Aqui na França o déconfinement começa semana que vem. Em
duas semanas, terei de decidir: 1. se envio a minha filha à escola, afinal a
sua “série” é uma das “escolhidas” para a rentrée
do dia 18, ou 2. se desobedeço... e aguardo “fora da lei” a possibilidade de
retorno a nosso país. Escolha difícil. Mas esse texto só tangencia a vida
escolar, ele se agarra mesmo a alguns outros aspectos dessa rentrée geral, ou seja, dessa volta ao
trabalho, à escola e à vida a qual todos e todas estávamos acostumados.
Eu não pertenço ao grupo de pessoas
que acha que esse vírus nos deu a “grande oportunidade de repensar o presente”,
nem pertenço ao grupo daqueles que se julgam imunes ao contágio, pela sua
ignorância ou pela sua (má) fé. Sim, eu li gente pretensamente religiosa proclamando
sua imunidade. Sobre a “grande oportunidade”, como encarar dessa
forma um agente que ameaça, abate e mata? Não incorro no mau gosto e na crueldade
de achar um assassino oportuno.
O confinamento jogou na nossa cara,
entretanto, que moramos em casas pequenas, ou porque não temos dinheiro para
morar em casas grandes, ou porque os construtores propuseram ao longo de
décadas essa solução aos que não podem pagar para que eles morem em casas de
amplos jardins. O confinamento jogou na nossa cara que nos deslocamos pela
cidade, entre cidades e entre países em meios de transporte que nos apertam e
nos fazem doentes. Jogou na nossa cara que alguns de nós têm imensas
dificuldades de cuidar e amar justamente aqueles que os primeiros prometeram
amar ou que julgavam amar. Jogou na cara que nem para movimentar a economia nos
grandes centros comerciais e nas lojinhas nos movemos em condições salubres!
Eu fui uma criança de apartamento
que brincava em poucos metros quadrados, nos corredores do prédio e na entrada.
A primeira casa, casa, em que morei tinha um pequeno jardim à frente que cultivei
com amor. Meu jardim atual (ou seja, o do Brasil), tem 4 m2 e é
cultivado com amor também. Agora, que voltei a um apartamento, como sinto falta
de um canteiro! Eu não brinco no pátio, nem isso podemos (!), escrevo e leio
muito.
Mas tenho muita dificuldade em
ficar em ambientes fechados com muita gente. Não uso elevador e preciso tomar
remédio para viajar em aviões e trens. Já passei mal nesses veículos, em ônibus
e metrô também, e precisei de ajuda de conhecidos e desconhecidos (no Brasil e
no exterior). Em algumas situações, corri riscos. Se eu já peguei transportes
lotados? Já, em uma época em que eu não tinha o problema que me constrange já há
muitos anos. Mas eu sou uma poeirinha cósmica... As medidas de proteção que o
governo francês (e outros pelo mundo civilizado afora, obviamente estou
retirando o meu país desse grupo, pelo presidente) têm proposto ao deslocamento
em transportes públicos me despertam particular interesse justamente pelo meu
problema!
Foi como se ficasse claro de
repente que, em horários em que um imenso contingente de pessoas é liberto dos
seus postos de trabalho, apertar-se até a falta de ar nos meios de transporte não
é saudável ou humano. Como foi possível que por séculos e décadas a disparidade
entre quem se desloca confortável em carruagens, aviões particulares e grandes
automóveis e o desumano apertar no metrô, das freadas bruscas no ônibus para “nos
ajeitar”, do abuso e do desligamento do ar condicionado do avião em solo, ou a
diminuição de sua potência pelos ares e para economizar... fosse aceito pela
humanidade de que eu também faço parte?! Por séculos e décadas suportamos o que
hoje, em crise sanitária, é inaceitável.
O vírus não ofereceu oportunidade
alguma, ele pegou nossos braços e nos sacudiu até nos machucar. Eu me comovo
todo dia com a insistência na divulgação do telefone para a denúncia da
violência doméstica aqui. E prometemos amar e cuidar.
Conversei com uma amiga no fim de
semana. Tudo parece apontar para que não será possível retomar a vida nas
mesmas bases de antes. Entretanto, ela me disse que seria preciso uma vontade e
um esforço real para mudanças... Ela tem razão. Na minha vida de antes, a cada
semana, em pelo menos 2 dias, eu me deslocava por quilômetros, de carro, para
estar em 4 bairros diferentes inevitavelmente. Um desafio geográfico e temporal;
causa de ansiedade, aborrecimento e risco. 3 desses destinos foram escolhas
feitas por mim... Eu determinei que haveria de me deslocar de forma ansiosa,
aborrecida e com risco a mim e à minha própria filha, na minha vida “normal”.
Não aprendi nada com o coronavírus.
Eu sempre lavei embalagens na volta do mercado! Pode perguntar à minha mãe! Pode perguntar ao Luiz! O
coronavírus me desperta medo. Terror de cair doente em terra estrangeira com
uma criança sob minha responsabilidade. Mas toda essa situação move minhas idéias
e resistências... e eu sonho com mudanças. Seria
preciso uma vontade e um esforço real para mudanças... Ouço a minha amiga
novamente.
O que não vamos mais suportar
quando a nossa vida “normal” bater outra vez à nossa porta? O que será
inaceitável? O que significa “reaprender a viver”, expressão dos discursos dos
políticos que se deslocam em aviões de poucas pessoas?... Não tenho respostas,
gente. Mas queria que a gente começasse a acordar novas perguntas.
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