identificados com sua fé. É fundamental que se levantem (como
Chalghoumi hoje). Sempre levantarei a minha voz simples, eu que estou longe de
ser uma liderança, contra os católicos criminosos que cometeram crime contra a
criança vítima de violência e que teve a interrupção da gestação autorizada
pela lei do Estado brasileiro. Quero docemente que eles e elas encontrem
assento no inferno que sonham para os outros. Espero sempre que evangélicos de
fato crentes posicionem-se publicamente contra os integristas que tentam mudar
a vocação do Estado brasileiro, um Estado laico.
O assassinato do Professor Samuel
Paty é um crime que me atinge, que me toca e que me faz sofrer por tudo o que
convergiu para a sua execução: as situações específicas da História do seu país;
as situações que extrapolam a França e que constrangem os professores pelo
mundo; o papel das famílias em vários Estados na sua relação com a escola; a
relação do Estado laico com as igrejas e a convivência entre as identidades de
reunião[1] em uma república
democrática.
Por todo o lado, o magistério é uma
profissão de risco. Sim, nos países ricos, a violência contra os professores
não é caso isolado. Entre nós... foi até mesmo assumido como decisão institucional.
Já são 5 anos do massacre do Centro Cívico, ordenado pelas forças políticas
eleitas para servir ao Estado. É arriscado elevar-se contra os constrangimentos
familiares, de identidades que acreditam que só elas têm o direito de existir;
é arriscado oferecer às crianças e aos jovens os livros e a literatura a quem
têm direito para a formação de seu repertório; é arriscado contrapor o
negacionismo; é arriscado cobrar do Estado; é arriscado dizer às crianças e aos
jovens – e fortalecer sua vida interior – que eles e elas têm escolha e que podem
pensar por si mesmos; é arriscado formá-los e educá-los contra suas fantasias
perigosas e seus próprios desejos imediatos... O Professor Samuel Paty levou
fontes históricas à sala de aula para um debate sobre a liberdade de expressão, seu
sacrifício revela tragicamente a escala em que um tema desse precisa ser
enfrentado pelo mundo afora.
No fim de semana, cidadãos
franceses “esqueceram” a Covid-19 e foram às ruas render homenagem ao Professor
Paty. As autoridades políticas expressaram o seu horror contra a violência que
o atingiu e estão agindo. Uma homenagem nacional lhe será prestada. Não posso
falar da eficácia... A morte de um professor brasileiro mobilizaria o presidente
do país da sala para o quarto ou para o banheiro. Semana passada foi dia dos
professores. O governo eleito por quase 58 milhões de brasileiros despreza os
professores. As evidências são inúmeras, inclusive na pasta da Educação. A
violência contra nós e o sacrifício de nossa vida são linhas em jornais que as
autoridades desprezam, bem como seus eleitores...
Eu não escrevi #jesuischarlie no passado recente, mas sinto a morte de Paty como
já senti a morte de colegas que eu perdi na minha carreira, como chorei... Os
colegas que perdi, eu perdi para doenças e para acidentes, eu perdi o Professor
Samuel Paty para o integrismo, para a ignorância, para o mal absoluto que
manipulou certamente um jovem perigoso e ignorante. Uma família perdeu um pai,
um marido. Mas a família do assassino exulta, afinal foi bem sucedida em criar
um assassino, a despeito do esforço dos seus professores de transformá-lo em um
cidadão... Uma das coisas mais tristes que já escrevi em minha vida.
Semana passada foi dia dos
professores no Brasil. Para mim, Paty é um mártir brasileiro também. Não vou
escrever #jesuispaty porque gostaria
que sua identidade com homem, professor e pai fosse preservada para nos
constituir inteira. Eu sou Marcella e a memória de Paty que eu não conheci é
parte de mim.